“A ciência e a matemática são muito importantes, mas a arte e as humanidades são imprescindíveis à imaginação e ao pensamento intuitivo que estão por trás do que é novo.”
António Damásio
Não obstante existam inúmeras opiniões, fundamentadas em imenso suporte documental e trabalho de campo experimental, sobre a questão do QI (Quociente de Inteligência), parece ser um facto indesmentível que existe uma co-relação*** e, de certa forma, um certo nexo de causalidade entre inteligência e escrita. Essa co-relação*** será até bi-unívoca, visto que não apenas é muito mais fácil para um aluno dotado aprender a escrever, por um lado, e por outro o acto de escrever é, sem dúvida, um factor de incremento intelectual (por assim dizer). Exemplos flagrantes de tal interacção vão dos exercícios mais simples (incluindo as palavras cruzadas, o Scrabble e outros jogos) até a expressões-chave (“leste-me os pensamentos”, “tu para mim és um livro aberto”) e abarcam mesmo rituais particulares; namoro (cartas, recados), “pichagens” nas paredes, leitura compulsiva, etc.
Nesta acepção, a imergência de todo o tecido social nas chamadas “redes sociais”, independentemente da faixa etária ou do estatuto pessoal e profissional de cada qual, representou e representa, quanto à Língua, uma verdadeira tragédia; nas ditas “redes” há de tudo, boa gente e escroques, tarados e pseudo-intelectuais mas também gente que sabe escrever e não engoliu uma vassoura, uma miríade de conteúdos aproveitáveis em contraste com lixo do mais abjecto, cobarde, insultuoso, aviltante; o maior problema desses tugúrios virtuais, porém, quanto à escrita, é a aceleração vertiginosa do processo de degradação que o sistema de Ensino convencional veicula e até promove. A mediocridade que desde há décadas (ou séculos) se instalou no nosso sistema “educativo” e a novel promoção acelerada da Escola enquanto “espaço lúdico”, mimetizando um parque infantil monstruoso ou um circo de 700×200 km, conduziram a uma sistemática fabricação de seres avessos ao conhecimento, renitentes quanto ao estudo e absolutamente alérgicos a um mínimo de rigor; consequentemente, tornou-se vulgar — e até motivo de gala — escrever “com os pés”, ou seja, de qualquer maneira, não importa como, “desde que se perceba”…
E, é claro, a partir de 2010 caiu em cima do sistema, já de si laxista e incompetente, uma epidemia (“pandemia”, para ser exacto) que veio desferir o golpe de misericórdia no Português-padrão; o AO90 destruiu o que de sério ainda restava no Ensino e, para acabar com uma única e geral espadeirada, fez com que imensos portugueses — sem qualquer obrigação ou necessidade disso — “adotassem” a cacografia brasileira no quotidiano.
Por isso, digo eu, este extracto de um artigo de Pedro Marta Santos tem todo o interesse, Termina, porém, numa pergunta que jamais obteve resposta dos autores do estropício. Os quais, aliás, acoitados na impunidade, sob a mão oculta dos Donos Disto Tudo, nunca responderam a coisa nenhuma nem responderam por coisa alguma.
Quando a resposta ao articulista, senhores acordistas, teria sido muito simples: por nada.
Da estupidez em 2021
O maior desafio de 2021 é o da pandemia da ignorância.
O efeito Flynn é a asserção, polémica mas maioritária, de que o valor do Q.I. das populações mundiais tem subido de forma consistente desde o pós-guerra. Nas últimas duas décadas, os especialistas em ciências cognitivas constataram uma inversão do efeito Flynn, sobretudo nos países mais desenvolvidos. Para Christophe Clavé, um guru da estratégia empresarial e professor na INSEEC Business School of Economics, grupo francês especializado no ensino de gestão com filiais em Londres e São Francisco, uma das chaves do problema é a linguagem.
Com o empobrecimento do vocabulário dos millennials (nascidos entre os anos 80 e o final do século XX) e a redução do léxico da geração Z (nascidos entre a segunda metade dos 90 e 2010), não são apenas as palavras que perdem o valor comunicativo. É o próprio pensamento. Falar e, sobretudo, escrever no presente, sem projecção no tempo ou recurso ao condicional, o desaparecimento da pontuação, o abandono das maiúsculas e a longa quarentena de verbos sofisticados, antes em liberdade criativa, são causas e sintomas de um problema maior: a redução na capacidade de desenvolver e reproduzir ideias complexas.
Como António Damásio e outros há muito demonstraram, a atrofia do intelecto pressupõe a asfixia das emoções. Escrever de forma cada vez mais simples e em tempo linear mutila a diversidade emocional. Sem ela, tornamo-nos agressivos. Como frisa Clavé, “parte da violência nas esferas pública e privada provém directamente da incapacidade de descrever as emoções por palavras, como quando abolimos géneros, tempos e nuances”.
A essa escravatura da linguagem podem acrescentar-se os estrangeirismos tecnocráticos (aquele vazio supremo do soft power, do branding ou dos segmentos premium), o novo dadaísmo do Tik-Tok (onde a mensagem é o virtuosismo com que alguém se espeta contra uma parede) e a infantilização do diálogo (likes, tags, emojis). Quando tirarmos as máscaras, o maior desafio de 2021 será dinamitar o monólito das explicações simples para responder à complexidade do mundo. A vida é complicada. Porque não haveriam de o ser a linguagem e o pensamento?
[…]
[Transcrição parcial. Destaques e “links” meus.]
*** Como já disse várias vezes, pelo facto de o AO90 prever não uma mas diversas grafias, eu cá reivindico o direito de escrever conforme me dá na real gana, ou seja, em Português-padrão mas omitindo (de caminho) uma ou outra das regras do acordo de 1945 e mesmo da convenção de 1911.