Nunca ou muito raramente alguém menciona sequer o mais do que evidente complexo de inferioridade da “gente das Letras”, ou das “Humanidades” em geral, face aos eclécticos e mui diversificados confrades académicos do outro lado da rua, isto é, do gigantesco bairro das Ciências.
Só esse complexo (ou pancada) explica, como sucede sempre nas supostas alegações a favor e contra o AO90, os constantes enxertos do radical “ciência” em tudo aquilo que refira as Artes — quaisquer que sejam — e, por extenso ou osmose, os gramáticos e linguistas, os escritores e os jornalistas, a Literatura, o simples e utilitário acto de escrever. Não, juntar letras não é escrever, há-de por força ser uma “Ciência” qualquer e se por acaso a Literatura ou a Gramática ainda não tiverem sido crismadas como “Ciências das Coisas Espertíssimas”, ou algo do género, pois então inventa-se mais uma “Ciência” para simular exactidão, imutabilidade conceptual, possibilidade de experimentalismo e, cúmulo da glória “científica”, matéria de trabalho em laboratório. Esta “estratégia de abordagem”, a armar ao “científico” tem duas óbvias e imediatas consequências: por um lado, as pessoas normais, que por algum motivo execram caganças em geral, fogem do assunto para bem longe e já não querem saber da questão para nada, os académicos que se entendam lá com a sua conversa, o seu arrogante hermetismo, a sua seita de “confrades”; por outro lado, quanto àquilo que realmente agora nos importa, ou seja, o carácter exclusivamente político da venda do Português-padrão ao Brasil, esse facto é arredado pela fábula da “ciência” de qualquer considerando, o que além de sumamente estúpido é algo suicidário.
Durante o recente evento parlamentar, desta vez promovido pelo PEV, tal espécie de demissão da essência da questão ficou mais uma vez patente: o “Centrão” (PS e PSD), que desde sempre foram aliados tácticos quanto à “adoção” da língua brasileira, debitou as suas comuns (e nojentas) patacoadas para justificar o injustificável; os partidos minoritários alegaram pela enésima vez os motivos políticos, técnicos e também “científicos” para contestar a govenamental política do facto consumado.
Não foram os do contra-AO90, como de costume, ao ponto de expor a asquerosa fraude e denunciar os governamentais meliantes mas esbarraram, igualmente como de costume, no sólido muro de indiferença que cerca a arrogante, violenta, ditatorial (e por isso mesmo anti-democrática) sede de lucros e de obscena corrupção dos tribunos envolvidos na rede de tráfico da nossa Língua.
A língua, as malhas da ortografia e o “bloco central” da ignorância
publico.pt, 16.01.21
Nuno Pacheco
A derrota no parlamento de um projecto do PEV para avaliar o Acordo Ortográfico veio trazer a nu uma estranha aliança PS-PSD, a que poderemos chamar “bloco central” da ignorância.
Nuno Pacheco
16 de Janeiro de 2021Não há como uma pandemia para reflectir e decidir sobre qualquer tema. Caso exemplar é o do Projecto de Resolução 533/XIV, apresentado na Assembleia da República (AR) pelo Partido Os Verdes (PEV), em Junho do ano passado, e discutido e votado esta sexta-feira em plenário.
Não se pode dizer que, de início, não tenha sido rápido: deu entrada no dia 23 de Junho de 2020, foi admitido, anunciado e publicado em Diário da República (II série A N.º109/XIV/1) no dia 24, baixou à Comissão de Cultura e Comunicação nesse mesmo dia (tudo isto consta de relatório oficial disponível na AR) e logo no dia 25 foi produzido e enviado ao Presidente da AR o respectivo relatório/parecer. Tudo extraordinariamente rápido. Depois, entrou em oficial hibernação, meteu-se o Verão, o vírus, as máscaras, mais vírus, o entra-e-sai das medidas de emergência, o Natal, o Ano Novo, confina e desconfina, e foi logo no dia em que a severidade de novo confinamento se impôs, por via oficial, que o tal projecto do PEV foi a plenário.
O que pretendia o PEV? Apenas isto: recomendar ao Governo que “promova uma avaliação científica global dos efeitos da aplicação do Acordo Ortográfico de 1990 […] tornando essa avaliação pública”; e que “do resultado dessa avaliação sejam promovidas medidas com vista à correção [sic] dos efeitos nefastos e negativos que sejam identificados e, se as conclusões de tal avaliação assim apontarem, numa situação limite, à orientação para a suspensão do Acordo Ortográfico de 1990, acautelando as medidas necessárias de acompanhamento e transição, por forma a evitar uma maior desestabilização neste processo.” Sublinhe-se a “situação limite”.
Quantas vezes já foi proposta idêntica avaliação? Várias. Resultados? Nenhuns. Já comissões se debruçaram sobre o assunto, já relatórios foram escritos e do lado governamental, além das negações do costume, só um longo bocejo. Pois bem: esta era mais uma ocasião para que o assunto fosse levado a sério (ao menos uma vez, não custava nada, já que o bem fundamentado relatório elaborado pelo deputado social-democrata José Carlos Barros em 2019 teve por destino o esquecimento). Mas, mais uma vez, assistimos a um bloqueio alicerçado em doses equivalentes de propaganda e ignorância, não só da parte do PS como, pasme-se!, do PSD.
E pasme-se porquê? Porque nas legislativas de 2019 o PSD foi dos poucos partidos que incluiu no seu programa eleitoral uma referência clara ao AO90, dizendo textualmente o seguinte (página 64): “Ao contrário do que se pode pensar, as diferenças no uso da língua portuguesa não a empobrecem. Antes revelam as diferentes dinâmicas culturais de cada país na sua apropriação. A ideia de que a uniformização ortográfica poderia constituir uma vantagem face ao mundo globalizado não teve acolhimento. Neste sentido, o PSD entende que importa avaliar o real impacto do novo Acordo Ortográfico – que se tornou obrigatório em 2015 [o que é contestável com argumentos legais, diga-se] – e ponderar a respectiva revisão face ao evidente insucesso da sua generalização entre os países de língua oficial portuguesa e mesmo entre os autores portugueses.” Coisa parecida defendeu, também no seu programa eleitoral, o CDS-PP (págs. 131-132): “Não podemos falar da Língua Portuguesa sem assumir que a ideia central do Acordo Ortográfico de 1990 – uma ortografia unificada – falhou. Pela nossa parte, pode e deve ser avaliado quanto aos seus efeitos e problemas, tanto no uso da Língua como a nível internacional.” Isto enquanto partidos como o PCP e o PAN apresentavam programas sem obedecer ao AO; e o PEV, sujeitando-se à dita “nova grafia” no seu programa eleitoral, manifestava dúvidas quanto ao Acordo Ortográfico.
Mariana Silva, que junto com José Luís Ferreira assinou o Projecto de Resolução do PEV, foi claríssima: o AO90 falhou nos seus principais pressupostos (“unificação da Língua; simplificação da Língua; e facilitação da aprendizagem da Língua para crianças em fase escolar e para estrangeiros”), não conseguiu a ratificação (e mesmo essa discutível) senão de metade dos países da CPLP, “além de não se ter conseguido, até ao dia de hoje, a sua aceitação plena por vários sectores da sociedade.” O presidente da AR teve de intervir para que o ruído na sala diminuísse, já que vários deputados conversavam animadamente durante a sua intervenção, como se virassem as costas ao tema.
E na prática viraram, com escassas excepções. Ana Rita Bessa, do CDS-PP, ainda veio dizer que “Portugal deveria ser capaz de avaliar o acordo, os seus efeitos, a sua adesão, e decidir”, recordando o relatório de José Carlos Barros e dizendo que “não há dupla grafia para a palavra avaliar” (ou seja: se é para avaliar, que se avalie mesmo, sem truques); Ana Mesquita, do PCP, recordando que o seu partido foi o único que em 4 de Junho de 1991 não votou favoravelmente o AO90, sublinhou que o assunto não está fechado: “Subsistem incongruências, deficiências, dificuldades práticas na aplicação do acordo que são visíveis todos os dias nas escolas, nos media, nos livros, nas páginas oficiais de entidades públicas, como é o caso desta em que nos encontramos”, não podendo ser o AO90, “nos termos em que está, inalterável e irrevogável”; e Beatriz Gomes Dias, do BE, recordando que as “discussões e as controvérsias” sobre o AO90 se mantêm 30 anos após ter sido aprovado, acabou por fazer um discurso maioritariamente crítico, admitindo que o acordo “não é perfeito ou consensual e são inequívocas as dificuldades várias na sua aplicação” e que “não é aceitável que, face a expressões aplicadas que manifestamente são erros grosseiros, não tenha havido a capacidade política para antecipar a necessidade de assumir politicamente uma revisão técnica do acordo ortográfico.” Defendeu, por isso, “um processo de revisão técnica” facilitado pelo Vocabulário Ortográfico Comum.
Pois bem: entre a exigência de uma avaliação e uma mais que prometida, mas nunca sequer encarada, “revisão técnica” (com tantos erros acumulados, corria o risco de ser o princípio do fim do acordo), eis que surgiram da Terra do Nunca as vozes do PS e do PSD. Da parte do PS, Pedro Cegonho (que havia sido o relator do parecer sobre a Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico, cujo destino continua a marinar no parlamento) mostrou-se um verdadeiro homem do aparelho: o que alegou foi um perfeito decalque da cartilha oficial dos defensores do acordo, cartilha que até hoje prima pela inércia e pela voluntária ignorância dos males que tal acordo não cessa de causar. Exaltou “a relevância do Acordo para a literacia: a facilitação da aprendizagem da escrita e da leitura no vasto quadro dos falantes de português da CPLP”, mas ignorou que “no vasto quadro de falantes” o acordo é grandemente ignorado. Basta dizer que, consultando as várias Constituições dos países da CPLP, só a de Portugal é que foi (abusivamente, diga-se) transcrita para a “nova grafia”, mantendo-se as restantes, nas suas mais recentes versões em linha, fiéis ao português de 1945 ou, no caso da do Brasil, que foi actualizada em 2019, seguindo a “nova norma” brasileira, que é diferente da portuguesa.
Depois, veio invocar o Instituto Internacional da Língua Portuguesa, como “sede própria” para “dirimir divergências científicas” invocando o texto do acordo. Mas só quem desconhece em absoluto o que é o IILP (basta visitá-lo em linha) é que pode encarar tal hipótese sem soltar uma sonora gargalhada, pois o seu “rigor e critérios científicos” são uma verdadeira anedota, como já tive ocasião de demonstrar em mais do que um artigo (ver, por exemplo, “O instituto, a língua, os amantes dela e a penúria do costume”, 7/1/2020; “O vocabulário oficial do Acordo Ortográfico está morto há dias e ninguém deu por nada!”, 26/1/2020; “Ressuscitou como morreu: como fraude. E ainda há quem lhe chame vocabulário”, 30/1/2020; ou “Anatomia de uma fraude com duas palavras picantes como condimento”, 5/2/2020). Se o texto do projecto ignorou o IILP, como disse Cegonho, terá sido porque o IILP, na verdade, não conta nada. Um exemplo disso será o apagamento total do auto-intitulado Conselho de Ortografia da Língua Portuguesa, anunciado com pompa em Outubro de 2019 como “órgão técnico do IILP”. Pois bem, após uma primeira reunião, finou-se. E nem na morada virtual do IILP se encontra rasto dele, a não ser na encomiástica notícia que, à data, deu conta do seu estranho nascimento.
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