Dia: 19 de Julho, 2019

Azul rosa

 

Morte aos epicenos e a quem os apoiar!

José Ribeiro e Castro
“Observador”, 19.07.19

 

Nunca agradeceremos bastante à 13ª Legislatura por jorrar luz nos pedregosos caminhos da gramática nacional, varrendo o obscurantismo das letras e expurgando de formas traiçoeiras a escrita patriótica

1. Somos um povo iluminado pelos astros. Agora que termina a legislatura, é a hora de o destacar e exaltar. Galgando em pedaladas vigorosas para a liderança da Civilização, os legisladores velam pela higiene mental dos cidadãos (e, bem entendido, das cidadãs), com foco incisivo nos conceitos e no esmero das palavras. Ao mínimo deslize, cairíamos de novo na barbárie. Mas podem as leitoras (também os leitores) descansar, tranquilas (ou tranquilos), que os nossos deputados (e, é claro, deputadas) nunca dormem diante das ameaças e esgrimem como ninguém o sabre certeiro da lei.

Assim nasceu proeza pouco conhecida: a Lei n.º 4/2018, de 9 de Fevereiro, regime jurídico da avaliação de impacto de género de actos normativos. Foi criada a luminosa burocracia que, em avaliação prévia ou sucessiva, perscruta, vigilante, na forma e na substância, todos os actos normativos da administração central e regional e da Assembleia da República. A Pátria pode dormir descansada, confiada aos cuidados implacáveis da nova vaga de zeladoras – e, obviamente, zeladores também.

O diploma inspirará por certo estudos e doutoramentos, nos múltiplos ângulos do amplo olhar examinador. Aqui, quero apenas abraçar a causa do artigo 4º (Linguagem discriminatória): “A avaliação de impacto de género deve igualmente analisar a utilização de linguagem não discriminatória na redação de normas através da neutralização ou minimização da especificação do género, do emprego de formas inclusivas ou neutras, designadamente por via do recurso a genéricos verdadeiros ou à utilização de pronomes invariáveis.”

Aí está o assobio para novo galope sobre a gramática. Já que o Estado pôs a mão na massa pelo Acordo Ortográfico, é oportuno que regule a própria licitude da escrita, banindo de vez usos vocabulares próprios de culturas sexistas, homofóbicas, discriminatórias, em suma, trogloditas.

2. Nesta gesta de elevação civilizacional para “neutralização ou minimização da especificação do género”, a generosidade dos luso-legisladores (e luso-legisladoras, claro) assegurou-nos a licitude dos “pronomes variáveis” – como “quem” ou “alguém” – e de “genéricos verdadeiros”. Nós agradecemos. Ou melhor: agradecemos quanto aos primeiros, mas temos de aprofundar com zelo a desambiguação dos genéricos.

Desde logo, nos substantivos comuns de dois géneros, a proclamação da forma “a Presidenta” impõe outros bravos avanços: o agente/a agenta; o cliente/a clienta; o doente/a doenta; o gerente/a gerenta; o resistente/a resistenta; o servente/a serventa; etc. Do mesmo modo quanto a todos deste grupo, eliminando aparências efeminadas ou asfixias machistas: o anarquisto/a anarquista; o artisto/a artista; o camarado/a camarada; o chefe/a chefa; o colego/a colega; o colegial – a colegial; o compatriôto/a compatriota; o dentisto/a dentista; o fão/a fã; o herege/a hereja; o imigranto/a imigranta; o indígeno/a indígena; o intérpreto/a intérpreta; o jornalisto/a jornalista; o jovem/a jovenza; o juristo/a jurista; o mártir/a mártira; o pianisto/a pianista; o selvagem/a selvagenza; o suicido/a suicida; o taxisto/a taxista; etc. Hesitação não, ambiguidades nunca!

Os substantivos sobrecomuns – que, na escrita retrógrada, apresentam um só género – devem seguir a mesma rota gramaticalmente correcta, distinguindo, como é imperativo, o género a que se refiram. Assim: o algoz/a algoza; o apóstolo/a apóstola; o carrasco/a carrasca; o cônjugo/a cônjuga; o crianço/a criança; o criaturo/a criatura; o defunto/a defunta; o ente/a enta; o estrelo (de cinema)/a estrela (de cinema); o génio/a génia; o ídolo/a ídola; o indivíduo/a indivídua; o monstro/a monstra; o pessôo/a pessoa; o ser/a sêra; o testemunho/a testemunha; o verdugo/a verduga; o vítimo/a vítima; etc. Desta linha só sobrevive “o anjo”, pelo facto incontornável de que não lhe conhecemos o sexo.

3. Por fim, há que banir os epicenos, o mais ominoso rasto cultural da idade das cavernas: substantivos que, nomeando animais, apresentam (vejam lá!) um só género para masculino e feminino. A sua subsistência inspiraria reaccionarismos na nomeação homem/mulher, por exemplo na expressão “direitos do Homem” substituída por “direitos humanos”. São um óbvio perigo de restauracionismo das trevas linguísticas.

Assim, teremos: o abutre/a abutra; o águio/a águia; o andorinho/a andorinha; o aranho/a aranha; o baleio/a baleia; o barato/a barata; o beija-flor/a beija/flôra; o besouro/a besoura; o borboleto/a borboleta; o camaleão/a camaleoa; o carapau/a carapua; o cavalo-marinho/a égua-marinha; o chimpanzé/a chimpanzá; o cóbro/a cobra; o corvo/a corva; o crocodilo/a crocodila; o dromedário/a dromedária; o escorpião/a escorpioa; o falcão/a falcoa; o foco/a foca; o formigo/a formiga; o gaivoto/a gaivota; o girafo/a girafa; o gorilo/a gorila; o hieno/a hiena; o hipopótamo/a hipopótama; o jacaré/a jacará; o jiboio/a jiboia; o melgo/a melga; o mosco/a mosca; o mosquito/a mosquita; o pando/a panda; o peixe/a peixa; o pinguim/a pinguina; o polvo/a polva; o pulgo/a pulga; o rinoceronte/a rinoceronte; o rouxinol/a rouxinola; o sapo/a sapa; o sardinho/a sardinha; o serpente/a serpenta; o tartarugo/a tartaruga; o tatu/a tatúa; o tigre/a tigresa; o zebro/a zebra; etc.

Jamais agradeceremos suficientemente à 13ª Legislatura por jorrar luz nos escuros e pedregosos caminhos da gramática nacional, varrendo o obscurantismo das letras e expurgando de formas traiçoeiras a escrita patriótica.

Obrigado a PS, BE, CDS-PP, PEV e PAN, que aprovaram este indispensável foguete para o progresso. Estamos salvos! – e salvas, é claro.

Nota: este texto, numa versão mais curta, foi publicado inicialmente pelo autor no espaço de crónicas “Aquém-Guadiana” da revista bimestral MAIS ALENTEJO, n.º 150, Julho/Agosto 2019.

Source: Morte aos epicenos e a quem os apoiar! – Observador

“O único tabu”

Haverá sobre o Acordo Ortográfico uma clara posição parlamentar? Ou para lamentar?

Um acordo é um acordo: faz-se, se é útil; desfaz-se, se é inútil. O que sair sexta-feira do Parlamento deve, pois, ser claro. Só que isso implica coragem. Haverá?

Nuno Pacheco
“Público”, 18.07.19

 

No sábado, o Expresso noticiou, e outros jornais disso fizeram eco, que o relatório final do Grupo de Trabalho para a Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo Ortográfico (só o nome, pela sua extensão, espelha bem o pesadelo que rodeia a coisa) aponta para “novas negociações”. E alinhava, de forma sintética, o que estaria na base da tal recomendação. Ora a notícia baseou-se no documento que, elaborado (naturalmente) pelo coordenador e relator desse grupo, o deputado José Carlos Barros (PSD), circulava já pelos partidos e, portanto, começava a ser público. Problema? O do costume. Apesar de este grupo de trabalho já existir desde 20 de Janeiro de 2017, cessando funções nesta legislatura, parece muito difícil chegar a consenso sobre tão magno tema. O relatório, nas suas dezenas de páginas, enumera os muitos contactos e depoimentos prestados, a favor e contra o AO. Aí, mostra-se descritivo, como deveria ser. Porém, no final, ousa: tem conclusões e recomendações. E isso é sinal de que trabalhou bem; ouviu, analisou e sugeriu. Não é para isso que serve um grupo de trabalho?

Nem todos pensarão o mesmo. O PS, na reunião da Comissão de Cultura desta quarta-feira, exerceu o seu direito potestativo para adiar a discussão. Que vai realizar-se esta sexta-feira, de manhã cedo, talvez para que os deputados meditem bem durante o sono da véspera. Ao fim de quase dois anos de trabalhos e consultas, foi preciso ainda empurrar o assunto para um quase “abismo”. Porque dia 19 é o último dia de trabalho no Parlamento. Depois, férias e eleições.

O que concluía, então, o relatório, que tanta ponderação exige? Primeiro, que “a aplicação do Acordo Ortográfico, bem como a concretização dos objectivos que se propunha atingir, continuam longe de ser uma realidade do ponto de vista político e social.” Alguém duvida? Depois, que “o tom da discussão entre opositores e defensores do Acordo continua aceso, com posições, em regra, extremadas e argumentos, de um e outro lado, inconciliáveis.” Óbvio e incontestável. Depois, alinhando pacientemente os argumentos pró e contra o AO (retirados dos depoimentos, que cita), a vários níveis, jurídico e diplomático, educativo e, político, bem como “a comprovada existência de opções discutíveis, incongruências e ambiguidades do Acordo Ortográfico do ponto de vista técnico” (e isso até os defensores do AO admitem), recomenda, em traços gerais, o seguinte: 1) “Que o Governo dê início a uma negociação político-diplomática” na CPLP “com vista à discussão da situação actual ao nível da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 e a ponderação das decisões mais adequadas neste domínio, incluindo a possibilidade e o interesse de se dar início a um processo de alteração ou aperfeiçoamento do actual Acordo ou à negociação de um novo Acordo Ortográfico.” 2) “A constituição de uma Comissão Científica Independente para a Ortografia” que acompanhe tal processo; 3) “A realização de estudos, envolvendo os serviços do Estado e as comunidades académica, científica, literária e profissionais, com vista à avaliação das implicações da aplicação do Acordo Ortográfico no sistema educativo, no mercado editorial e na imprensa, bem como ao nível da estabilidade ortográfica nos serviços públicos e nas publicações oficiais.” Seria bonito, pelo que se conhece, ler o resultado de tal estudo…

Mas o que está aqui em causa é uma coisa bastante simples: ou o Grupo de Trabalho cumpre a sua missão, honrando o Parlamento (goste-se ou não das conclusões e recomendações – mas isso, com eleições à vista, há-de ficar para outro governo), ou arrumarão todo o trabalho que teve, e não foi pouco, na gaveta das decisões para lamentar. Deixemo-nos de rodeios: de todos os temas submetidos ao Parlamento, o único a que se pede “xiu”, o único tratado como tabu, é o deste Acordo Ortográfico. Tem-se discutido abertamente (e bem!), esgrimindo argumentos opostos, o aborto, a eutanásia, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a adopção, mas quando se chega ao Acordo Ortográfico, logo surge uma barreira, um temor, um incómodo. E, no entanto, a palavra escrita é algo diário, quotidiano, corrente, a que nunca deixamos de estar ligados, seja em que área for. E quem diz a escrita, diz a forma como ela se vai desfigurando, a ponto de doutos senhores afirmarem publicamente que já não sabem bem como se escreve.

Foi para isto que um punhado de seres se bateu acerrimamente por um Acordo Ortográfico? Não, não foi. Mas é para isso que o temos. Para escrever a calar. Razões, que as leve o vento! O tema da Língua Portuguesa, da sua ortografia (e das necessárias variantes nos países onde ela é falada e escrita) e do seu futuro, apesar das declarações enfáticas de vários governantes, há-de ser tratado como um não-tema ou coisa não discutível, e seria até colocado a seguir à definição da composição da alpista para canários se tal tema fosse agendado no Parlamento.

Pois bem: contrariemos o tabu. É urgente discutir, questionar, pôr em causa o que alguns têm por intocável e imutável. Um acordo é um acordo: faz-se, se é útil; desfaz-se, se é inútil. O que sair sexta-feira do Parlamento deve, pois, ser claro. Só que isso implica coragem. Haverá?

[Transcrição integral de artigo da autoria de Nuno Pacheco publicado no jornal “Público” de 18.07.19. “Links” meus. Imagem (recorte) de topo de: “O Globo” (Brasil).]