«Hoje temos “esta grande controvérsia do acordo ortográfico”, mas “os romanos já tinham resolvido isso”, ao não pronunciarem na oralidade certas letras que apareciam na escrita culta.»
Ou não disse exactamente isto ou, se, ainda que vaga e confusamente, proferiu tal bacorada, então estamos perante um número circense — abrilhantado pelo inerente “palhaço rico” — que ficará decerto nos anais, salvo seja, do anedotário gramatical.
Eu cá, notório ignorante (e insuportável fã de minhoquices), confesso que nunca ouvi alguém a pronunciar seja o que for de outra forma que não “na oralidade”. Como debitar asneiras, por exemplo, sem as deitar pela boca fora? Linguagem gestual, claro, pode ser, mas isso não é bem “na oralidade”. E então? Como pronunciar (ou omitir na pronúncia) “certas letras que aparecem na escrita culta” (ou na escrita inculta, “tipo” menus das tascas) sem ser pela “oralidade”? Fala-se pelas orelhinhas? Utiliza-se qualquer outro orifício corporal para “soprar” umas letrinhas (e omitir outras)?
Insondável mistério. Estou sem palavras. E nem sei por que buraco as faria sair, caso me ocorresse algo para dizer a respeito.
A tautologia, de um ponto de vista gramatical, possui — ao contrário da escatologia, na acepção biológica que remete para a coprofilia, longe vá o agoiro — uma piadética intrínseca de impagável hilariedade. Redundâncias tão comuns como subir para cima, descer para baixo, entrar para dentro, sair para fora ou opinião pessoal, por exemplo, constituem uma espécie de 1.ª Classe do Ensino Primário, de tal forma são… primárias. Mas formulações pleonásticas como esta, “pronunciar na oralidade”, ah, bem, isto é realmente de outro nível, é pleonástico majestático, é abundantemente redundante, é coisa para sair no exame não da 1.ª mas da 4.ª Classe, ou então ainda mais arriba, upa, upa.
“Escreviam como falavam“, afirma Lourenço. Vai daí, toca a “desempoeirar” a gramática latina que, segundo garante, “será para todos“. Argumentum ad baculum, bem entendido, que estendem acordistas por arrevesada analogia sobre o AO90: “escrever como se fala”, “o que não se pronuncia não se escreve“, “facilitar a aprendizagem“, é isso o que significa “desempoeirar” no hiper-acordista jargão TAP (Tretas para Aldrabar Pategos).
Bom, vejamos: se houver por aí quem passe bem sem semelhante coisa, quem aprecie “poeira” na sua gramática e estime “empoeirados” todos os seus livros, pois então que levante o braço.
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A gramática latina “desempoeirada” de Frederico Lourenço será para todos
Nova Gramática do Latim irá para as livrarias a 15 de Março numa edição da Quetzal. Agora o sonho do Prémio Pessoa 2016 é… fazer uma gramática do grego.
A gramática latina mais usada em Portugal teve a sua primeira edição há mais de 50 anos e reflectia ainda os programas e as metodologias do ensino do latim nos liceus antes do 25 de Abril. Mas a partir de 15 de Março estará nas livrarias portuguesas a Nova Gramática do Latim, um volume de 500 páginas preparado por Frederico Lourenço, Prémio Pessoa em 2016, docente de línguas clássicas desde que se licenciou, em 1988, tendo começado o seu percurso profissional como professor de Latim no ensino secundário. A novidade foi apresentada esta segunda-feira de manhã pelo director editorial da Quetzal, Francisco José Viegas, e pelo próprio Frederico Lourenço, num encontro com os jornalistas na Cinemateca, em Lisboa.
“Não sou o primeiro tradutor português da Bíblia a publicar em simultâneo uma gramática de latim porque no século XVIII António Pereira de Figueiredo, o primeiro tradutor da Bíblia completa para português, também foi autor de uma gramática de latim muito utilizada ainda no século XIX”, contou Frederico Lourenço aos jornalistas.
Essa gramática “foi feita com aqueles parâmetros que eram habituais no século XVIII e XIX, em que o latim fazia parte da escolaridade”, lembrou. “Hoje uma gramática como a de António Pereira de Figueiredo não seria útil para ninguém. Era necessário pensar numa gramática do latim feita noutros termos e foi isso justamente que eu quis fazer”, acrescentou Lourenço.
O novo volume será uma gramática moderna e actualizada destinada aos professores e alunos do ensino secundário, aos universitários e também a quem não sabe nada daquela língua mas gostaria de poder olhar para um excerto em latim e perceber o que lá está escrito.
“Muitas pessoas gostariam de saber latim – até pessoas que não estão ligadas às Letras. Outras – historiadores, arqueólogos, linguistas, teólogos, filósofos e lusitanistas – têm consciência de que deveriam saber (bastante mais) latim. E outras, ainda, estão de facto a aprendê-lo em Portugal, na escola ou na universidade, mas sem se darem conta de que, muito provavelmente, usam recursos para o estudo do latim que ainda reflectem, em pleno século XXI, os programas e as metodologias dos liceus no tempo da ditadura de Salazar. Este livro pretende oferecer a todas estas pessoas uma gramática nova, cujo objectivo é sistematizar de forma desempoeirada os tópicos essenciais para a leitura de textos latinos em prosa e em verso”, escreve, no Preambulum deste livro, o seu autor, que está a fazer a tradução mais completa da Bíblia para português e é também tradutor da Odisseia e da Ilíada (e das respectivas versões para jovens).
“Escreviam como falavam”
“Aquelas palavras vernáculas que aparecem nas inscrições latinas, porque os romanos também diziam palavrões, estão aqui. Os romanos escreviam-nas, faziam parte do dia-a-dia. Mas os exemplos também são tirados dos grandes autores clássicos, dos grandes autores cristãos”, explicou Frederico Lourenço, que procurou nesta obra ir buscar exemplos de latim real, autêntico. Evitou por isso o latim forjado, as frases inventadas para se ensinar latim, que aparecem em muitas gramáticas. Achou “mais motivante” dar aos leitores frases de autores reais, desde os mais elevados até àqueles que escreviam com palavrões e com erros de ortografia.Muitos dos grafitos que Frederico Lourenço utiliza servem para explicar que também os romanos escreviam de uma forma fonética. Hoje temos “esta grande controvérsia do acordo ortográfico”, mas “os romanos já tinham resolvido isso”, ao não pronunciarem na oralidade certas letras que apareciam na escrita culta. “Se iam escrever um grafito na parede a mandar alguém àquela parte, escreviam como falavam. É muito importante termos essa noção de que o latim não é uma língua em mármore, foi uma língua viva durante muitos séculos. E é uma língua que nos transmite toda a experiência humana, desde o sexo mais sórdido até à espiritualidade mais elevada. Está tudo presente na literatura latina”.
Nesta nova gramática tentou uma abordagem histórica, que vai desde os exemplos mais antigos que conhecemos do latim escrito até a exemplos do latim cristão mais tardio. “Nisso estou a seguir uma metodologia completamente diferente das gramáticas tradicionais. Uma delas, do século XIX, dizia que era intolerável dar exemplos de latim posterior ao século II. Eu acho que é intolerável não dar. Logo à partida isso nos impediria de dar exemplos de Santo Agostinho, um dos maiores escritores que alguma vez escreveu em qualquer língua e um dos mais talentosos escritores da língua latina.”
Nas gramáticas existentes encontram-se muitas frases atribuídas a Cícero, a Salústio, a Tácito… que eles nunca escreveram. Frederico Lourenço utilizou uma colectânea de toda a obra que existe em latim da Universidade de Harvard para poder fazer essa busca: “Podemos hoje verificar se uma frase supostamente de Cícero é dele ou não. Verifiquei cada citação de modo a que ela seja mesmo aquilo que os autores escreveram. Penso que isso é um aspecto importante desta gramática.”
Quis também que esta gramática fosse um livro interessante sobre a língua latina e sobre a língua portuguesa. Por isso a obra tem vários capítulos de reflexão sobre a história da língua e sobre a literatura latina.
Agora o próximo sonho de Frederico Lourenço é fazer uma gramática do grego.
[Transcrição integral. A gramática latina “desempoeirada” de Frederico Lourenço será para todos | Livros | PÚBLICO. Destaques e sublinhados meus. Imagem de autoria desconhecida, várias cópias na Internet.]
“Hoje temos “esta grande controvérsia do acordo ortográfico”, mas “os romanos já tinham resolvido isso”, ao não pronunciarem na oralidade certas letras que apareciam na escrita culta.” Pois, e quando “não se pronunciam na oralidade certas letras que aparecem na escrita culta”, dá -se um fenómeno de entropia ou perda de informação. Vamos ver um exemplo tirado precisamente da época romana mencionada no artigo acima. Entre os vários nomes que a aristocracia romana punha aos seus filhos temos Cláudio e a sua variante feminina Cláudia. Os habitantes do bairro da Subura (um bairro pobre da Roma Antiga), desejoso de imitar os hábitos da aristocracia,começou a pôr aos filhos os mesmos nomes que aristocracia punha à sua descendência. Só que muitas vezes não compreendiam os nomes e então deturpam-nos completamente. então, julgando estar a pôr os mesmos nomes, começaram chamar Clódio e Clódia aos seu filhos, por Cláudio e Claúdia. Como podemos ver, quando não se pronunciam “na oralidade” as tais letras da escrita culta, os nomes originais ficam irreconhecíveis. Hoje em dia torna-se muito difícil ver a semelhança entre versão culta (Cláudio /Cláudia) e a versão popular (Clódio/Clódia). E, curiosamente, vingou a versão culta em vez da versão popular, mais “porreira” mais amiga da oralidade. É intrigante que um especialista em Cultura Clássica não se aperceba dessa perda de informação e dessa degradação do significado das palavra e defenda o “escrever como se pronuncia” e eliminação de letras da escrita culta da “oralidade”.
Apenas uma correcção, é “hilaridade” que se escrevem, sem aquele “e”.