Inculta e Bela…
Num dos seus últimos exercícios, o Enem nos presenteou com frases do tipo dois neurônios; confira
Num dos seus últimos exercícios (nem se sabe quando será o próximo) o Enem nos presenteou com frases do tipo dois neurônios. E, apesar disso, avaliadas com notas diferentes do zero que bem mereciam. Como as pérolas abaixo:
– “Onde nasce o sol é o nacente, onde desce é o decente”…
E o indecente que escreveu isso ainda passou no exame.
Ou: “Bigamia era uma espécie de carroça usada pelos gladiadores e puxada por dois cavalos”…
Não seria a tal “bigamia” puxada também pelo asno que a definiu?
– “A história se divide em quatro: Antiga, Média, Momentânea e Futura, a mais estudada hoje em dia…”
Por essas e outras anedotas “históricas”, os portugueses ameaçam proclamar a sua independência idiomática, alegando que o português que aqui se gorjeia não tem mais nada a ver com a sintaxe e a semântica do que se fala (e escreve) na matriz.
Nosso português brasileiro anda mesmo um tanto sovado e maltratado pelas novelas, pelas gírias urbanas e pelas cáries de nervo exposto do “internetês” de rede.
O desencontro com o português d’além mar não está apenas na vulgaridade expressa nos “grafitis”, nos barbarismos perpetrados nos muros, nos “cifrados” espalhados pela internet. De Portugal, chega um coral de vozes insatisfeitas com o acordo ortográfico assinado pelos países lusófonos, que suprime acentos diferenciais e de sílaba tônica, admitindo um sem-número de neologismos.
O “Aurélio”, revisto e ampliado, sem a ajuda lusitana, por exemplo, acaba de incorporar palavras novas do “brasileiro corrente”, como: petrolão, panelaço, geladinha, portunhol, porteiro eletrônico, malufar e “dobradinha” – esta última, anteriormente restrita à sua semântica culinária.
Agora, está lá: “Dobradinha: [bras]. Dupla. Chapa eleitoral”. Dupla que na eleição de 2014 foi formada por Dilma e Temer” – hoje encarnando outros papéis, o de inimigos figadais na pele da “simplória impedida” e do “golpista traidor”…
Tantos significados tem a palavra em cada cultura que o melhor mesmo é deixarmos as línguas livres, desamarradas e sem leis forçadas, que pretendam o atrevimento de unificá-las.
No Brasil, fala-se o “brasileiro”. Em Portugal, o “português”. E pronto. Deixemos assim.
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O português luso pode escrever “al-ca-goidas” para expressar “amendoim”. E sabem como se traduz a nossa “meia”, essa prosaica roupa do pé? Em português d’além-mar, “meia” é “peúgas”…
Se há um oceano Atlântico entre essas duas línguas – que tipo de mar separa ambas as pátrias das redações do Enem?
[Transcrição integral de artigo, da autoria do escritor brasileiro Sérgio da Costa Ramos, publicado no “site” «nd+» em 26.09.20. Destaques e sublinhados meus.]
‘Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela…
Amo-te assim, desconhecida e obscura
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: «Meu filho!»
E em que Camões chorou, no exílio amargo
O génio sem ventura e o amor sem brilho!’
Olavo Bilac