Dia: 5 de Junho, 2020

Mal parido

caixa do engraxador

Para variar, por excepção, um artigo da imprensa regional. E este, em particular, com a evidente vantagem de o seu autor já ter armado em acordista (devia ser na altura um rapazote, estava a crescer, são as ilusões da juventude) e de ter por fim acordado para a vida.

Além dessa transitória e felizmente já terminada ebulição juvenil, este regional autor apresenta uma consistência argumentativa absolutamente telegráfica, atendo-se apenas às mais elementares ilustrações daquilo que no essencial é e em que consiste o aleijão ortográfico — ou seja, em suma, a escrita brasileira que Portugal “adotou” por bovinidade intrínseca e por puro “puxa-saquismo”, engraxar brasileiros.

Parar ou parir

Eu paro, tu paras, ele para.

04-06-2020 – FRANCISCO MARTINS DA SILVA
“Jornal  Oeste online”

Que português é este? “Eu paro”, ainda vá, quer dizer que estou neste momento a parir (com esforço, este texto). Mas, e “paras”, que palavra é esta? De onde vem? E o que quer dizer “tu paras”? E “ele para”? Para onde, para quê? Como pode ser “ele para” uma forma verbal? Se formos ao presente do conjuntivo, que eu pare, que tu pares, que ele pare, continuamos a falar de parir e não de parar. Eliminando o acento agudo, diferencial para estas palavras homógrafas, amputou-se o verbo ‘parar’ de algumas das suas mais comuns conjugações.

O inadjectivável Acordo Ortográfico de 1990 está cheio de absurdos caricatos e risíveis como este, transformando a nossa amada língua num anedotário de confusão. Ao substituir o primado da etimologia por indeterminada tradição de pronúncia culta, eliminou-se a esmo hífens, acentos, consoantes mudas, maiúsculas, et cetera.

Mas que tradição oral culta vem a ser esta? Onde é tradicional dizer que estou a parir quando quero dizer que estou a parar?

Inicialmente, pareceu-me uma boa ideia, harmonizar o português de toda a Lusofonia, para facilitar o entendimento entre os povos e agilizar o vasto mercado editorial em português, havendo o compromisso de se ir aperfeiçoando e corrigindo o Acordo. Passados tantos anos, é evidente que estes objectivos não serão atingidos. Nem se percebe, hoje, a óptica dos acordistasótica, segundo eles, passando-se a confundir visão e audição. Quanto à harmonização da língua, só piorou: com o primado da pronúncia e as duplas grafias criou-se um labirinto babélico.

Reina o caos ortográfico e grande número de publicações rejeitam o Acordo. À excepção de Portugal e do Brasil, e cada um à sua maneira, os outros países de língua portuguesa ignoram-no. E em Portugal, nem nos documentos oficiais o conseguem cumprir correctamente. Quanto ao aperfeiçoamento, a lógica linguística, nas suas várias especialidades (fonética, morfologia, sintaxe, semântica, lexicologia, pragmática, entre outras), foi de tal modo estilhaçada que não há emenda possível.

Como exemplifica o autor e revisor linguístico Manuel Monteiro, no seu imprescindível livro Por Amor à Língua (Objectiva, 2018), com inúmeras estranhas novas palavras como “corréu”, em vez de co-réu, ou “cocomandante”, em vez de co-comandante, ou “arquiteta” (a maior teta?, a teta mais importante?, será homenagem à arquiteta do Estado na qual também mamaram os acordistas?), havia, nos vários países lusófonos, 2691 palavras que se escreviam de forma diferente e que se mantêm diferentes; havia 569 palavras diferentes que se tornam iguais; e havia 1235 palavras iguais que se tornaram diferentes. Portanto, o desacordo é mais do dobro do Acordo.

Resta ultrapassar a casmurrice e voltar à norma etimológica que ainda norteou o Acordo de 1945, com as alterações introduzidas em 1971 relativas a alguns acentos que marcavam a sílaba subtónica nas palavras derivadas com o sufixo mente ou iniciado por z (ex.: sòmente, terrívelmente, sózinho, cafézinho).

Como diz Nuno Pacheco, intrépido anti-acordista do jornal Público, o único acordo admissível é reconhecer as variantes nacionais e fixá-las como partes de um corpo comum, o da língua portuguesa.

[Transcrição integral. Artigo da autoria de FRANCISCO MARTINS DA SILVA publicado no “Jornal  Oeste online”. Destaques, sublinhados e “links” meus. Imagem de topo (caixa de engraxador) de: Sofia Mendes. Imagem de rodapé (escovas de crina para escovar sapatos) de: “Como Limpar“.]