Em Janeiro de 1990, o então Primeiro-Ministro chamou o seu Secretário de Estado da Cultura, o inefável Pedro Santana Lopes, e — segundo declara este mesmo — encarregou-o de duas tarefas “principais”: «assegurar que o CCB estivesse pronto a tempo de receber a 1.ª presidência portuguesa das Comunidades Europeias, a 1 de Janeiro de 1992, e negociar e assinar o Acordo Ortográfico.» [Uma História (Muito) Mal Contada – I]
Desde o início, o elemento-chave do “projeto” passava necessariamente por manter em segredo que o AO90 não é mais do que simples transcrição, literal e integral, da desortografia brasileira, impondo tal salgalhada e erradicando o Português-padrão de uma só penada.
Sendo essa erradicação do Português-padrão, por via do AO90, “apenas” um efeito colateral do “projeto” geopolítico e neo-colonizador na sua globalidade, era e continua ainda hoje a ser absolutamente crucial o papel de desinformação realizado por especialistas em ambas as matérias: mistificação ideológica e empastelamento técnico.
Portanto, foram aumentando paulatinamente — e em breve sê-lo-iam vertiginosamente — as fileiras de recrutas formados e experientes tanto em linguística como em política, de académicos e jornalistas a “figuras públicas” e deputados, passando por “bloggers”, profissionais e consumidores compulsivos de “causas” avulsas, confusionistas, intriguistas e outros artistas; havia que distribuir um imenso estendal de tachos para igual número de tachistas. Toda essa gente, ou paga à peça ou já com posto e contrato de trabalho nos diversos “institutos” e organismos entretanto criados ad-hoc, ia já formando um considerável exército de dependentes que acabaria por transformar-se na própria razão de existência das instituições que lhes garantiam o sustento. Exemplo flagrante desta relação de causa e efeito, à semelhança do que, de resto, sucede com qualquer elefante branco burocrático, é a CPLP, dita “Comunidade de Países de Língua Portuguesa”, comprida designação para tão curta (ou nula) utilidade. Ordenados, alcavalas e despesas, tudo a expensas exclusivas do Estado português, bem entendido, por conta do qual, aliás, correm todos os encargos da “difusão e expansão” da “língua universal” brasileira.
O réveillon de 2003 para 2004, por conseguinte, deve ter sido bem comido e melhor bebido, em especial nos casinos do Rio, pois estariam com certeza os convidados portugueses muito satisfeitos, pudera, o seu “projeto” corria às mil maravilhas, tudo lhes ia saindo bem e estavam então a um pequeno passo de garantir a meta imediata, que viria a ser importantíssima. Aliás, diziam então os acordistas mais optimistas e bonacheirões (também há disso, nem todos têm um aspecto sinistro), só faltava um empurrãozinho, uma ajudinha, um jeitinho — depois da próxima, as etapas seguintes não seriam mais do que um passeio.
- 5.ª etapa: 2004-2006. Assim que as condições político-partidárias o permitiram, qual conjugação astral favorável, isto é, logo que “ficaram reunidas todas as condições” para o efeito, os funcionários portugueses ao serviço do Palácio do Planalto — ainda e sempre atónito perante a inusitada subserviência tuga — trataram de aplicar o golpe final. Ao arrepio do Direito dos Tratados (Convenção de Viena) e da Constituição da República Portuguesa, os ditos funcionários combinaram entre si avançar de imediato com a golpada (i)legal prevista no “projeto” inicial e de que, aliás, todo o plano depende em absoluto: qualquer Tratado internacional tem de ser subscrito por todos os Estados envolvidos (por isso mesmo designados como “Estados signatários”) mas semelhante coisa não diz nada a quem tudo pode e tudo manda, como é o evidente caso da casta patrocinadora do AO90; portanto, sem mais, inventaram que em 2002 «se adoptou a prática, nos Acordos da CPLP, de estipular a entrada em vigor com o depósito do terceiro instrumento de ratificação». Portanto, esgalhe-se já um papel para o Brasil ratificar depressa, o que sucedeu em 2004, seguindo-se Cabo Verde, em 2005, e S. Tomé e Príncipe, em 2006.
- 6.ª etapa: 2006-2008. Àquele curioso papel, furiosamente subscrito de rajada por 3 para valer por 8, foi atribuída a enganadora designação de “Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa“. Depois das referidas ratificações iniciais, firmadas por três Estados, dois deles tão díspares do terceiro quanto, por exemplo, o Principado da Pontinha difere da favela da Rocinha, estava, para todos os efeitos, consagrada a “adoção” automática (através de um mecanismo legal inédito que ficará para a História como “ratificação por osmose”) da cacografia brasileira. Ora, para fazer com que a população portuguesa em geral engolisse tão incrível vigarice, mesmo não havendo qualquer problema a nível político, visto a respectiva aprovação parlamentar já estar mais do que garantida, à cabeça, tornava-se necessário recrutar ainda mais “fazedores de opinião”, “técnicos” e, principalmente, “linguistas” (ou simples curiosos na matéria, desde que trajados a rigor e penteadinhos a preceito), os quais, devidamente industriados, certamente iriam calar alguma voz dissonante e abafar a mais pacífica das rebeliões. Mas isso, dissonâncias e rebeliões — ele há malucos para tudo, até há quem não se assuste com títulos académicos e não se deixe intimidar por palavreados técnicos ou pelos gorilas e rufias da gente fina — são por definição imprevisíveis, portanto depois se vê, assim de momento e para já, o que interessa é um papelucho a dizer que Portugal verga a mola, baixa a grimpa, não apenas “adota” o AO90 como ratifica o tal II Protocolo. A lusitana aquiescência — não apenas tácita mas também, de preferência, com uma aparência de adesão entusiástica – serviria para enfeitar a fraude com alguns resquícios de suposta credibilidade.
- 7.ª etapa: 2008-2010. E assim sucedeu, como previsto: não foi Portugal, foi apenas o parlamento português, mas o facto é que toda a tralha brasileirófila passou, o Protocolo era aprovado no Parlamento — pela esmagadora maioria dos deputados, grande parte dos quais não faziam a menor ideia daquilo em que estavam a votar — e assim o AO90 triunfante entraria em vigor logo que tramitassem as formalidades da ordem. Esta derradeira golpada, a machadada final desferida pela mão invisível, convencionaram os ilustres tribunos crismar como “Resolução da Assembleia da República n.º 35/2008“. Com esse instrumento, legal e politicamente, portanto, ou seja, ilegal e vergonhosamente, não apenas o “projeto” estava aprovado e em curso de “implementação” como também parecia imparável, irreversivelmente consumada a violação. No entanto, ainda durante esse biénio, antecedendo a “efetiva” entrada em vigor do AO90, muita gente acreditava em que tudo aquilo era… inacreditável. E que, portanto, acabaria por morrer de morte natural, seria inevitavelmente esquecido, ficaria ad aeternum — e de novo — sepultado numa qualquer gaveta ministerial. Como que por magia, ou talvez apenas porque os portugueses são assim mesmo, crêem sinceramente em que para resolver um problema basta ignorá-lo, toda a “oposição” desapareceu, evaporou-se, volatilizou-se precisamente quando era mais necessária: durante mais de um ano, depois de arquivada (a 8 de Abril de 2008) uma petição “discutida” pouco antes da aprovação do II Protocolo Modificativo (a 16 de Maio), ninguém mais piou, tugiu ou mugiu sobre o assunto. Até que…
- 8.ª etapa: 2010-2012. Até que, em Abril de 2010, foi lançada por um gajo qualquer a “Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o acordo ortográfico“. Esta iniciativa transformou-se rapidamente numa espécie de movimento cívico pela reposição da normalidade ortográfica. No meio do cAOs já então emergente, essa ILC preconizava a revogação ou a anulação da RAR 35/2008; representando esta a ratificação do II Protocolo Modificativo, o qual implicava a entrada em vigor do AO90, então a anulação da Resolução parlamentar significaria que o AO90 voltava a não estar em vigor em Portugal; essa anulação implicaria também a reversão da ratificação do II Protocolo, ou seja, Portugal voltaria a não aceitar o AO90 sem a ratificação de todos os oito Estados-membros da CPLP e não apenas de três deles, por um lado, e, por outro, tornaria inúteis e de nenhum efeito quaisquer leis, regulamentos, ordens e determinações subsequentes, dependentes da ou relacionadas com a mesma Resolução. Na prática, seria o mesmo que voltar ao início, à situação anterior à primeira etapa, ao exacto ponto em que estávamos antes mesmo do prólogo (1975-86). Por simples exclusão de partes, esta era a única saída airosa, exequível e efectiva para o imbróglio histórico, para o impasse político e para o cAOs ortográfico que o AO90 tinha originado. Em duas situações apenas seria possível alguém, com um mínimo de letras e um módico de tino, não entender algo assim tão simples, não perceber o nexo de causalidade ou, em suma, negar as evidências: ou por pobreza de espírito, digamos, caritativamente, ou por interesse na questão, digamos também, mas ironicamente. Na verdade, a despeito de a grande massa de adesões ter sido imediata e de boa fé, desde o primeiro dia, menos de um ano depois do lançamento da ILC-AO já a ela tinham fingido aderir largas dezenas de “pobres de espírito”, consumidores de causas e outros maluquinhos com as mais diversas (e divertidas) manias, mas também um nada despiciente número de acordistas encapotados, vaidosos patológicos e — esta sim, a mais perniciosa das espécies — agentes duplos. As etapas seguintes já tinham um roteiro traçado, portanto, os senhores (e senhoras) agentes estavam ali para controlar o pelotão.
(continua)