Dia: 18 de Dezembro, 2020

Do “inconseguimento” e outros neologismos estranhos

publico.pt, 17.12.20

Louvor e explicação da “língua desportuguesa” de Ondjaki

Nuno Pacheco

Numa entrevista a propósito do seu mais recente livro, o escritor angolano Ondjaki disse a Isabel Coutinho (Ípsilon, 11/12) que o facto de o livro não trazer glossário se devia a estar escrito em “língua desportuguesa”, “a língua de liberdade estética”, explicando-se depois assim: “Não creio que deva haver uma língua desportuguesa nos dicionários para ensinar às crianças, não é disso que falo, não é aí que eu opero. Eu não opero com língua de dicionário, eu opero com língua de barro.” E dava como exemplos de “línguas desportuguesas” os brasileiros Manoel de Barros e Guimarães Rosa, os moçambicanos Mia Couto e Luís Bernardo Honwana, os angolanos Luandino Vieira e Manuel Rui e o guineense Abdulai Silla.

Logo no título, Ondjaki parece dizer ao que vem: O Livro do Deslembramento, como que cruzando a sonoridade de “deslumbramento” com o acto de esquecer. Mas para quem julgue que se trata de neologismo, convém dizer que deslembrado, deslembrança, deslembrar ou até mesmo deslembrativo já constam dos dicionários, justificando plenamente deslembramento. Tal como consta o desnascer usado por José Mário Branco no FMI ou há-de constar um dia o desconseguir que Mia Couto popularizou na escrita, mas foi buscar à oralidade quotidiana.

A “língua desportuguesa”, na acepção que lhe é dada por Ondjaki, é praticada há décadas, senão mesmo há séculos. Porque tem sido a liberdade estética, aliada às tradições e também às inovações culturais, a alimentar os dicionários e não o contrário; é o barro da escrita, moldado a partir do barro (esse ainda mais indomável) da fala, que vai aos poucos enriquecendo os volumes que registam a evolução da língua na sua forma oral (pela fonética) e escrita. Que isso se deva sobretudo à literatura e à poesia também não é surpresa. Mas os regionalismos, igualmente caldeados num saber antigo, contribuem para tal enriquecimento.

Por exemplo, só para recorrer a palavras começadas por “des”: Desgargoleirado (por desgargolado, com decote ou colarinho largo), no Dicionário do Falar Algarvio, de Eduardo Brazão Gonçalves, 1996; Desencodear (tirar a côdea), no Dicionário de Palavras Soltas do Povo Transmontano, de Cidália Martins, José Pires e Mário Sacramento, 2017; Desbussolado (por desnorteado), no Dicionário de Língua Baianaêsa, de Luciano Jatobá, 2004; ou até, numa língua que é filha directa da língua portuguesa, Desmagâ (por esmagar, esmigalhar), no crioulo cabo-verdiano, segundo o Léxico do Dialecto Crioulo, de Armando Napoleão Fernandes, 1889-1969.

Mas deslavrar, deslaiar, desleigar, deslimar, desmaginar, desnevoar, desnocar, desnoutar, despoer, despolir, desrefolhar, desrisonhar, desvizinhar, quem as inventou? Os dicionários não dizem, mas estão todas lá. Algumas há anos, outras há décadas. E todas elas poderiam caber numa qualquer “língua desportuguesa”, porque esta, nascendo do barro da palavra e da fala, será portuguesíssima. Por curiosidade, diga-se que o volumoso dicionário da Sociedade de Língua Portuguesa dedica 154 páginas só às palavras começadas por “des” (Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, 1981, Tomo IV, págs, 62 a 216) e lá, além das já citadas, estão centenas de palavras que nos parecerão… “desportuguesas”.

É claro que ficcionistas e poetas têm inventado palavras, que os dicionários acolhem ou não, como o inutensílio de Manoel de Barros (“O poema é antes de tudo um inutensílio”, Poesia Completa, 2010, pág. 182) ou as bem-pensânsias de Alexandre O’Neill (Poesias Completas, 2000, pág. 195). Mas é bom lembrar que, antes deles, muito antes deles, são sobretudo as crianças que mais palavras inventam sem as registarem, pelo simples gozo da descoberta, trocando-lhes letras e sentidos, virando palavras do avesso como quem revira brinquedos.

Ao conjunto de tudo isto, juntando as novidades que nos traz a liberdade estética às heranças ancestrais da etimologia, pode bem chamar-se língua portuguesa, com as suas variantes culturais, lexicais e até ortográficas, porque os “desportuguesamentos” que dela derivam a enriquecem. Ao contrário da propalada e nunca conseguida (porque impossível e inútil) unificação ortográfica, teimosamente imposta por um acordo que nunca o foi nem será.

Ondjaki: “Eu não opero com língua de dicionário, eu opero com língua de barro”

“Público” (Ípsilon),
Isa­bel Cou­ti­nho

Ondjaki regressa à infância e juventude da personagem Ndalu, dos seus tios, avós e amigos da Luanda dos anos 1980/90

 

Andou às voltas com um cubo mágico para chegar aqui, onde tudo se encaixa. No ano em que comemora 20 anos de vida literária, lançou O Livro do Deslembramento, auto-ficção onde regressa às personagens da sua até agora tetralogia dedicada à Luanda dos anos 80. Para o angolano, é o seu livro mais psicológico e aquele em que os escudos literários estão mais em baixo.

Ondjaki, de seu verdadeiro nome Ndalu de Almeida, regressa em O Livro do Deslembramento (ed. Caminho) à infância e juventude da personagem Ndalu, dos seus tios, avós e amigos da Luanda dos anos 1980/90. Essa Luanda em que “uma pessoa não sabe passar um dia só sem inventar uma estória” vista pelos olhos de uma criança. Obra de auto-ficção, livro “composto a partir de memórias que derreteram ao sol”, é seguramente uma das mais belas e conseguidas em língua “desportuguesa”. Dá a sensação de que todos estes anos Ondjaki andou às voltas com um cubo mágico para chegar aqui, onde tudo se encaixa.

O romance faz parte da sua, até agora, tetralogia inaugurada com o romance Bom Dia Camaradas, que será discutido com o escritor a 15 de Dezembro, às 22h em Lisboa (19h em Brasília), na primeira sessão do Encontro de Leituras que reunirá online, através da plataforma Zoom, leitores lusófonos. É uma parceria entre o PÚBLICO e o jornal brasileiro Folha de S. Paulo. Dessa tetralogia fazem também parte Os da Minha Rua, AvóDezanove e o Segredo do Soviético.

O Prémio José Saramago 2013, com a obra Os Transparentes, tem 43 anos, regressou há três à cidade onde nasceu e inaugurou em Luanda a editora Kacimbo e a livraria Kiela. Continua a trabalhar sobre a memória que ficcionaliza. Não se lembra do que aconteceu há dias, mas daqueles tempos lembra-se com “uma nitidez absurda”.

“Lembrar, todos nós crescemos aqui e ali, agora o que é que vamos contar… É preciso um bocadinho de discernimento também”, diz durante uma conversa telefónica quase à hora do recolher obrigatório em Luanda por causa da covid- 19.

Começou a escrever O Livro do Deslembramento quando estava a terminar Os Transparentes, que lançou em 2012. Foi necessário o regresso a Angola para o finalizar?

Necessário não. Já escrevi muito sobre Angola estando fora. Realmente foi uma coincidência. Quando comecei a pensar e a falar com o meu editor, Zeferino Coelho, sobre o que íamos fazer quando chegasse a data dos 20 anos de vida literária, e como ele gosta de perguntar muitas vezes se tenho livro novo, disse-lhe que tinha e brinquei: mas não é novo; é um livro inédito, mas não é novo.
(mais…)