Dia: 3 de Julho, 2020

Pió qui tá num fica

Por respeito para com Maria Velho da Costa, transcrevo de seguida sem considerandos um artigo panfletário da autoria de certo tartufo acordista que teve, durante uns anos, o empedernido hábito de acompanhar Vasco Graça Moura em todos os eventos em que este marcava presença perorando sobre o “acordo ortográfico”. Nunca entendi lá muito bem, devo confessar, o que fazia aquele par de orelhas em semelhantes tertúlias, o que não obsta a que alguma luzinha se faça com artiguinhos como este, do mesmo songa-monga. O qual é incapaz de se coibir, em circunstância alguma, aproveitando para tal a mais indecente oportunidade, até um inocente cadáver usa como prancheta, de propagandear as suas alucinações de pretensa grandiloquência, uma doentia mania das grandezas, o putativo império “lusófono”, isto é, brasileiro. Neste textículo, lá está, ali, ali, ali e acolá, as tóxicas sementinhas do costume, as que usa espalhar, impassível, aferrolhando a sua característica, plástica máscara de palhaço rico.  

Pela razões aduzidas, por conseguinte, vai assim mesmo a transcrição, sem realces, sem ligações, sem notas e sem comentários. A condizer com aquilo que é, de facto, por definição, uma coisa esponjosa, invertebrada, gelatinosa, escorregadia, falsa como Judas, desprovida de passado e de memória; sem História. E como este há mais.

O DOMÍNIO MÁGICO DA PALAVRA…

Guilherme D’Oliveira Martins

 

“Se eu escrevesse de escrever não escreveria para ser entendida. Há para isso correios, telégrafos, até falar” – é Maria Velho da Costa quem o afirma no início de Cravo (1976)… De facto, se há escritora contemporânea que pretende escrever mais do que simplesmente escrever é a autora de Missa in Albis (1988). E escrever de falar é, no fundo, cuidar da palavra no sentido de ser entendida. Por isso, Maria Velho da Costa era apaixonada pelo falar comum, como o daquele homem em Santa Apolónia que explicou de onde e como chegava o próximo comboio.
A língua é essencial para a afirmação das identidades, mas também para enriquecer, pelo diálogo, as culturas e civilizações. É verdade que os povos primitivos criaram diferentes línguas para poderem preservar os seus segredos, mas sem novos vocábulos e novas experiências as línguas esmorecem. Germano Almeida diz-nos que tem duas línguas, sendo a primeira o crioulo. “Nós em Cabo Verde devemos estar preocupados com o uso da língua portuguesa. É isto que tento transmitir. Temos de dominá-la bem, porque nos põe em contacto com o mundo. A língua cria proximidades. Eu quero transmitir a cultura cabo-verdiana, a vivência cabo-verdiana em português. Posso dizer que é uma língua estranha. Utilizo-a como uma ponte entre culturas”. Segundo Ivo de Castro, “a história da língua portuguesa pode ser resumida numa frase: falamos uma língua que nasceu fora do nosso território e cujo futuro será em larga medida decidido fora das nossas mãos. A língua portuguesa, numa visão temporal ampla, acha-se de passagem por Portugal”. Quando falamos da língua portuguesa, consideramos uma longa história a partir do galaico-português, referimos uma língua antiga, que cedo alcançou uma assinalável maturidade, certamente em virtude do rei D. Dinis, na linha de seu avô Afonso X, o Sábio, tê-la tornado cedo língua dos tabeliães em lugar do latim, o que favoreceu a afirmação do idioma como modo de comunicar do povo e dos letrados. E é importante deixar claro que, de facto, o português ou o espanhol nunca foi dialeto um do outro, sem prejuízo de um encontro entre ambos por volta de 1400, no momento do ofuscante esplendor da cultura vizinha. A partir da matriz galega, temos uma diversidade de influências, como dos moçárabes, principal veículo transmissor de um grande número de vocábulos árabes para o nosso léxico pela parte bilingue da população, além dos caracteres próprios adquiridos com a cultura quinhentista. Quando hoje relemos os “Cantares Gallegos” de Rosalia de Castro (1863) depressa nos apercebemos de onde vimos como língua. “Minha terra, minha terra / Terra donde m’eu criei, / Hortinha que quero tanto, / Figueirinhas que prantei. // Prados, rios, arvoredos, / Pinares que move ó vento, / Passarinhos piadores, / Casinha do meu contento…”.

Como disse Rui Knopfli, a língua tenderá a ser um denominador comum de vários espaços africanos, asiáticos, brasileiros, europeus numa espécie de “pátria coincidente”. E para compreender, basta lermos a literatura da língua portuguesa contemporânea. Cultura de várias línguas. Língua antiga, língua moderna sempre em movimento. Lemos Camões na lírica e é nosso contemporâneo: “Descalça vai para a fonte, Leonor pela verdura / vai formosa e não segura…”. Ouvimos Vieira, e está ao nosso lado: “Arranca o Estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe…”. Encontramos Manuel Bandeira: «A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros / Vinha da boca do povo na língua errada do povo / Língua certa do povo / Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil»… O Dia Mundial da Língua Portuguesa, este ano comemorado pela primeira vez a 5 de maio, é uma responsabilidade de todos. O Embaixador António Sampaio da Nóvoa salientou-o melhor que ninguém no seio da UNESCO. E se falamos de uma língua viajante com presença em todos os continentes, temos de lembrar Eduardo Lourenço a dizer: “mais importante que o destino é a viagem”…

Maria Velho da Costa deixou-nos. É uma das grandes escritoras contemporâneas. Trouxe-nos na sua obra algo que nos permite compreender o mundo à nossa volta com gente de carne e osso, demonstrando, como fez em Myra (2008) “que há sempre uma ponta de paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fugaz que seja”… Se falamos da língua portuguesa, temos de afirmar que para a autora de Maina Mendes (1969) e de Casas Pardas (1977) antes da literatura está a força da palavra. Quando a lemos, entendemos bem como uma língua viva se centra na força e na vitalidade da expressão. Por isso, em sua homenagem, citamos o testemunho da sua amizade com Sophia de Mello Breyner. “Falávamos de noite, no alpendre quase morno, sem tom nem som. Nenhuma das duas era desesperadamente musical. Não havia música nem nos fazia preciso. Falávamos mais de todos do que de tudo; de tudo eram a arte e a poesia – nem política, nem mundos a mudar. Não era a prudência de pertencermos a fações políticas diferentes. Era a força da indiferenciação da noite, quando as mulheres falam. Falávamos de amores, de filhos. De amigos e desamigados. Desse mundo ginecêntrico e caótico, onde tínhamos ambas de manter aparências. Brilhávamos na meia obscuridade como as estrelas que se viam no céu limpo, mortais e imortais, pese a solenidade. Porque não eramos solenes (…) As estrelas reuniam-nos e aplacavam-nos debaixo do alpendre de heras, onde ressuscitavam as osgas do torpor do inverno”…

Maria Velho da Costa representa uma relação única com a criação literária, preocupada com o modo de comunicar a vida, mais do que cuidar do tratamento formal. O seu inconformismo e as aproximações a Agustina e Nuno Bragança estão bem presentes na obra romanesca e ensaística. E assim procura ligar pessoas e acontecimentos a uma reflexão emancipadora. Estamos perante uma escritora que desde cedo se foi revelando como uma extraordinária cultora da renovação da língua – desde logo na tradução, sendo exemplar o modo como tratou a riqueza espiritual de Simone Weil… Tem, pois, razão Luísa Costa Gomes quando insiste no facto de estar bem viva a escritora, sendo a melhor homenagem a fazer-lhe a sua leitura.

Guilherme D’Oliveira Martins

 

[Transcrição integral. “Gazeta do Interior”  n.º 1645, 01.07.20]

Tudo o que aqui escrevo é de minha exclusiva responsabilidade e tudo o que aqui reproduzo — com a finalidade de constituição de acervo documental respeitante ao “acordo ortográfico”, em especial — é da responsabilidade dos respectivos autores, que são, sempre que possível, citados com indicação das fontes..

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palhaço (agora deputado) brasileiro Tiririca. Autoria da foto: desconhecida

Costa faz dieta

https://youtu.be/3C9G21SRvM8

Vai uma sopinha de letras? Olhe que são portuguesas e muito nutritivas…

Antes, dava-se sopa de letras às crianças. Agora não é preciso: com a ajuda do “acordo” comem-se letras a eito na fala e na escrita.

Nuno Pacheco
“Público” 02.07.20

 

Não é segredo para ninguém: Portugal tem um primeiro-ministro que come letras. Ele próprio o reconheceu (como se fosse preciso fazê-lo) no passado domingo, no mais recente programa de Ricardo Araújo Pereira, Isto é Gozar Com Quem Trabalha, na SIC. O humorista fez um curioso exercício: mostrou-lhe dois vídeos onde António Costa dizia umas palavras imperceptíveis (aqui o “corretor” está a mandar-me escrever “impercetíveis”, o que me fez mandá-lo, ao dito, a um lugar que não recomendo). Sorridente, não se atrevendo sequer a descodificar o que tinha dito nos vídeos, tarefa impossível, o primeiro-ministro preferiu uma saída airosa, dizendo que a sua mulher lhe dava múltiplos conselhos: “Não comas de mais, não comas fritos, não comas doces e também não comas palavras.” O que faz Costa, para não lhe desagradar e para não correr riscos de saúde? Como tem de comer alguma coisa, escolhe comer palavras. E logo explicou porquê: “É do melhor que há para comer, não têm [ele disse “tem”, mas é melhor emendar, se não devorava também a concordância] glúten, não têm lactose, não têm sal, não têm açúcar.” Aí está: uma dieta palavrosa, livre de doces e fritos, nutritiva e saudável!

No Portugal de antigamente, dava-se sopa de letras às crianças para elas se irem habituando ao que teriam de aprender na escola, ou seja, a usá-las na escrita e na leitura. No Portugal de hoje, manteve-se essa tendência gastronómica, mas dispensando sopas. É que as letras, e certas palavras, são comidas inteiras mesmo na fala e na escrita. António Costa é apenas a ponta de um enorme icebergue desse repasto contínuo, que desde há uns anos tem vindo a ser incentivado por essa coisa a que teimam chamar “acordo ortográfico”. Lembram-se da “exeção”, palavra magnífica que surgiu em letras gordas num cartaz eleitoral do PS? Pois regressou, agora no endereço de uma empresa de utilidades domésticas. Assim: “Todas as lojas estão abertas com exeção da…” Como a excepção (perdão, a “exeção”) desapareceu, a bela palavra desapareceu já dos avisos da empresa. Mas fica a “recordação”, fotografada. Pormenor relevante: só as letras portuguesas é que são nutritivas, pois nas palavras inglesas também ali usadas, “Click & Collect”, nenhuma letra foi devorada. Não é bonito de ver?

Não é só aqui, claro. A pandemia, que já nestas crónicas foi pretexto para falar de palavras como “infetado”, “infeção”, “infecioso” (propriedade exclusiva de Portugal, já que em todo o espaço lusófono, Brasil incluído, se escreve “infectado”, “infecção”, “infeccioso”), entra também neste palavroso repasto, talvez por necessidade de calorias. Se tiverem a paciência de ir ao endereço electrónico da Direcção-Geral da Saúde (DGS), e seguir para as “perguntas frequentes”, lerão nos “sintomas” esta passagem: “nos casos mais graves, pneumonia grave, síndrome respiratória aguda grave, septicémia, choque sético e eventual morte.” Os sublinhados a itálico são meus e assinalam dois erros: “septicémia”, em vez de “septicemia” (como se deve escrever e dizer, apesar de muito vulgarizado o contrário) e “sético” em lugar de “séptico” (em coerência, deviam escrever “seticemia”, sempre era mais uma letra a entrar na dieta).

Ainda assim, talvez porque a fome não apertou a esse ponto, sobram muitas palavras onde o dígrafo “pt” sobreviveu. Sim, os répteis ainda não são “réteis”. Mas indo à edição portuguesa do Houaiss Atual, já com o acordo, é delicioso ler “septicemia” (sem variante com o “e” aberto) e, mais abaixo, “séptico” com esta nota: “o mesmo que sético”, sem que nenhuma das outras 42 palavras começadas por “s” e com o dígrafo “pt” ali coligidas tenha sugestão de variante. O “sético” será por causa do Brasil? Olhe que não… Vejam o Priberam brasileiro, onde “sético” tem esta nota: “Grafia no Brasil: séptico”.

Enquanto isto, a Assembleia da República discute um parecer que argumenta que uma lei (neste caso proposta por cidadãos, com vista a revogar o segundo protocolo modificativo do acordo ortográfico, o que reduz a três o número de países para entrar em vigor) não pode revogar uma resolução, o que é tanto mais ridículo quanto uma resolução não devia (e não pode) revogar uma lei, e no entanto foi isso que sucedeu com o acordo ortográfico: três resoluções para o impor em Portugal, quando a lei do acordo de 1945 se mantém em plena vigência, nunca tendo sido revogada. Deve haver aqui alguma… “exeção”.

Nuno Pacheco

[Transcrição integral (da edição em papel), incluindo “links”. Vídeo: “entrevista” de Ricardo Araújo Pereira a António Costa sobre o seu (deste) “pequeno” problema de dicção no programa “Isto É Gozar Com Quem Trabalha”, da SIC, transmitido em 28.06.20.]

 

 

[Disclaimer: Tudo o que aqui escrevo é de minha exclusiva responsabilidade e tudo o que aqui reproduzo — com a finalidade de constituição de acervo documental respeitante ao “acordo ortográfico”, em especial — é da responsabilidade dos respectivos autores, que são, sempre que possível, citados com indicação das fontes/autoria. Não existe qualquer interesse comercial neste tipo de reproduções/transcrições e não há  outra pretensão que não seja a de prestar um serviço  público: modestamente contribuir para a consolidação da memória colectiva nacional.]