‘Optimism is the opium of the people.‘ [Milan Kundera]
Crença não é exactamente o mesmo que fé, assim como fé pouco tem a ver com escolha consciente e em nada depende da razão. No entanto, ao que parece, é melhor, respectivamente, tê-la do que não tê-la. A fé, quero dizer, já que as demais variáveis da premissa estão hoje em dia pela hora da morte.
Nesta categoria — que o “povão”, na sua infinita capacidade de síntese, designa como “fia-te na Virgem e não corras” — encaixam perfeitamente os chamados “arremedos”, isto é, aqueles eventos e gestos, aquelas datas e cerimónias ou, em suma, aqueles “actos simbólicos” que valem tudo enquanto simbólicos mas não valem rigorosamente nada enquanto actos; não raramente meras encenações — não ocasionalmente puras macaqueações — de algo inexistente a que o Poder pretende conferir alguma espécie de credibilidade e assim desviar as atenções daquilo que de facto interessa.
O caso mais flagrante de tal tipo de fantochada (designação minha) é o chamado “Natal”: há um dia 25 no calendário em que toda a gente só quer é “paz e amor e passarinhos e florinhas”, o pessoal fecha-se em casa com “os seus” e todos atestam o bandulho (as “broas” em versão Marco Ferreri), ai, mas que grande alegria, vamos cantar-zi-o Jingle Bell-Jingle Bell, que é tão nosso, tão lindo, ó Maria, não te esqueças de guardar aí os ossos do piru para dar aos pobrezinhos, óvistes? E pronto, bate a meia-noite e oferecem-se prendas, arruma-se o estenderete e xixi-cama. No dia seguinte, 26, tudo volta ao normal, durante outras 364 jornas a única dúvida existencial que por vezes assalta o maralhal é se ainda há quem acredite no Pai Natal.
Bom, mas lá voltamos à presunção básica, não haja dúvidas, também no que respeita ao Natal é melhor havê-lo (e tê-lo) do que não tê-lo (ou não havê-lo).
E quem diz Natal, salvas as devidas distâncias, diz o “Dia De” (não confundir com “Dia D”, que é ligeiramente diferente). Há um Dia da Mulher, por exemplo, como o Dia do Mar ou o Dia da Árvore (palpita-me que ainda vamos ter o Dia do Aquecimento Global, um destes dias), e há os dias feriado, os civis e os religiosos, Páscoa, Carnaval, Ano Novo, Santo António, São João, São Pedro, um Santo por dia, ui, vai por aí um engarrafamento de santos que até ferve, são mais q’as mães, salvo seja, e Dia Disto e Dia Daquilo é a gastar, já só falta um dia (feriado, bem entendido, que o pessoal adora comemorar o Dia do Banho de Sol sempre que possível) em que se “comemore” ou “enalteça” ou “recorde” uma qualquer raça canina (o Dia do Galgo Afegão seria giro, ou o Dia do Chihuahua, porque não).
Salvas as devidas distâncias, repito, pois não é certo que sirvam para alguma coisa, uns, e que não sejam absolutamente ridículos, outros, todos estes Dia De entupindo o espaço entre luas não passam também de fantochadas com a finalidade de entreter as massas ignaras. Fantochadas essas que as ditas massas agradecem, veneradoras, atentas e obrigadas, lamentando apenas que lhes não concedam os “eleitos”, em havendo pão, ainda mais circo.
Pão e circo, portanto e afinal, o fulcro da questão em toda a sua primordial simplicidade. Quando (supostamente) Juvenal crismou a essência da conservação do Poder — culto das aparências, apagamento da memória, erosão da consciência cívica — estaria decerto muito longe de sequer imaginar que dezanove séculos depois a sua formulação, tão perene e exacta como H2O, estaria ainda mais próxima da pureza absoluta.
A cidadania também é uma questão de cultura
A noção de cidadania é algo que a cultura do espírito não deve ignorar, na sua formação primária.
Nuno Pacheco
“Público”, 28.02.19
A Casa da Democracia (o parlamento) abriu-se esta terça-feira à Casa da Cidadania, no que constituirá um acto simbólico de aproximação entre eleitos e movimentos sociais. Antes de falarmos da essência de tal acto (a 3.ª Conferência Anual da Plataforma de Associações da Sociedade Civil – Casa da Cidadania, reunida desta vez na Sala do Senado da Assembleia da República), recuemos na História, em busca das origens da moderna noção de cidadania que, sendo designação muito antiga, adquiriu um novo significado a partir do século XVIII.
O Dicionário Etimológico de José Pedro Machado, ao procurar “o sentido moderno” de tal palavra, encontrou as suas origens prováveis em França. Terá sido em Outubro de 1774, quando Pierre-Augustin Beaumarchais (1732-1799), dramaturgo, autor de O Barbeiro de Sevilha ou As Bodas de Fígaro, usou a palavra “cidadão” num contexto de litígio, após ter sido processado por um conselheiro de Paris. Terá dito Beaumarchais: “Eu sou um cidadão; não sou nem um banqueiro, nem um abade, nem um cortesão, nem um favorito, nada daquilo que se chama uma potência; eu sou um cidadão, isto é, alguma coisa de novo, alguma coisa de imprevisto e de desconhecido em França; eu sou um cidadão, quer dizer, aquilo que já devíeis ser há duzentos anos e que sereis dentro de vinte talvez!” Não se enganava: em 1791, a Constituição nascida da Revolução Francesa (1789-1799) deu o qualificativo de cidadão (citoyen) a todo e qualquer membro do Estado, substituindo o anterior tratamento de senhor e senhora (monsieur e madame). E a Marselhesa, hino composto nos fervores revolucionários, em 1792, registou o “Aux armes, citoyens” (às armas, cidadãos) que ainda hoje se mantém, apesar das muitas mudanças desde então.