Tribunal de contas

– Duas horas e um quarto! exclamou Taveira, que olhara o relógio. E eu aqui, empregado público, tendo deveres para com o Estado, logo às dez horas da manhã.
– Que diabo se faz no tribunal de contas? perguntou Carlos. Joga-se? Cavaqueia-se?
– Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo… Até contas!

‘Os Maias’, Eça de Queirós

 

Palavras inventadas pelo AO90

Desde que Maria Regina Rocha avançou com uns números sobre “a falsa unidade ortográfica”, em Janeiro de 2013, passaram-se mais cinco longos e penosos anos de sistemática demolição da Língua Portuguesa. Aquele  estudo tinha por peça central uma contagem (“feita manualmente”, como honestamente refere a própria autora) com o objectivo de responder à seguinte dúvida: «quantas palavras se escreviam de forma diferente no Brasil em comparação com a forma como as mesmas palavras se escreviam em Portugal e nos restantes países de Língua Oficial Portuguesa antes do Acordo e depois do Acordo?»

Uma pergunta quiçá comprida para a qual parece ter com a dita contagem manual encontrado uma resposta mais ou menos do mesmo tamanho: «havia 2691 palavras que se escreviam de forma diferente e que se mantêm diferentes (por exemplo, ‘facto’ – ‘fato’), havia 569 palavras diferentes que se tornam iguais (por exemplo, ‘abstracto’ e ‘abstrato’ resultam em ‘abstrato’), e havia 1235 palavras iguais que se tornam diferentes.»

Tal estudo mai-los respectivos apuros tiveram suas repercussões, na verdade teve esse mérito, e alguns ecos do artigo foram reproduzidas aqui, neste modesta, pequenininha, irrelevante posta restante.

Embirrando, porém, solenemente, com falibilidades em geral e com contagens “feitas à mão” em particular, dediquei-me em Abril de 2017 a autopsiar as contas — as mesmas ossadas do cadáver depositado na morgue que é o “Portal da Língua Portuguesa” — utilizando ferramentas cirúrgicas (folha-de-cálculo) com fórmulas de análise e automatismos de sistematização; esta espécie de dissecação visou obter uma resposta concreta, estatisticamente sustentada, a uma outra pergunta: afinal, é verdade o que diz Bechara (e o que papagueiam outros aldrabões que tal), ou seja, «O Brasil cedeu mais do que Portugal no Acordo Ortográfico»?

A resposta consiste, evidentemente, em três letrinhas apenas: NÃO.

Três letrinhas essas que se expandiram exponencialmente, de caminho, com resultados sempre baseados em dados concretos e segundo cálculos algébricos, algoritmos segundo critérios lógicos, formulações sem qualquer pressuposto ou tendência. Do que resultou que de facto não, o Brasil não cedeu mais do que Portugal e não apenas não cedeu mais, como aquilo (em) que cedeu foi, exactamente, precisamente, rigorosamente… ZERO. O Brasil não cedeu absolutamente nada (nem em coisa nenhuma).

Em comum, o estudo de MRR, feito “à mão”, e o meu trabalho, feito “à máquina”, tiveram o facto de se basearem nos “dados” — pomposa designação para aquele amadorístico, manhoso, aldrabado amontoado de “entradas” — constantes do chamado “Vocabulário de[sic] Mudança“, uma parvoíce com que o Portal da Língua Portuguesa pretende enganar os incautos, satisfazer os vendidos, bajular os donos da Língua e, sobretudo, justificar o injustificável.

No entanto, se em comum têm a origem dos “dados”, as semelhanças entre os dois estudos ficam-se por aí. Em tudo o mais são radicalmente diferentes, ainda que resultem algumas coincidências e até uma, uma única similitude.

Afirma MRR: «Esta última situação é a mais aberrante: são 200 as palavras inventadas, que não existiam e passam a ser exclusivas da norma ortográfica em Portugal.»

Bem, este tirinho quase acertou em cheio na “mouche”. Não são 200, são 215 as palavras INVENTADAS pelo AO90.

215 palavras que antes do AO90 se escreviam exactamente da mesma forma no Brasil e em Portugal (e nos PALOP) mas que por via do AO90 — segundo a “lógica” «o que não se pronuncia não se escreve» — passam a ter duas grafias: no Brasil mantêm-se inalteradas, intactas, mas em Portugal (e nos PALOP) passam a escrever-se de forma que anteriormente não existia em lado algum.

As palavras INVENTADAS pelo AO90 são as seguintes:

aceção
acetor
adocianismo
adociano
adotação
afecional
afecionalidade
angietático
anorético
antártia
antasfítico
anticeticismo
anticético
anticoncecional
anticoncetivo
antiprático
antissético
aperceção
apercetibilidade
apercetível
apercetivo
apocaliticismo
apossético
aprático
artícola
assético
aurifatório
bronquetásico
cato
cardiorrético
cinorético
clidorrético
coatar
coátil
conceção
concecional
concecionário
concetaculífero
concetáculo
concetibilidade
concetismo
concetista
concetístico
concetiva
concetível
concetividade
concetivo
concetual
concetualismo
concetualista
concetualístico
concetualização
concetualizar
concetualmente
confeção
confecionador
confecionar
confecionável
conspeção
contraceção
contracetivo
contrarrutura
corretismo
corretivamente
deceção
dececionado
dececionante
dececionar
dececionável
decetivo
defeção
defetibilidade
defetível
defetividade
defetivo
defetório
defetuoso
desmorrético
deteção
eclítica
eclítico
exterocetivo
exterocetor
extratiforme
filocato
flitena
foteletrão
glitografia
hematossético
heterossético
impercetibilidade
impercetível
impercetivelmente
imperfetibilidade
imperfetível
imperfetivelmente
imperfetividade
imperfetivo
indefetibilidade
indefetível
indetetável
interceção
intercetação
intercetado
intercetador
intercetadora
intercetante
intercetar
intercetável
intercetivo
interceto
intercetor
intercetora
intercetório
interrutor
interrutora
intersetar
intusceção
intuspetivamente
intussusceção
iridorrético
melocato
metamorfótico
metapetina
metrorrético
multinfeção
olfação
oticometria
oticométrico
paralaticamente
penatisseto
perceção
percecionar
percecionismo
percecionista
percetibilidade
percetivamente
percetível
percetivelmente
percetividade
percetivo
perceto
percetual
perenção
perento
perentoriamente
perentoriedade
perentório
perfecional
perfecionismo
perfecionista
perfecionístico
perfetibilismo
perfetibilista
perfetibilizar
perfetivação
perfetível
perfetividade
perfetivo
perirretite
plasmorrético
polipletro
precetista
precetivamente
precetivo
precetor
precetora
precetorado
precetoral
precetoria
precetorial
preconceção
preconcetivo
propriocetivo
propriocetor
prospeção
pseudorrético
quimiorreceção
quimiorrecetividade
quimiorrecetivo
quimiorrecetor
radiorrecetor
receção
rececionado
rececionamento
rececionante
rececionar
rececionável
rececionista
recetação
recetacular
recetáculo
recetado
recetador
recetadora
recetar
recetibilidade
recetiva
recetível
recetividade
recetivo
recetor
recetora
recoleção
refetivo
refetório
rutura
seticidade
sético
subaceção
susceção
teledeteção
teledetetar
transcetor

Porém, se quanto à questão das invenções até andou lá perto, já quanto à outra afirmação — mais extensa, mais ao comprido — parece-me, peço humildemente perdão pelo atrevimento, que MRR se estendeu.

Não, não «havia 2691 palavras que se escreviam de forma diferente e que se mantêm diferentes (por exemplo, ‘facto’ – ‘fato’), havia 569 palavras diferentes que se tornam iguais (por exemplo, ‘abstracto’ e ‘abstrato’ resultam em ‘abstrato’), e havia 1235 palavras iguais que se tornam diferentes.»

Nada disso. Nem perto.

Como veremos.

[Imagem de topo de: “Oferta de Emprego“.]
[“post” revisto em 02.01.19 às 04:34.]