Dia: 4 de Janeiro, 2019

Iguais e diferentes ou diferentes mas iguais?

Ossos do ofício, talvez maldição, talvez assombração, que atire a primeira pedra quem nunca errou mas, com mil demónios, assim esgota-se-me asinha o arsenal de impropérios, fica-me o paiol de munições insultuosas às moscas, gasto mais manguitos do que Almada Negreiros e, em suma, acabarei decerto a fazer tijolo com um braço de fora da urna, o dedo médio esticado à laia de dedicatória aos nabos e às nabiças deste cu de Judas à beira-mar plantado.

Repito e reforço: o “Vocabulário de Mudança” é uma coisinha hiper-amadora produzida por meros curiosos que assim, com estas e outras brincadeiras do género, preenchem as suas longas horas de ociosa burocracia levando a monotonia da tarefa a um impensável extremo de inutilidade.

Os funcionários do ILTEC ou do PLP ou lá quem foi que esgalhou aquela porcaria apenas teriam de digitar em  texto uns quantos dados, consistindo estes numa simples lista de palavras a discriminar em três colunas (com uma quarta para eventuais anotações). A avaliar pelo desastre que foi apresentado no “portal” como sendo o produto final e acabado do tal “Vocabulário de Mudança“, nota-se perfeitamente que os dados foram introduzidos por mais do que uma pessoa, cada qual (dados, colunas e pessoas) com seus próprios critérios ou a total ausência deles. Torna-se assim praticamente impossível  — porque são incoerentes os campos preenchidos (ou não) e existem erros na digitação de várias entradas, por vezes em mais do que um campo — proceder a qualquer tipo de tratamento estatístico, 100% exacto, ainda que elementar.

Existe sempre, aqui e ali, ao acaso, uma ou outra palavra que de forma alguma bate certo, seja qual for o ângulo de análise, o tipo de ordenação ou o algoritmo utilizado. Verificada a total ausência de critério(s) e a infinita anarquia na recolha de dados — a cargo do ILTEC — restam apenas duas hipóteses para que de tal amontoado caótico de registos seja possível extrair resultados e, destes, as respectivas conclusões: ou se aceitam os dados como estão, dando-se-lhes um tratamento estatístico homogéneo e “cego”, aceitando os resultados com a inerente (e implícita) margem de erro, ou então ir-se-á corrigindo, a pouco e pouco, os erros de todos os tipos que se forem detectando naqueles mesmos dados. A alternativa a isto seria… preencher de raiz uma base-de-dados, copiando-os da origem um por um.

Evidentemente, a ter de escolher entre um método difícil e falível, mas viável, e um outro que implicaria fazer milagres (como seja esticar a duração dos dias de 24 para 32 horas, por exemplo), pois é claro que optei pela solução possível e menos penosa, em detrimento da impossível e (ainda mais) estúpida. Isto porque, ao fim e ao cabo, é uma absoluta estupidez tentar entender o AO90, ainda que de um ponto de vista meramente estatístico. Aliás, não é por acaso que o tal “Vocabulário de Mudança” está assim mesmo, uma incrível trapalhada: aquilo foi feito “ao abrigo do” AO90 e pretende ser um repositório “técnico” do dito “acordo ortográfico” (que de ortográfico nada tem), portanto dali apenas poderia resultar uma contradição insanável nos termos (literalmente), a verdadeiro epítome de oximoro enquanto conceito.

Mas aquelas certamente excelentes pessoas do ILTEC lá continuam a “trabalhar” na coisa, corta daqui, enxerta dali, enchumaça acolá, abate-me ali aquele “C”, que horror, e olha, chiça, esgana-me aquele “P” de “porco”, ah, maldito porco, escapasteS à primeira mas agora já não me fugisteS.

Nem de propósito, acabo de visitar a pocilga e constatei, com esgares de nojo que não vou agora negar, haver por lá uma série de “novidades”: em comparação com a versão de 2017 temos agora menos umas quantas palavrinhas no chiqueiro central (devem ter sido tangidas, roncando, para uma das novas baias, aposto, ou então seguiram para abate, adeus, a esta hora já devem estar feitas em almôndegas) e no próprio recinto foi montada mais uma bancada, por assim dizer, agora já não há só uma, há duas linhas para “notas”, mas que nice. Isto, bem entendido, inutiliza qualquer tentativa de importação directa para folha Excel, mas não tem importância, dá-se a volta à maçada, o que é isso para a gente, fossem as patacoadas todas assim, cousa pouca.

Bom, deixemos — pelo menos para já — em seu amável remanso o Zé dos Anzóis*** do ILTEC, distanciemo-nos de seu merecidíssimo sossego “por defeito“, e vamos nós outros voltar a assuntos sérios, salvo seja, retomando a questão colocada por Maria Regina Rocha: «havia 2691 palavras que se escreviam de forma diferente e que se mantêm diferentes (por exemplo, ‘facto’ – ‘fato’), havia 569 palavras diferentes que se tornam iguais (por exemplo, ‘abstracto’ e ‘abstrato’ resultam em ‘abstrato’), e havia 1235 palavras iguais que se tornam diferentes.»

Recapitulando, já sabemos que

1- O AO90 é um “acordo” em que Portugal cede 100% e o Brasil cede 0% (ZERO): check.
2 – Com o AO90 são INVENTADAS 215 palavras (lemas) aplicáveis apenas a Portugal: check.
3 – Ainda sem check, portanto, vejamos e “checkemos

a) eram diferentes antes do AO90 // mantêm-se diferentes depois do AO90: 21
b) eram diferentes antes do AO90 // ficam iguais depois do AO90: 2884
c) eram iguais antes do AO90 // ficam diferentes depois do AO90: 221
d) eram iguais antes do AO90 // mantêm-se iguais depois do AO90: 2735


Como se pode facilmente constatar, são enormes as discrepâncias entre os números que apurei e os indicados por MRR. Exceptuando os 221 da alínea c), correspondentes a 215 lemas inventados pelo AO90 mais 6 casos específicos (acatalecto, cataléctico, coactar, hidroextractor, hiperdialéctico, obducto), os outros totais são diferentes, em especial o primeiro, que é… muitíssimo diferente: das 2691 entradas indicadas por MRR, eu cá encontrei apenas 21!

Usámos critérios diferentes, só pode ter sido, mas não me ocorre que critérios ou métodos terá a senhora utilizado para contar «2691 palavras que se escreviam de forma diferente e que se mantêm diferentes (por exemplo, ‘facto’ – ‘fato’)».

Terá incluído os casos de acentuação (1945) e os de hifenização (1087), mesmo havendo 58 entradas com hífen e acento? Não, não pode ter sido isto; na esmagadora maioria dos casos a acentuação e a hifenização levaram com o camartelo acordista, os que ficam iguais ao que eram são, como tudo o mais, os que ditam brasileiros.

Terá assumido que as 2683 entradas assinaladas com “Na prática, a situação anterior não muda” eram mesmo casos reais de ortografias diferentes antes e depois do AO90? Mas… a questão nem se coloca, que diabo, aquilo é tudo mais do mesmo, são principalmente casos de acentos que eram diferentes (é/ê, etc.) ou que foram abolidos pelo AO de 1945 (o trema, por exemplo) mas dos quais o Brasil mantém o poder exclusivo de manter ou retirar.

Terá considerado os (780) casos em que no Brasil havia (em teoria) dupla grafia? Mas, precisamente, esta é mais uma das gigantescas aldrabices do AO90 e não corresponde de todo à verdade!

Aliás, nem de propósito, será este quadro de resultados — 780 teóricas duplas grafias brasileiras que Bechara y sus muchachos apenas permitem em Portugal se forem iguais às deles, na prática — o  que analisaremos em detalhe proximamente. Esses resultados e os seguintes já incluirão as alterações que o ILTEC tem andado a esgalhar nos últimos dois anos.

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A coisa promete, por conseguinte, mais um fartote de rir. Tudo, absolutamente tudo neste “acordo” da treta não passa da imposição selvática — apesar das promessas de políticos aldrabões, passe a redundância, e das mentiras descabeladas de mercenários vendidos ao Brasil — da cacografia brasileira em Portugal e nos demais países da CPLP.

*** É “curioso” que exista (um caso de entre vários) a entrada “zé dos anzois” (agora sem acento, para que o Zé não tenha pinta) mas que, “misteriosamente”, não exista coisa alguma sobre “anzóis”.

[A imagem de topo é uma composição produzida a partir de um original da autoria de Lauri Donovick publicado na página “Portugato” (Facebook).]

Seu Marcelo no brásiu falando dji porrtugau, viu, qui légau

As queixas de Pepetela e a boa opção da Forbes

Sendo ano de eleições, 2019 é também boa oportunidade para decidir de vez o destino da aberração que é o acordo ortográfico.

Nuno Pacheco

“Público”, 3 de Janeiro de 2019

Como de costume, o Pai Natal estava bem-disposto. E ocupadíssimo. “Feliz Natal!”, disse ele à criança pelo telefone. “Como te chamas?” A criança disse. E quando se preparava para pedir o presente, ouviu do outro lado da linha: “Criança, ainda acreditas em Donald Trump? É que aos sete anos já é raro acreditar nele, não achas?” A criança não achava nada, queria passar ao tema seguinte. Mas o Pai Natal, com a pressa, nem lhe falou do muro do México.

A história passou-se mais ou menos assim, em finais de 2018, embora com os protagonistas trocados. Mas o que é aqui mais relevante é a importância das crianças de 7 anos – idade da menina Collman Loyd, da Carolina do Sul, a quem Trump perguntou se ainda acreditava no Pai Natal, “raro nessa idade”, ao que a criança respondeu que sim, tanto que lhe ia deixar biscoitos e leite com chocolate para quando passasse lá por casa; o Pai Natal, não Trump.

Mas voltando às crianças de 7 anos, também por cá elas serviram de mote a uma “prenda” que caiu como pedra afiada nos nossos sapatinhos há uns anos. Não sei se se lembram, mas o texto dizia assim: “De facto, como é que uma criança de 6-7 anos pode compreender que em palavras como concepção, excepção, recepção, a consoante não articulada é um p, ao passo que em vocábulos como correcção, direcção, objecção, tal consoante é um c? Só à custa de um enorme esforço de memorização que poderá ser vantajosamente canalizado para outras áreas da aprendizagem da língua.” Isto foi o que se escreveu, e pode ler-se, na Nota Explicativa que acompanhava o “Acordo Ortográfico” de 1990 (AO90), no seu ponto 4.2, alínea c (Diário da República, I Série-A, n.º 193, 23-8-1991). Portanto, antes de Trump, Pais Natais à parte, já o português Malaca Casteleiro tinha dedicado a sua atenção às pobres criancinhas daquela vulnerável faixa etária, salvando-as do horror das consoantes mudas e outros males da complicada grafia portuguesa. O problema é que estes anos de “salvação” redundaram em desastre. Nunca se escreveu tão mal e misturando tantos maus critérios, fingindo seguir uma norma que é em si mesma uma não-norma, pois tem tantas grafias duplas e facultatividades que o erro se tornou banal e integrado na escrita comum. Esse foi, aliás, o móbil inconfessado da lógica acordista: afastar o peso da ortografia padrão e sujeitá-la ao livre-arbítrio. Isto a coberto de uma “simplificação” que na verdade apenas complicou, porque barrou o passo ao caminho natural das variantes da língua falada e escrita: a admissão das diversidades nacionais sob uma mesma designação, a de Língua Portuguesa.

Tudo o que, entretanto, se pôs em marcha para aferir os resultados do dito AO90 continua a marcar passo. Falta o relatório da comissão parlamentar, faltam decisões de outros órgãos institucionais com o dossier entre mãos, faltam posições claras por parte das organizações partidárias. O regresso a uma ortografia estável é o mínimo que pode exigir-se, hoje, diante do incomensurável disparate desta aventura. Que raros políticos dêem a cara pelo “acordo”, com argumentos, diz bem do valor que lhe é atribuído, uma coisa que se tolera (sem se saber bem porquê) e que só se mantém pela inércia. Sendo um ano de eleições, 2019 é também boa oportunidade para decidir de vez o destino da aberração que é o acordo ortográfico.

Recentemente, o escritor angolano Pepetela afirmou ao Jornal de Angola não se sentir confortável com o facto de as suas últimas obras terem sido editadas em Portugal com o AO90, até porque, sendo membro Academia Angolana de Letras (que se manifestou contra este acordo pedindo ao governo angolano que não o aplique), será “uma incongruência”. A sua posição é, aliás, idêntica: “As línguas evoluem, mas eu não apoio essa nova versão.”

Seria útil um pequeno inquérito para saber quantos editores pressionam os autores que publicam a sujeitar-se ao AO90, mesmo contra a vontade inicial destes. Serão muitos, com certeza. Enquanto isso, há que saudar publicações como a Forbes que, surgindo agora em edição portuguesa, ignora o AO90 e é escrita em bom e claro português europeu. Que pode, e deve, subsistir a par do português brasileiro e os das variantes africanas ou orientais que estão a impor-se na fala e na escrita: é essa a riqueza da Língua Portuguesa, não outra.

Voltando ao início: se fosse no Brasil, seria Papai Noel. Lá, “Pai Natal” não existe mesmo.

nuno.pacheco@publico.pt

[Artigo de Nuno Pacheco, “Público”, 3 de Janeiro de 2019. “Links” meus.]