Este é um daqueles textos que, como dantes de se dizia sobre o Melhoral, não faz bem nem faz mal.
Não faz mal porque sempre é mais um (artigo, articulista) a avivar a questão; dito de uma forma canhestramente metafórica, é como quando alguém remexe as brasas de uma fogueira, atiçando-a de novo, ainda que por breves instantes, fazendo estalar a madeira e destas voando umas quantas chispas incandescentes. Nada de muito consequente, por conseguinte, mas não se pode ter tudo.
Porque na parte do Melhoral que não faz bem, mas mesmo nada bem, ah, quanto a isso é que estamos a engolir umas mezinhas ligeiramente tóxicas, em especial se em excesso: o paleio habitual, as rituais lacunas e incongruências do costume, as imaginárias questões legais envolvidas, a maravilhosa lista de “notáveis” que impressiona — quase esmaga, a bem dizer — os habitantes do Bairro Alto e arredores.
E como se não bastassem já os efeitos secundários, ainda há outro, bem pior do que os referidos: este simultaneamente estranho analgésico e inócuo anti-pirético contém a peregrina ideia de um debate televisivo sobre o AO90. E logo no programa de Fátima Campos Ferreira, valha-me Deus, como se não houvesse nada de mais sério ou, ao menos, de minimamente credível! Correu mal a prescrição. O “Prós e Contras” da RTP1, caramba! Uma feira de vacuidades em forma de estendal comunitário, por entre cujos varais comadres lavadeiras e vizinhas maldizentes penduram com molas cada qual seu rol de argumentos; tudo, pensamentos, ideias e argumentos do mais volátil que é possível inventar, razões dependuradas por cada qual segundo o espírito levezinho do momento, vagamente meditabundo sempre, descaradamente intriguista quando calha, no intuito geral e primordial de que pareça a roupinha de cada qual a mais alva, enxuta e imaculada de toda a concorrencial comandita.
O AO90 não é uma causa de consumo, santinhos, e não carece de conversa fiada, filmada em estúdio ou sussurrada nos bastidores. Tratando-se da cacografia brasileira que pretendem impingir-nos, dispensa-se perfeitamente qualquer tipo de esterilização mental ou de entubagem da estupidez, por mais ilustre que seja o corpo clínico ao qual se atribua a autópsia em vivo. “Aquilo” não é chegar lá, debitar brilhantismos de estarrecer (maravilhas de fazer embasbacar os simples) e pronto, está despachada a questão ortográfica, assunto resolvido, agora vamos todos à nossa vidinha, o que se segue, qual é o próximo tema fracturante sobre que devemos “discutir”, olha, e se a gente fosse antes ali ao Gambrinus debicar uns petiscos, que isto ele, com mil raios, ser especialista numa data de assuntos dá cá uma destas fomecas…
Ninguém para para pensar no Acordo Ortográfico
António Jacinto Pascoalpublico.pt 01.01.20
Há umas semanas, um amigo fez o favor de me enviar o documento Pordata, Retrato de Portugal 2019, da responsabilidade da Fundação Francisco Manuel dos Santos, no qual se trata estatisticamente a sociedade portuguesa em várias vertentes, de 1960 à actualidade, em colaboração com mais de 60 entidades oficiais de informação, sob o lema “Um convite à discussão informada sobre os factos”. Uma particularidade: todo o documento está redigido na versão do Acordo Ortográfico de 1945 (AO45).
Para além do facto de alguns organismos públicos manterem – é possível que estejam em processo de alteração – as autodenominações segundo o AO45 (ainda há dias me cruzei com uma carrinha da Protecção [sic] Civil de Almada), a própria RTP (que peleja do lado do Acordo Ortográfico de 1990) deixa escapar inúmeros casos em que a flutuação gráfica entre o AO45 e o AO90 é evidente, quer em apontamentos de rodapé, quer em destaques ou ainda em transcrições gráficas de enunciados orais ou escritos. Deixo alguns exemplos, enfatizados a itálico: “Greve em França – Eliseu afirma que actual sistema de pensões (…)” (10 de Dezembro de 2019); “Tribunal Comarca de Lisboa – Juízo Cível: Resultou à evidência que a sociedade não tem actividade para além do parqueamento (…)” (6 de Dezembro de 2019); Joe Berardo – “É impensável que a instituição de crédito tenha decidido conceder crédito directamente ao requerido (…); numa “peça” sobre os grandes contribuintes do fisco, foi exibida a imagem “Direcção de Finanças” (4 de Dezembro de 2019); “Bebé abandonado – Instituto de Apoio à Criança defende que adopção (…)” (9 de Novembro de 2019); “Apoio aos “Sem-abrigo” – várias associações de apoio a sem-abrigo queixam-se que não vêem melhoras (…)” (9 de Novembro de 2019).
Não é aqui o lugar para ser exaustivo a este propósito, mas fica claro que a RTP, emissora de televisão a prestar serviço público (e que promove até programas sobre a língua portuguesa e sua ortografia), contribui em simultâneo para o caos ortográfico e, portanto, difunde o erro ortográfico. Abreviando, a RTP torna evidente aquilo que muitos não aceitam reconhecer: a inevitabilidade de que a ortografia, em Portugal, não é um assunto fechado. Posso estar enganado, mas é possível que mais nenhum país do mundo tenha a sua ortografia por fixar (a não ser o Brasil e por questões semelhantes, envolvido no imbróglio comum). O mesmo será dizer que o país, por inteiro, não reconheceu ou fixou uma ortografia e que, nesse caso, o Acordo Ortográfico de 1990 não só não é norma como letra de lei.
Aliás, o que o sustenta, longe de se tratar de um Decreto-Lei, é somente uma Resolução do Conselho de Ministros (nº8/2011), que nem sequer aprovou um decreto-lei, como é de sua competência (veja-se a nota preambular sobre o assunto, no Diário da República Eletrónico, onde se diz “(…) retificado pela Rectificação [sic] (…)” – se atentarmos à pirâmide de Kelsen e à hierarquização dos deveres, percebemos que uma resolução de ministros surge na 6ª posição, salvo outra opinião mais segura, depois da Constituição, Leis, Decretos, Decreto Regulamentar e Resoluções do Supremo. Isso significa que ignorar o Acordo Ortográfico de 1990, como o faz a Pordata, como para tal igualmente concorrem os docentes da faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (insistindo em que os discentes adquiram os seus livros, impressos ainda segundo o acordo de 1945), ou como o faz, entre outras publicações (a Sociedade Portuguesa de Autores, por exemplo), o jornal diário Público, reputado como um (senão o) periódico de qualidade superior, não significa estar fora da lei.
Quando um país permite que a sua Constituição seja omissa quanto ao estatuto legal em que se inscreve a Língua de uso nacional, bem como a enunciação do documento orientador sobre o conjunto de regras linguísticas normativas (ambiguidades salvaguardadas) a que se submete, alguma coisa está a falhar. Aliás, não causaria prurido a ninguém a presença, na Constituição da República, de artigo próprio para a Língua Oficial. O artigo 11º (Símbolos nacionais e língua oficial) é, a meu ver, omisso, no seu ponto 3: “A língua oficial é o Português”. Resta saber a que Acordo Ortográfico adstrito.
Acredito na boa-fé das pessoas e respeito o conhecimento científico dos proponentes do novo acordo ortográfico e dos seus antagonistas. O que não aceito é que aquilo que se constitui matéria de tão alta importância não seja debatido. Tem razão a Dra. Margarita Correia (com quem tive o privilégio de trocar algumas impressões) ao afirmar que a questão do Acordo Ortográfico diz respeito somente a uma elite, porquanto a maioria das pessoas a ignora. É um facto: somente um grupo restrito de filólogos, professores, jornalistas e especialistas dá crédito ao assunto. Mas isso só é assim, porque a Língua Portuguesa, como bem imaterial (ainda que de alcance ontológico supremo) que é, não gera receitas de capital ao nível dos anseios da sociedade do entretenimento actual. A língua é contida, silenciosa, subtil e elegante. O novo acordo, parece-me, tira-lhe boa parte disso.
Seria importante, em benefício do serviço público, que a RTP, a que lanço o repto, pudesse promover o debate sério sobre a questão do Acordo Ortográfico, que, para além da componente científica, tem contornos políticos (alguns, mesmo, polémicos, desde a sua génese, ao processo e datação dos sucessivos Protocolos Modificativos, e ao impedimento de actuação do Grupo de Trabalho para a Avaliação do Impacto da Aplicação do Acordo Ortográfico de 1990). O programa Prós e Contras, moderado pela jornalista Fátima Campos Ferreira, por exemplo, seria oportuno para poder sentar à mesa pessoas como a Dra. Margarita Correia, a Dra. Maria Regina Rocha, o Dr. Artur Anselmo, filólogos e especialistas em lexicologia, jornalistas como Nuno Pacheco, tradutores, revisores (Manuel Monteiro, por exemplo), editores, escritores, activistas em torno da matéria, políticos. É um manancial humano em torno de um assunto imensamente rico e actual, que terá, isso é bem claro, interessada e viva participação. Algo que possa justificar o título assumidamente ambíguo deste artigo. E que, de uma vez por todas, clarifique aquilo que queremos para a Língua Portuguesa e se alargue a um número maior de pessoas o património simultaneamente universal e individual que ela representa.
Votos de um Bom Ano Novo, com dignidade, lucidez e sem o receio de encarar de frente as questões para as quais a nossa língua nos impele.
António Jacinto Pascoal
[Transcrição integral. Artigo da autoria de António Jacinto Pascoal. publico.pt 01.01.20. Os “links” a verde, bem como os destaques a “bold”, são meus.Imagem de topo de: Farmácia 24 (em brasileiro). 2.ª imagem de: “A televisão”.]