A caligrafia, como a memória, passaram em certa altura a ser consideradas coisas “anti-pedagógicas”. Às crianças portuguesas, algures num passado recente, foi impingida a política oficial da “escola” lúdica, transformando aquelas “vetustas” e “reaccionárias” actividades escolares comuns no Ensino Básico (então chamado “Primário”) em letra morta… literalmente.
Trata-se, portanto, de uma já antiga lacuna no nosso “sistema de Ensino”, que, a par com a História da Língua, poderia muito bem e deveria ainda mais preencher o enorme buraco, a cratera de (re)conhecimento da nossa identidade colectiva e de uma parte nada desprezível do sentir colectivo, por oposição ao hedonismo obsessivo que em Portugal brutalmente se apossou de todas as estruturas de Poder político. Ninguém se pronunciou (ou foi sequer consultado) sobre a extinção administrativa da Caligrafia.
E, contudo, ela move-se.
Com a nossa letra
Nuno Miguel Guedes
“Hoje Macau”, 18.11.20
A cidade ficou deserta, outra vez. Ou melhor: tornou-se uma espécie de bonita colónia penal onde os reclusos gozam de saídas precárias para logo regressarem às celas segundo o horário imposto. Pelas melhores razões, quero acreditar. Mas uma privação da liberdade, mesmo em casos de força maior e de bem comum, como este é, será sempre retirar a única coisa que me levaria a pegar em armas para a preservar. E sim, dói um bocadinho.
Existe a vantagem triste, no entanto, de já termos conhecido esta sentença ainda há poucos meses; e embora o cansaço seja maior, consegue-se lidar melhor com a solidão que é sempre estar confinado – mesmo que o estejamos numa casa cheia de gente. Arranja-se artimanhas, artifícios para melhor suportar o torpor invisível das horas de chumbo.
Não sou excepção, amigos. E sem surpresa dei por mim a fazer arrumações há muito adiadas de memorabilia pessoal. Não por uma questão de nostalgia, apenas por motivos práticos. Enfim, a intenção pelo menos foi boa: mal olhei as fotos do prefácio de mim que um dia fui, artigos amarelados de jornal e bilhetes esquecidos de concertos as memórias dispararam sem filtro. Suponho que seja sempre assim quando confrontados com dias que julgávamos arrumados e etiquetados há muito. É por isso que devemos ter cuidado com estas arqueologias afectivas.
Mas de toda a parafernália de objectos avulsos que reencontrei os que mais me tocaram foram as cartas que recebi de amigos e amores. Ali, naqueles papéis, estavam estendidas pessoas, almas, juras de romance eterno, vontades de dominar o mundo, a certeza alegre e serena de que éramos imortais. As cartas possuem esse dom, de facto, e muito da civilização ocidental deve à forma epistolar: São Paulo, Abelardo e Heloísa, Séneca (Cartas a Lucílio). Os amores de Mariana Alcoforado ou do jovem Werther, que embora trágicos tiveram correspondência, sendo este meu trocadilho fraquinho mas intencional. E muitos outros testemunhos que nos devolvem o olhar de quem os escreveu, porque das cartas não existe muita distância: Sophia e Sena, Amis e Larkin, Beckett com quem lhe apetecia.
Mas ali, nas minhas mãos, estava algo que desapareceu e que faz toda a diferença. Confere humanidade, sentido e tempo ao que se escreve: a caligrafia. Não falo de grafologias ou outras “logias” que por mim fecharia de vez. É porque acho que a nossa letra também é parte do que somos. E essa a tragédia, amigos: já não me lembro como escrevo. Algo do que me é único e transmissível está em vias de se afogar no mar destes tempos. Não me posso queixar: a culpa é minha porque sem querer me rendi à forma anónima e instantânea como comunicamos hoje uns com os outros.
Num mundo dominado pela literalidade do comentário impulsivo, a caligrafia é um dos redutos possíveis. Longe de precisar de bonecos a reiterar emoções, o modo como se desenha a letra e o próprio acto de nos dispormos a tal já diz quase tudo. “Toda a palavra é fruto vivo”, avisava D. Francisco Portugal há quatro séculos. É verdade porque dizer “amo-te” continua a não ter a mesma força de escrever “amo-te” a alguém que amamos. A caligrafia assegura de forma espantosa a presença longínqua de quem escreve para quem lê.
É um rosto que não se vê, uma voz que não se ouve – mas que percebemos e sentimos.
Um dos poemas de amor portugueses de que mais gosto foi escrito por Fernando Assis Pacheco e termina com este verso belíssimo e absoluto: “Porque tudo se escreve com a tua letra”. Continuarei a acreditar nisto, sempre. Mas entretanto, e para me reencontrar, terei de voltar a aprender a escrever, com a minha letra.Nuno Miguel Guedes
[Transcrição integral de artigo da autoria de Nuno Miguel Guedes publicado pelo jornal “Macau Hoje” de 18.11.20. Destaques e sublinhados meus. Imagem interior de “blog” homónimo.]