Ninguém se entende sobre o que não se entende

Mais uma nota prévia

À semelhança do artigo anterior, publicado pelo jornal “i”, também este outro, do jornal “Público”, merece um alerta para que as pessoas não tropecem em trapalhadas e confusões de quem, pelos vistos, ou não estudou o assunto ou não fez os “trabalhos de casa”. Logo de entrada, como é perfeitamente visível no original online, deparamos com uma fotografia legendada com esta frase bizarra: «O mais recente Acordo Ortográfico alterou outro de 1990»

Perdão? Como disse? Ai este “mais recente” AO90 altera o “outro” AO90? Ah, perfeitamente, então “o mais recente” será porventura o AO2019 e este “alterou outro”, a saber, precisamente o de 1990. Maravilhoso. Se calhar, até houve mais “acordos ortográficos” desde 1990, nós é que andamos distraídos e lá deixámos passar um ou outro AO sem darmos conta da marosca. As coisas que a gente aprende!

Portanto, encaremos tal legenda da fotografia no artigo original como uma espécie de mote. E, por conseguinte, leiamos o artigo propriamente dito com o devido e justificadíssimo “pé-atrás”. A troca-tintagem não se fica pela baralhação de datas dos “acordos” que “são” um só, há no texto agora citado um verdadeiro estendal de confusões; por exemplo, para referir somente a mais grave (e anedótica) delas, não é verdade — bem pelo contrário — que exista  «uma iniciativa legislativa de cidadãos que não saiu da gaveta». A ILC-AO não apenas saiu da gaveta” como foi já entregue no Parlamento, o respectivo Projecto de Lei está legalmente enquadrado e foi publicado pela própria Assembleia da República, aguardando-se agora a respectiva tramitação e consequente agendamento para discussão e votação em plenário. Acresce que a referida iniciativa cívica não tem nem nunca teve rigorosamente nada a ver com o Grupo de Trabalho parlamentar referido na peça do “Público”, até porque isso seria um incrível contra-senso: esse GT pretende ser “de Avaliação do Impacto da Aplicação” do AO90 enquanto que aquela Iniciativa tem por finalidade, no espírito e na letra, a revogação da entrada em vigor do mesmo AO90. Coisas que mutuamente se excluem, evidentemente, porque uma pretende avaliar o impacto caótico de uma aplicação absurda e a outra visa a liquidação pura e simples dessa mesma fantochada.

Enfim, isto saiu na edição online do jornal, pode ser que amanhã o artigo na edição em papel seja corrigido. De qualquer forma, leia-se com pinças. Mentais, bem entendido.

Parlamento não se consegue entender sobre o que fazer ao acordo ortográfico

Coordenador do grupo de trabalho fez um relatório em que recomendava ao Governo que fizesse uma “negociação politico-diplomática” com os países da CPLP para aferir do interesse de alterar o acordo. Partidos recusaram porque nunca discutiram fazer recomendações.

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Passaram quase dois anos e meio, foram ouvidas 16 entidades e recebidos vinte contributos escritos, houve uma petição, um projecto de resolução chumbado e uma iniciativa legislativa de cidadãos que não saiu da gaveta. E a Assembleia da República continua no mesmo ponto em que estava há quatro anos: os deputados não se entendem sobre o que fazer ao acordo ortográfico.

A prova está no relatório do grupo de trabalho para a avaliação do impacto da aplicação do acordo ortográfico de 1990, que desde Março de 2017 voltou a ouvir quem está contra e a favor. Os deputados do grupo de trabalho (GT) criticaram duramente o facto de o documento, elaborado pelo coordenador, o deputado do PSD José Carlos Barros, incluir um capítulo com recomendações quando estas nunca foram discutidas no grupo. À esquerda, PS, BE e PCP não se reviam nas conclusões e recomendações, à direita PSD e CDS reviam-se mas entendiam que o coordenador não teria o poder de fazer recomendações que o grupo de trabalho não discutiu.

Numa primeira versão, o relatório recomendava que “o Governo dê início a uma negociação político-diplomática entre as autoridades dos diversos Estados-membros da CPLP, com vista à discussão da situação actual da aplicação do acordo ortográfico de 1990 e a ponderação das decisões mais adequadas neste domínio, incluindo a possibilidade e o interesse de se dar início a um processo de alteração ou aperfeiçoamento do actual acordo ou à negociação de um novo acordo ortográfico”. José Carlos Barros propôs depois que se recomendasse, de uma forma mais geral, a “criação de condições” para essa discussão, sem que fosse uma incumbência ao Governo.

A segunda recomendação apontava para a “constituição de uma Comissão Científica para a Ortografia, formada por personalidades representativas das comunidades académica, científica, literária e profissionais, para efeitos de acompanhamento” daquelas negociações político-diplomáticas que se estabelecessem. E a terceira propunha a realização de estudos envolvendo os serviços do Estado e aquelas comunidades “com vista à avaliação das implicações na aplicação do acordo no sistema educativo, no mercado editorial e na imprensa, bem como ao nível da estabilidade ortográfica nos serviços públicos e nas publicações oficiais”.

O relatório tinha de ser votado nesta quarta-feira no GT para poder ser analisado e ratificado na comissão de Cultura – tudo tem que estar pronto antes do último plenário de sexta-feira. Apesar das várias alternativas discutidas pelos deputados para tentar ultrapassar as dificuldades de se estar a chegar ao fim do prazo dos trabalhos, o PS pediu o adiamento potestativo da votação, pondo em risco até a existência de um relatório.

José Carlos Barros disponibilizou-se, primeiro, para retirar o conteúdo mais directo das recomendações ao Governo, mas perante a recusa dos deputado, propôs transformar essas recomendações apenas na opinião do relator, não vinculando, assim, os restantes deputados e grupos parlamentares. Mas o PS manteve-se irredutível no adiamento. “Não haver relatório dos trabalhos deixa-nos mal a todos”, avisaram o CDS, o Bloco e o PCP.

Ao PÚBLICO, o deputado do PSD lamentou que “não haja condições no grupo de trabalho para fazer recomendações como um todo” e que a questão do acordo ortográfico continue a ser um “tabu na sociedade e na política” portuguesas. Na passada legislatura também houve um grupo de trabalho no Parlamento mas que não fez quaisquer recomendações depois de todas as audições e contributos que recebeu – limitou-se a fazer um relatório descritivo.

“Não podemos ter esta atitude de não abordar o assunto. Temos de analisar o que se passa no ensino; saber por que, 30 anos depois de assinado, ainda há quatro países que se opõem à sua aplicação, como é o caso de Angola, que não o vai ratificar”, defende José Carlos Barros, acrescentando que o PSD “deve, no mínimo, considerar uma avaliação séria no seu programa eleitoral”.

O assunto do relatório poderá ser resolvido numa reunião da comissão de Cultura na sexta-feira, às oito da manhã – porque o último plenário da legislatura começa às nove e promete ter um extenso guião de votações.

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