“Ter na Língua causa para vergonha” (“Jornal de Angola”, 10.05.20)

Não há atalho para a escrita


Caetano Júnior

O Mundo celebrou, a 5 último, o Dia da Língua Portuguesa. A efeméride obriga-nos a uma reflexão sobre o uso que lhe damos, durante o processo que pretendemos que desagúe na comunicação e informação, mas que, não poucas vezes, resvala para âmbitos contrários aos quais nos propusemos à partida.

Complexo como só o próprio, este Idioma, que nem sempre nos consegue unir – porque de exigente literacia e de difícil domínio, ainda mais num contexto como o nosso, de convivência com falares locais -, faz de muitos de nós reféns da crítica quase geral, quando não o tratamos com a deferência que merece.

“Parece uma maldição, e talvez mesmo seja. O nosso uso diário do idioma aparece polvilhado de descuidos, de impropriedades, desvios à norma, rotundas agramaticalidades. Mesmo escrevendo, contenta-nos rapidamente a primeira formulação, essa onde uma ligeira releitura logo detectaria o manquejar da semântica, a redundância incomodativa, a urgente conveniência da mais humilde preposição”. Eis um trecho de Fernando Venâncio, logo à entrada, no prefácio que dedica ao livro “Em Português, se Faz Favor”, de Helder Guégués.

Um fragmento ao qual fazemos recurso também para traduzir a realidade da Língua Portuguesa entre nós. Estamos perante um exercício reflectivo, dirigido não a especialistas – o que os não impede de ler -, mas ao leitor comum; àquele que tem sempre necessidade de produzir um escrito, um bilhetinho que seja; que se sente perseguido pelo desejo de emendar os danos que inflige ao Idioma.

O que se busca, nesta abordagem que se quer pedagógica, também não é a perfeição na produção escrita, porque é extremamente difícil tê-la. A Língua Portuguesa é um campo do conhecimento muito vasto, delicado e em permanente actualização, que inclui contextos variados, entre os quais os sócio-culturais. Podemos até, para atestar a complexidade que a envolve, trazer à conversa as variedades ou dialectos (por exemplo, o que para nós é “figo”, para o são-tomense é “caroço”) e o acordo ortográfico ainda por harmonizar entre os falantes da comunidade lusófona.

Adentramos em território perigoso, como o que, amiúde, subjaz à crítica – no caso, à vertente escrita da Língua. Afinal, paira a possibilidade de uma qualquer falta, distorção ou omissão comprometer a escrita. É a omnipresente Lei de Murphy. Um risco, entretanto, consciente, que parte da necessidade de deixarmos de trazer a Língua tão remendada. E não há, nestes tempos dominados pela tecnologia, que deixa o saber à distância de um “click” no computador, razões extraordinárias para que o Português continue a ser vilipendiado.

No passado, dependemos dos livros físicos ou de quem os tivesse, geralmente, a figura do professor/educador/padre, que intermediava a transmissão de conhecimentos. Como ontem, o processo tem na base a alfabetização e a literacia. Começamos por juntar as letras e vemos, depois, alargados os procedimentos, de forma gradativa, até lermos e percebermos textos mais complexos. Quanto mais cedo tivermos contacto com os livros, mais rapidamente deixamos as trevas. E, hoje, é preciso que sejamos, também, autodidactas, se nos quisermos cultivar. Para tanto, basta gastar com pesquisa e leitura algum do tempo que dedicamos a esbanjar “likes” nas Redes Sociais. Se não for assim, jamais deixaremos de ter na Língua causa para vergonha, sobretudo nós, que a usamos como instrumento de trabalho. Ler é, definitivamente, a única via para alguma proficiência na escrita. Não há atalho possível. De outra forma, é encontrar satisfação na agramaticalidade.

Entre nós, o uso tosco do Português no dia-a-dia é um problema transversal a todos os grupos profissionais, à maioria das instituições e às pessoas. O assunto merece uma resposta à medida da gravidade que encerra. De contrário, prevalece o risco de vermos entidades, sobretudo públicas, terem a integridade e a responsabilidade questionadas, devido a actos desleixados ou a atitudes de negligência para com o Idioma. Aliás, a Internet, nas mais variadas Redes Sociais e plataformas, faz, amiúde, circular papelada produzida em instituições públicas, nas quais a Língua Portuguesa sai muito maltratada. São vazamentos que empoeiram o perfil de entes e organismos que se pretendem impolutos.

Há, entretanto, formas de prevenir a inadequada utilização da Língua, nas instituições, em particular. A primeira pode ser a opção por quadros de comprovada qualidade; para o caso, de reconhecida competência linguística e comunicativa. É verdade que se trata de uma alternativa muito difícil de atender, à luz do contexto de enorme debilidade sob o qual corre o processo de ensino e aprendizagem no país. Mas é uma solução possível, se o recrutamento obedecer a critérios rigorosos e não se circunscrever a recomendações sustentadas numa qualquer outra natureza de confiança que não inclua a profissional. Há muito tempo que esta devia ser, aliás, a forma habitual de actuar.

Por outro lado, há o recurso à contratação de especialistas em Português, que, em situações oportunas e concretas, ajudem a conferir à redacção final a perfeição que se impõe. É assim que se faz em muitos lugares do mundo. Mesmo as áreas do conhecimento que têm relações mais estreitas com a língua, como o Direito, recebem o suporte da especialização no Idioma. É um procedimento necessário também do ponto de vista estético, além da prova de que a auto-suficiência é ilusão.

Já há muito passou o tempo de se conferir a devida importância à Língua, não apenas como veículo de comunicação e meio de expressão, mas também enquanto reflexo da imagem de quem a usa.

Somos todos conhecedores da deficiente qualidade escrita em documentos, alguns dos quais passam na TV e saem no jornal. É verdade que a correcção, a palavra certa, é muitas vezes devorada pelo uso, pelo sussurro dos falantes, mas há contextos nos quais deve prevalecer a norma vigente.

“Os erros jamais serão varridos da face da terra”, postula o escritor. Mas sempre estaremos em condições de os banir dos nossos escritos e assim torná-los mais permeáveis à comunicação. A nossa criatividade de nada servirá, se estiver ao serviço da deformação.

[Transcrição integral de artigo do “Jornal de Angola” de 10.05.20.
Tudo o que aqui escrevo é de minha exclusiva responsabilidade e tudo o que aqui reproduzo — com a finalidade de constituição de acervo documental respeitante ao “acordo ortográfico”, em especial — é da responsabilidade dos respectivos autores, que são, sempre que possível, citados com indicação das fontes/autoria. Imagem da bandeira de Angola: Wikipedia. Fotografia de autoria desconhecida (ver um dos ‘posts’ anteriores). Logótipo da  EPL – Escola Portuguesa de Luanda: Facebook.]
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