Dia: 16 de Janeiro, 2021

O macho-alfa


Ah, pois, isso das caixas de comentários é como os sacos para vomitar que se distribuem nos aviões. A gente precisa de um mas só se nunca tiver sido usado. Ou seja, assim com’assim o melhor é nem olhar para eles, a não ser em caso de extrema necessidade e na condição exclusiva de ainda estar virgem de todo, por assim dizer; quando não, pela certa levaremos com o pivete e se porventura não nos estiver a apetecer “restituir”, como dizia o Conselheiro Acácio, então com aquela abjecta visão  teremos de largar um vómito interminável, tão nojento como o que já lá está. Em suma, é fazer de conta que se trata de “ordens do médico”, o mais avisado para que se nos resguarde a saúde mental será conservar uma distância higiénica das caixas de comentários tanto quanto dos sacos aeronáuticos.

Neste caso, tratando-se do AO90, a “matéria orgânica” é a habitual: ou de brasileirófilos empedernidos, sapateiros que não cobram nada para engraxar brasileiros, ou então aqueles outros que, armando ao “tolerante”, concedem que o “acordo” não passa de “uma questão de hábito”. Ambos os tipos restituem os mesmos eflúvios, diferindo entre si apenas pelo grau de octanagem da lavadura regurgitada — porque o AO90 já se transformou numa bebedeira homérica, algo como uma pandemia mental, demencial alucinação colectiva. Exceptuando uma ou outra pessoa, um ou outro comentário, isto é, nos raros e honrosos casos em que não há insultos ou asneiras como ácidos gástricos e bolo alimentar mal digerido, então estamos perante alguém que não carece de Kompensan, logo, de pouco ou nada adianta alimentar uma hipotética discussão; discutir o indiscutível é, com gente normal, converter os convertidos ou sobrecarregar com proselitismo quem já sabe da missa a muito mais de metade.

Não são portanto de grande utilidade os comentários escritos em “caixas” várias, sejam eles latrinários ou redundantes; porém, com certeza algo de aproveitável sobrará da mais simples e amena cavaqueira — face a face, sem “nicknames”, sem “alias”, sem gorilas, sem machos-beta (ou delta ou zeta) que se julgam alfa por se esconderem atrás de um vidro, um teclado e imensa bazófia. 

 

O ocaso das consoantes e a felicidade dos jovens

Nuno Pacheco
“Público”, 14.01.21

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Num tempo dominado por pês (Presidenciais & Pandemia) pode parecer excessivo reincidir no magno problema de escrever com os pés. Mas como a minha crónica anterior suscitou três comentários a merecer resposta, aqui vai. Um: “Na minha opinião o AO 90 tem defeitos, que podem ser analisados e corrigidos, havendo vontade para isso. Nuno Pacheco limita-se a repetir até à exaustão exemplos de erros e incorreções que pouco ou nada têm a ver com o AO 90, numa lógica do ‘quanto pior, melhor’. Analisar e debater seriamente os defeitos e propor correções/soluções não parece ser para ele importante”; outro: “Meta na sua cabeça que está a lutar contra moinhos de vento. Desaparecida a sua geração, estas confusões deixarão de existir porque teremos uma nova geração de gente que aprendeu a escrever a língua portuguesa segundo a nova norma”; Último, que uma criatura assinou como “Macho Alfa”: “Títulos à la André Ventura para continuar uma guerra perdida? É muito à la Trump. Há gente confusa? Há? Sempre houve gente confusa aquando dos acordos ortográficos, nomeadamente os velhotes. Os jovens estão na onda AO90 e felicíssimos. Estão sintonizados. Esta conversa já dá sono.”

O acordo ortográfico de 1990 tem defeitos, há que propor soluções e “correções” (sic). Pois. Isso até os seus autores diziam. Mas algum deles mexeu um só músculo para corrigir o que quer que fosse? Nem um. E já lá vai tempo suficiente para perceber que, tecnicamente, como já muita gente demonstrou (e felizmente por escrito), o problema não são os erros que ele terá, é o erro monumental que ele é: a dita “nova norma” é uma fraude, que não só não uniformizou a grafia nos países de língua portuguesa como fomentou um persistente caos ortográfico que, em lugar de diminuir, a cada dia vai dando novos ares da sua (des)graça.

Debater seriamente? Há décadas que muita gente o faz, apontando erros técnicos, disparates, noções erradas. A isso, os responsáveis pela coisa fazem “orelhas moucas”. Não admira, tal o autoconvencimento de que este acordo é uma coisa com futuro. Já em 1986, um dos grandes defensores, à época, do acordo, escrevia: “Umas semanas bastarão para que as pessoas fiquem acomodadas a ler o seu jornal com meia dúzia de letras e acentos a menos. Alguns dias bastarão para que uma pessoa que escreva frequentemente assimile as novas regras” (Expresso, 21/6).

Contudo, nestes muitos anos cavou-se um fosso abissal entre a prática e essa falsa e ilusória propaganda. A tal “assimilação” rápida das “novas regras” produz todos os dias pequenos monstros, obrigando-nos a ler coisas como “otogonal”, “inato” (por inapto, que inato é outra coisa!), “impato”, “etoplasma”, “adeto”, “ocipital”, “inteletual”, “ocional”, “eucalito”, “rétil”, “elítico” e até “arimética”. Esta colheita é recente e pode juntar-se à da minha crónica anterior. Mas é curioso que já em 2015, no PÚBLICO, o jornalista e escritor Octávio dos Santos (num artigo intitulado “Apocalise abruto”) mencionava dezenas de disparates deste calibre, coligidos em documentos oficiais, institucionais ou na imprensa, por especialistas atentos. Dir-me-ão que erros sempre houve. É verdade. Mas estes são novos, induzidos pela “guerra” às consoantes que o AO90 incentivou. “Arimética”, por exemplo, é dada como correcta no vocabulário oficial do IILP, como grafia facultativa de “aritmética”. Já no da Academia das Ciências não existe.

Gente confusa? Sim, os “velhotes”, coitados. Como os Prémios Camões Vítor Aguiar e Silva e Manuel Alegre, o também premiado linguista Fernando Venâncio ou os recém-desaparecidos Eduardo Lourenço e Carlos do Carmo, aos quais o país teceu as louvaminhas do costume. Adversários, todos eles, do AO90. Deve ser por aquilo que Pedro Mexia disse ao recomendar em 2020 um livro de Vítor Aguiar e Silva no “Governo Sombra” da SIC: “Há esta curiosidade, de pessoas que conhecem bem a língua e a literatura serem contra o acordo ortográfico.”

E os jovens? Diz o tal “Macho” que estão “felicíssimos” e “sintonizados”. É. Basta passar junto das escolas para se ouvirem gritos de alegria onde antes só havia gemidos de dor a temer pelas aulas de português. Aliás, porque não abolir a ortografia? Era muito mais barato e os resultados não andariam longe destes. Tal conversa já dá sono? Deve ser por isso que os responsáveis ou cúmplices de tal trapalhada pedem logo umas almofadas quando se lhes fala no assunto. Azar: os disparates já são tantos e tão ruidosos que não hão-de ter um só minuto de sossego.

[Transcrição integral de artigo com o título “O ocaso das consoantes e a felicidade dos jovens”, da autoria de Nuno Pacheco. (publico.pt, 14.01.21.Destaques, sublinhados e “links” (a verde) meus. Foto de topo de: “¿Qué comen los gorilas?” (quecome.org)]

Rádio Comercial

Esta semana passaram a ser obrigatórias as regras do acordo ortográfico. Ricardo Araújo Pereira explica os problemas do acordo, com o auxílio de Samantha Fox.

Triste comédia

Os neuropsicólogos que estudam a linguagem tentam compreender como utilizamos e combinamos palavras (ou signos, no caso de uma linguagem gestual) para formar frases e transmitir os conceitos elaborados pelo cérebro. Investigam também como compreendemos palavras expressas por outros e de que forma o cérebro as transforma em conceitos. A linguagem surgiu e manteve-se ao longo da evolução porque constitui um meio de comunicação eficaz, sobretudo para conceitos abstractos; auxilia-nos a estruturar o mundo em conceitos e a reduzir a complexidade das estruturas abstractas a fim de apreendê-las: é a propriedade de “compreensão cognitiva”. O termo “chave-de-fendas”, por exemplo, evoca várias representações dessa ferramenta: as descrições visuais da sua aparência e utilização, as condições específicas do seu emprego, a sensação que provoca o seu manuseio ou o movimento da mão quando a utiliza. Da mesma forma, a palavra “democracia” é associada a diversas representações conceptuais. A “economia cognitiva” que a linguagem autoriza ao reagrupar numerosas noções sob um mesmo símbolo permite-nos elaborar conceitos complexos e alcançar níveis de abstracção elevados.

[António Damásio; Hanna Damásio. ‘O cérebro e a linguagem. Viver Mente & Cérebro’.
Scientific American, ano XIII, nº. 143, Dez. 2004]

Assunto recorrente, principalmente em Portugal, a chamada “revisão” do AO90 parece actualmente constituir o tema central no que diz respeito ao “acordo ortográfico” de 1990 (AO90). Puro engano, está bem de ver, se bem que tenhamos de reconhecer os méritos dos métodos de dissimulação que os acordistas conseguiram levar a cabo.

A golpada foi de facto brilhante: em 1986 cozinharam uma primeira versão do “acordo” introduzindo no articulado umas quantas aberrações (ainda mais horripilantes do que aquelas que lhes interessavam) para que a contestação fosse radical e absoluta, como veio evidentemente a suceder. Foi com base nessas hiper-aberrações que surgiram as bacoradas de alguns pretensos acordistas, como as brincadeiras do “cagado de fato na praia”. Toda a gente gozou imenso com o cagado e com o seu fato sem se aperceber de que os acordistas pretendiam na realidade ameaçar o povão com uma versão deliberadamente exagerada contendo o que nem a eles mesmos interessava; tal expediente serviu para que se tornasse mais fácil aparecer posteriormente com uma outra versão, já sem o recheio do “cagado” e do “fato”; assim, satisfeitos com a sua “vitória”, os “indignados” profissionais do costume (e agentes acordistas) regressaram a penates, olha que bom, ganhámos, assim ao menos temos um “acordo”, sim, mas sem “cagados” nem “fatos”. Está claro, tratou-se de uma velha e relha manobra de contra-informação, daquelas que se podem encontrar em qualquer manual de guerrilha propagandística: primeiro ameaça-se com alguma coisa que seja inadmissível e depois saca-se da manga, como se fosse uma concessão aos opositores, a versão final — que sempre foi a única em que os vigaristas estavam interessados. 

Uma ressonância dessa táctica transparece de certa forma neste artigo de Gregório Duvivier, um comediante brasileiro: mesmo tratando-se apenas de alterações respeitantes ao acordo ortográfico de 1945, que o Brasil denunciou unilateralmente 10 anos depois, o comediante deixa de ter qualquer espécie de piada quando se “indigna” com questões de acentuação e de hifenização, os dois únicos itens em que “o Brasil cedeu”. Desses dois aspectos do AO45 que o Brasil não cumpriu então e que apresenta agora no AO90 como sendo “cedências”, aquilo que mais irrita o excelente piadético é a abolição do acento diferencial em pára/para. 

Aliás, o busílis, para os brasileiros que sabem escrever qualquer coisinha, resume-se àqueles dois pormenores (que ocorrem, desde 1945, exclusivamente na escrita brasileira) e à diferenciação entre a forma verbal “pára” e a preposição “para”.

Ora, aqui também vale a mesmíssima táctica (vigarice) utilizada na versão de 1986 do “acordo” e posteriormente na versão “mitigada” de 1990: quando o articulado “final” deste foi aprovado e, posteriormente, quando foi “ratificado” pelos deputados portugueses a soldo (RAR 35/2008), já toda a gente sabia perfeitamente que não iria ser aquela a versão final do estropício e que iria haver posteriormente uma “comissão técnica de revisão” para nela “corrigir os erros mais flagrantes”. De facto, como alegam alguns portugueses, não é só “despiorar” o AO90, é rever as “contradições flagrantes”, as “facultatividades” e, sobretudo, as “duplas grafias”.

Apenas então, quando entrar em funções tal “comissão”, serão “corrigidas” as “aberrações” todas, a do “pára/para” (fica “para/pra”), as tais “facultatividades” e as “duplas grafias” (se no Brasil a consoante é articulada, então em Portugal reentra na escrita). Teremos, por conseguinte, à conta do truque “ok, então nós cedemos”, a “adoção” definitiva — e na íntegra — do brasileiro como língua oficial de Portugal. 

Portanto, os que agora se atiram às “contradições” como gato a bofe terão não apenas de se calar como de, por desfastio, dar palmadinhas nas costas uns aos outros e uma bofetada enorme na coerência. E terão ainda de reconhecer que afinal contribuíram para dar uma enorme, tremenda, fatal machadada na nossa História.

Nossa ruína começou em 2009, quando aprovaram o novo acordo ortográfico

Gregório Duvivier, “Folha de S.Paulo” (Brasil), 12.01.21

País ficou ainda mais confuso a partir do momento em que a gente não sabia nem se era pra ou para onde ir

Historiadores do futuro divergirão sobre a hora em que tudo começou a dar errado aqui. Haverá quem culpe o golpeachment de 2016. Outros citarão o fatídico 7 a 1 na Copa de 2014. Arqueólogos atribuirão às manifestações de 2013 o papel de invasões bárbaras — a culpa, dirão, é do gigante que acordou, quebrou tudo e voltou a dormir.

Tenho uma hipótese que gostaria que paleontólogos do futuro aventassem ao se deparar com nossos fósseis. Nossa ruína começou antes, mais precisamente em 2009, quando aprovaram o novo acordo ortográfico —que, além de não ser novo, não gerou nenhum acordo.

Nesse mesmo ano Portugal entrou numa crise da qual nunca se recuperou. No Brasil, a crise chegou com alguns anos de atraso, como de hábito.

Não se derruba tantos acentos numa língua sem que se derrubem algumas instituições junto. O falante do português ficou na sua própria língua como num ônibus lotado: sem assento. Nem hífen, o cinto de segurança da língua.

A palavra “co-comandante” passou a ser grafada “cocomandante”. Percebam os impactos subliminares de se falar uma língua na qual o cocô é o mandante. Apenas isso explica o fato de termos eleito um tolete de bosta pra pilotar o país.

O Brasil nunca soube pra onde ir, mas ficou ainda mais confuso a partir do momento em que a gente não sabia nem se era “pra” ou “para” onde ir.

A reforma ortográfica derrubou o acento de pára, no sentido de parar, e agora no português “para” significa duas coisas opostas: para onde se vai, e o ato de deixar de ir. O lema “progresso para sempre” diz o contrário do que ele quer dizer.

Dito isso, chego ao real motivo dessa crônica: precisamos parar de escrever “para” com o sentido de “pra”. Com a queda do acento no verbo parar, o acordo nos obriga a escrever “pra” quando usamos a preposição, pra diferenciá-la do verbo. A vogal da primeira sílaba da preposição não deixará saudades.

Ninguém a pronunciava, em nenhuma variante do português — não conheço ninguém que peça: “vamos pAra casa!”, a não ser numa dublagem da sessão da tarde.

Eu me lembro do amigo cronista Fabrício Corsaletti, ao fim de uma noitada sem fim, pedindo aos amigos: “se eu morrer, é pra! É pra!”.

“É pra que?”

“É pra! Não deixa nenhum editor trocar meus ‘pras’ por ‘paras’! Promete?”

Dito isso, peço encarecidamente aos revisores, e editores, e professores desse país: é pra! É pra! Deixem os “pras” em paz. O para precisa parar. Quem sabe assim o país volta a andar.