Marco Neves: “O problema não é a correcção dos erros, é a arrogância com que isso se faz”
Entrevista de Tomás Albino Gomes
Não é uma lista de erros, não é um ultimato àqueles que conjugam o verbo haver no plural fora das raras excepções em que é permitido ou que teimam em colocar uma vírgula entre o sujeito e o predicado. O “Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português”, da autoria de Marco Neves, publicado pela Guerra e Paz, é uma declaração de defesa.
“Não me chamem para lutas absurdas contra a boa língua portuguesa, como ela existe nos lábios de quem fala e nas mãos de quem escreve”, avisa Marco Neves, tradutor, revisor, professor, leitor, conversador. A luta do autor é outra, é pelas palavras e expressões que nos fogem da boca com a descontracção do dia-a-dia, pelo “deslargar”, “estájaver”, pelo “queria um copo de água” e “não há nada”; e contra todos aqueles que querem despojar a língua da sua riqueza oral numa atitude constante de apontar o dedo a qualquer deslize no português – que, como explica este Dicionário, não é um deslize. “Acho, aliás, curioso como alguns dos inventores de erros andam constantemente a lamentar o empobrecimento da língua, quando são os primeiros a querer limitar o seu uso”, sublinha.
Em entrevista ao SAPO24, casa onde é cronista e que conhece bem, Marco Neves fala de erros falsos, do vício e arrogância daqueles que apontam constantemente erros aos outros antes de olharem para os seus, numa conversa embrulhada pela evolução e compreensão de uma língua em que um povo embateu, com o novo Acordo Ortográfico, e que para se manter rica não deve esquecer a herança oral e as suas geografias.
Os livros sobre a língua portuguesa, na sua maioria, são páginas e páginas de combate aos erros mais comuns de ortografia, sintaxe ou oralidade. Mas este “Dicionário de Erros Falsos e Mitos do Português” é diferente, é uma arma de defesa para as pessoas a quem são apontados erros.
É um livro que contraria um pouco a tendência. É preciso corrigir os erros e todos nós, por vezes, temos dificuldade a escrever e a falar, mais a escrever do que a falar. No entanto, acho que uma certa obsessão por procurar o que é o erro nas outras pessoas. Nunca pensamos tanto naquilo que nós próprios fazemos e isso é mais importante do que andar a ver se os outros falam mal ou falam bem. Aqui tento, no fundo, mostrar o outro lado, defender algumas expressões que são consideradas erros e que eu digo que não o são, e tento explicar porquê. São expressões que fazem parte da nossa língua, fazem parte da riqueza dessa língua e por isso estão aí defendidas.
O Marco distingue no livro a diferença entre um erro, colocando-o, de maneira um pouco mais simples, sobre a forma de um erro ortográfico, por exemplo, e a riqueza da oralidade.
A ortografia é uma convenção, está definida até por lei cá em Portugal. Não acontece isso em todos os países, mas por cá temos essa discussão, se devemos usar ou não a ortografia anterior. Eu uso a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico, mas essa está definida, existe uma série de regras que estão no papel e por isso é relativamente fácil perceber quando estamos a errar ou não. No que toca à oralidade, e mesmo na escrita mais criativa, a língua já não é feita no papel. Começa na boca das pessoas, no cérebro dos falantes e só depois é que alguém vai registar quais é que são as regras. Há uma grande diferença entre um erro ortográfico e aquilo que nós podemos dizer que é um erro na oralidade – onde também existem, mas são muito mais difíceis de definir.
Aquelas pessoas que estão sempre a apontar erros no português dos outros irritam-no?
Se me irritam a mim? Eu tento ter uma visão da língua o menos irritada possível [risos]. O que me irrita não é tanto o apontar o erro, porque todos podemos estar enganados, dar erros de português, estar convencidos de que uma coisa é erro e afinal não ser. A questão é mais a arrogância que por vezes aparece neste tipo de discurso, em que quando se apanha alguma falta – que por vezes não é falta, como eu tento explicar aqui, é apenas a forma como a língua funciona – parece que há um certo prazer. E isso irrita-me, essa arrogância, não tanto o corrigir. Eu sou professor, tradutor e revisor, as minhas profissões implicam andar à procura de erros, o problema não é a correcção dos erros, que é necessária e que sempre houve e que sempre continuará a haver, o problema é por vezes a arrogância com que isso se faz.
Também é um livro contra a arrogância?
Aí passamos para o segundo nível, que é o grande combate deste livro, a arrogância com que por vezes algumas pessoas tentam encontrar erros onde eles não existem, quando são apenas uma forma normal da língua funcionar.
Os tais erros falsos do português.
Não é só do português, todas as línguas que tenham uma norma escrita têm este tipo de controvérsias, certas expressões que certas pessoas consideram um erro, mas que são usadas por quase todos nós, algumas delas em situações mais informais, outras em situações também formais. Aparecem por vezes devido a certas análises simplistas ou por certos mitos, e por isso este dicionário também é um dicionário de mitos. Por exemplo, pensar-se que uma expressão tem de fazer sentido se olharmos para o significado de cada uma das suas palavras. Um dos erros falsos é a expressão “já agora”, que algumas pessoas combatem dizendo que não faz sentido porque “já” quer dizer “agora”, e por isso seria uma redundância. Mas, neste caso, “já agora” é uma expressão idiomática, é uma expressão em que as duas palavras em conjunto querem dizer outra coisa, e não querem dizer aquilo que cada uma delas quer dizer. Isto é uma coisa bastante básica do funcionamento da língua, todas as línguas têm expressões idiomáticas. Quando aprendemos uma língua estrangeira aprendemos não sei quantas expressões idiomáticas e às vezes esquecemo-nos de que a nossa própria língua também as tem.
Pegando aqui em alguns exemplos do livro, há um que me salta logo à vista: “deslargar”.
Aí temos uma expressão que não é adequada em certos registos. Eu não defendo que alguém diga esta palavra no parlamento ou numa situação mais formal, mas é uma palavra do registo informal, popular. E não é errada por ser ilógica. É apenas inadequada em certas situações, como há tantas palavras que também são inadequadas em tantas situações. Podemos começar pelos palavrões. Os palavrões são palavras que só devemos usar em certas situações, embora às vezes nos saiam fora do momento. No entanto, não são erros gramaticais, são palavras que têm um uso restrito em termos sociais.
Sou um defensor de que os palavrões têm um espaço na língua portuguesa.
Muito espaço, aliás. E fazem bem! Quando nós damos um pontapé numa cadeira ou numa porta dizemos um palavrão e aquilo alivia a dor. Mas como acontece em muitos casos, as palavras não são adequadas a todas as situações, depende do sítio, dependendo da situação. Às vezes também digo isto ao contrário, imagina uma palavra muito formal. Por exemplo, sua excelência. Não vamos utilizar isto em casa com os nossos filhos ou com os nossos. Mesmo as palavras formais podem não estar adequadas à situação. Todas as palavras têm um lugar. A acusação que se faz muitas vezes ao “deslargar” é que…