Esgotado o maná de entretém que foi a ortografia ausente do AO90, cujo conteúdo é o oposto diametral do próprio conceito de Ortografia, pelo que não há nada a discutir nessa área, então agora, entregue a ILC-AO, aceite formalmente no Parlamento, após tramitações, conferências e verificações várias (assinaturas, CR, documentos), os acordistas cabecilhas dos partidos maioritários terão dado suas ordens para que se procedesse à golpada final: arrastar a questão, esgotada a vertente ortográfica inexistente, para um campo muito mais legalista, o da constitucionalidade. E, de novo, mais uma vez, houve pessoas com as melhores das intenções, constitucionalistas de cátedra, que não resistiram a resvalar para esse outro campo inventado pelos acordistas (outra vez) para desviar as atenções do essencial e esconder o que de facto está em jogo.
Vale sempre a pena recordar o que NÃO está em causa, aquilo a que a ILC NÃO se refere:
- A ILC-AO não revoga e nem mesmo interfere com o Acordo Ortográfico de 1990.
- A ILC-AO não revoga o 2.º Protocolo Modificativo
- A ILC-AO não pretende qualquer tentativa de “melhoria” do actual Acordo Ortográfico. A pretensão da Iniciativa não é substituir um Acordo por outro nem servir de pretexto para que se melhore o que existe.
Dito isto, o que está, então, verdadeiramente em causa no espírito, na forma e no conteúdo desta iniciativa cívica? Muito resumidamente, o Projecto de Lei limita-se a revogar a decisão, tomada pela Assembleia da República em 2008, de aceitar como boa uma “pequena alteração” ao Acordo Ortográfico de 1990.
Quadro resumo com o resultado da votação que aprovou a RAR 35/2008
Com essa “pequena alteração”, o Acordo Ortográfico passou a dispensar a ratificação de todos os países envolvidos para entrar em vigor. Em vez de um total de oito, passaram a bastar apenas três países para que essa entrada em vigor pudesse acontecer.
Num protocolo cuja finalidade era unificar a ortografia da Língua Portuguesa, isto era evidentemente um absurdo. É certo que a unificação ortográfica seria sempre uma impossibilidade, mesmo com a assinatura de todos. Mas admitir, nem que fosse em teoria, que um tal protocolo poderia funcionar em “regime de opção” seria um absurdo em cima de outro. O mais elementar bom-senso recomendaria que uma tal proposta tivesse sido chumbada. Não foi esse, infelizmente, o sentido de voto (a favor da RAR 35/2008) da maioria dos deputados naquele fatídico dia 16 de Maio de 2008. Grande parte dos deputados, aliás, nem sabiam o que constava do diploma que aprovaram, muitos julgavam estar a admitir Timor-Leste na CPLP (ponto 2 da RAR) e outros limitaram-se, como de costume, a seguir a “disciplina partidária”: vota a favor da RAR tal, contra o PdL XX/ZZ, abstém-te no diploma Z, ok, ok, já tomei nota.
Claro que, com essa decisão — a aprovação da chamada Resolução da Assembleia da República 35/2008 — duas coisas podiam acontecer: o AO90 podia, apesar dessa trafulhice, acabar por ser ratificado por todos os países… ou não.
“Assim, pedi licença para votar contra; foi-me dito tal ser impossível devido à disciplina de voto e evidentemente obedeci, mas foi-me concedida autorização para me ausentar no momento da votação, o que fiz.” — Excerto da declaração de voto da deputada do PS Matilde Sousa Franco. Manuel Alegre, igualmente deputado do PS, ignorou as directrizes do partido sobre esta matéria e votou contra. [DAR- Página 55 | I Série – Número: 085 | 17 de Maio de 2008] |
Na génese dessa Resolução, uma “pequena alteração”. Quatro anos antes, em 2004, volvidos quase 15 anos sobre a invenção do AO e não havia nada. Nem Acordo, nem ratificações, nem Vocabulário Ortográfico Comum. Em vez de reconhecerem o erro da insistência num protocolo que ninguém queria, inventaram a regra dos três em vez de oito. A lógica só pode ter sido esta: assinem Portugal e o Brasil sendo, em exclusivo, a escrita brasileira aquilo a que se chama Ortografia portuguesa. Os PALOP (a CPLP), que remédio terão esses outros países de ir atrás. Para já, como bastam 3 países, então temos o Brasil (2004) e mais dois ao calhas, pode ser Cabo Verde (2005) e São Tomé (2006); pronto já são 3, portanto o AO90 está em vigor também nos outros 5.
Assim, e voltando ao cerne da questão, o objectivo da nossa ILC é, precisamente, reverter a decisão de aceitarmos que três países possam valer por oito. A nossa proposta resume-se a isto e, naturalmente, não revoga o próprio Acordo Ortográfico e sequer revoga o 2.º Protocolo modificativo.
Aquilo que a ILC-AO entregou na Assembleia da República é, simplesmente, a correcção do erro que constituiu a aprovação da famigerada RAR 35/2008. Nada mais.
Portanto, o pretexto “constitucionalista” não colhe, é absurdo.
De tal maneira fiquei intrigado com semelhante “lata” dos deputados que me dei ao trabalho de traduzir os “pareceres” deles para Português (a partir de imagens em pdf) e por fim resumi tudo com “links” numa nova página. As transcrições têm também valor acrescentado: “links” internos e externos, notas várias, destaques e sublinhados. A ver se lendo bem, relendo melhor e coligindo materiais e ligações, talvez assim fosse possível aceitar aquela aldrabice “constitucional” como — ao menos — os meritíssimos tribunos não estarem simplesmente a gozar com o pagode.
Tudo aponta para que não, de facto. Não estão a gozar com a Iniciativa, só engendraram aquela aldrabice da inconstitucionalidade porque agora tanto se lhes dá, vale tudo e qualquer coisa serve,
O resultado final, digamos assim, de uma longa luta, velha de uma dúzia de anos.
Não será, no entanto, por me ter reformado em 2015 que deixarei de acompanhar a ILC até ao fim da história (que em breve será “istória” porque os brasileiros “escrevem como falam” e são eles os donos da língua). Afinal, que diabo, não será por causa da reforma que a questão passou a ser outra nem o facto de ser o 1.º subscritor me impedirá de dizer sobre a Iniciativa tudo aquilo que puder e quiser.
Agora já nem o lápis cor-de-rosa ou laranja me faz sequer arquear uma sobrancelha.
Autocracia: «É uma forma de governo na qual há um único detentor do poder político-estatal, isto é, o poder está concentrado num único governante, podendo ser este um líder, um comité, um partido, uma assembleia, etc. O governante tem controlo absoluto em todos os níveis do Estado.»
https://pt.wikipedia.org/wiki/Autocracia
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(continua)