O problema deste tipo de artigos, arrolando exemplos do cAOs vigente, torna-se na prática algo arriscado em termos de propaganda anti-AO90. Ainda que alguns persistam, desde os primórdios, na tese de que “o acordo não está em vigor”, a verdade é que está mesmo em vigor, na prática, com o imenso cortejo de “erros flagrantes” (estes sim) que já vamos vendo por todo o lado. Sei por experiência própria que não adianta absolutamente nada tentar demonstrar que a anormalidade se normalizou; a partir de certo ponto tornou-se contraproducente fingir que esse wishful thinking é real e não uma bizarra ficção; o AO90 está em vigor, sim, e há já uma década. Claro que nada obrigava os jornais e os jornalistas, os tradutores e os escritores, alguns deles ex-militantes fervorosos da Causa anti-acordista, a alinhar cega e bovinamente na cacografia brasileira, mas assim sucede, um rato é um rato e a realidade é a realidade. Mas este estranho mistério tipicamente tuga, o seguidismo militante, o mariavaicasoutrismo, é cousa diferente, se bem que obedeça à mesma matriz estupidológica. Foi precisamente por constatar, lentamente e com horror, que a época de caça à “consoante muda” (etimológica ou com valor diacrítico) já ia atingindo foros de trivialidade, que decidi parar de coleccionar este tipo de imbecilidades: a persistência pode fazer todo o sentido enquanto se justificar e for útil, mas pode também a repetição dessa táctica ser um tiro (ou uma rajada de metralhadora) pela culatra, porque vai conferindo “normalidade” a algo que é de todo aberrante.
O “fundamento” basilar do AO90 (“só se escreve o que se diz”) implica, pelo menos nos microcéfalos, bajuladores e indivíduos classificáveis em outras variantes da idiotia clínica, que são produzidos em Portugal estranhíssimos neologismos… em especial porque ninguém fala (ou escreve) assim. A intenção é, obviamente, além da tal caça às “duas consoantes seguidas” (sequência consonântica), também uma tentativa de imitação do “falar” brasileiro; “falar” esse que é reproduzido a 100% pelo “acordo”. “Escreve-se só o que se diz”… no Brasil, claro. Daí as demais tangas para enganar retardados. Os brasileiros acentuam todas as vogais, portanto o AO90 consagra a “ação” deles, a “afetação” deles, a “reação” deles e assim por diante.
Este “apocalise”, em concreto (cimento, no Brasil), começou de facto em 2010 e foi paulatinamente insinuando-se nos hábitos de muitos nacional-porreiristas e outros brasileirófilos. Pouco ou nada adianta ilustrar o cAOs em detalhe, repetitiva e cansativamente, como os anúncios publicitários. Tal estratégia acaba por tornar-se numa espécie de analgésico mental.
Enfim. Já não se fazem “apocalises” como antigamente. Nem “helicóteros”. Nem “netarinas”.
Bolas. Só de falar nisto já se me começou a tilintar a maldita “úcera” “pética”. Com licença, eu vou só ali “delutir” e já volto.
2021: odisseia “abruta” no “apocalise”
Nuno Pacheco, “Público”, 07.01.21
Karl Kraus via os erros na escrita como os causadores dos grandes males do mundo. Pois calhou-lhe um “apocalise”.
Vinte anos passados sobre o 2001 que Clarke e Kubrick nos fixaram na memória, era quase inevitável deparar com novas adaptações do título do livro e do filme a variados contextos. E isso não é de agora, já temos vindo a lê-los desde há largos meses. Alguns exemplos: “2021: odisseia no PIB” (jornal i), “2021, Odisseia no Espaço da União” (O Jornal Económico), “2021, Avança a Odisséia no Espaço!” (Correio Braziliense), “2021 Odisseia em Marrocos” (de uma equipa de viajantes no Facebook), “2021: odisseia nas finanças pessoais” (Dinheiro Vivo), “2021: odisseia na Terra” (no blogue A 3.ª Face) e até “2021 Odisseia dos descontos” (este em letras gordas no folheto de uma conhecida marca de electrodomésticos). Mas há uma outra odisseia que se nos torna cada vez mais penosa: é a odisseia “abruta” no “apocalise”.
Expliquemo-nos: em 2020, como em anos anteriores, temos vindo a alertar (fazendo eco de muitos e fundamentados avisos, recentes e antigos) para o aparecimento de palavras surreais, que vão surgindo a coberto de uma qualquer “simplificação” da escrita. O acordo ortográfico abriu a torneira, esqueceu-se de a fechar, e o disparate jorra em quantidades industriais. O que tem isto a ver com 2021? O mesmo que tinha a ver com 2020, ou 2019, ou… 2010. Com a agravante de, ano após ano, não terem diminuído mas sim aumentado, e muito, tais erros.
Depois de alguns tristes exemplos já aqui citados numa crónica anterior (“Viagem alucinante pelo país das cinco ortografias”), tais como “impatos”, “patos”, “estupefatos”, “artefatos” “corrução”, “excepo”, “interrução” e “helicótero”, em lugar de impactos, pactos, estupefactos, artefactos, corrupção, interrupção e helicóptero, temos agora (além da repetição das pérolas anteriores), “tenológico”, “impate”, “putrefato”, “sução”, “réteis”, “onívoros”, “galáticos” (“preços galáticos”, anunciados no mesmo folheto da “Odisseia dos descontos”), “piroténico”, “excessão”, “espetativa”, “excessional”, “secionadas”, “abruta” e “apocalise”! Isto em vez de tecnológico, impacte, putrefacto, sucção, répteis, omnívoros, galácticos (de galáxia, não de galos), pirotécnico, excepção, expectativa, excepcional, seccionadas, abrupta e apocalipse. Ora o “apocalise” chegou a ser anunciado por um município como título de um espectáculo que na verdade se chama Os Quatro Clows do Apocalipse. Pior ainda, chegou a ser usado ao citar o título do filme de Francis Ford Coppola, Apocalypse Now a propósito de um livro que nem sequer era com ele relacionado. Assim: “Em Apocalise Now, o genial filme de guerra…”
Mas muito pior do que isso é o facto de um livro intitulado O Apocalipse Estável: Aforismos, surgir etiquetado numa biblioteca como… O apocalise estável (disparate corrigido pela capa do livro, reproduzida ao lado). Onde se deu tamanha bizarria? Numa biblioteca pobríssima de uma aldeia recôndita? Não, no site da Biblioteca Nacional de Portugal! E não se trata de mero lapso, pois a palavra (se assim lhe podemos chamar) “apocalise” surge grafada duas vezes, uma a negrito e outra a itálico, como se comprovará numa mera consulta. O que quer isto dizer? Que os funcionários da BNP são analfabetos? Não. Se assim fosse, seria corrigível. O pior é que quem escreveu semelhante enormidade deve ter-se regido pela ideia geral, comum a todas ou quase todas as aberrações acima descritas, de que duas consoantes seguidas são um crime de lesa-língua. O estúpido acordo induziu as gentes nessa sinistra façanha censória e não há modo de as parar, até porque o disparate se dissemina muito mais rapidamente do que o senso ou o nexo. Daí, toca a tirá-las, umas a eito e outras à sorte. “Abruta” e “apocalise” não existem em lado algum, nem em Portugal, nem no Brasil nem em qualquer canto do Globo.
O mais divertido é que tal erro, fixado nas páginas virtuais da Biblioteca Nacional (há-de ser emendado à pressa mal alguém leia isto, mas fica uma cópia registada na versão online desta crónica, para memória futura), foi logo calhar a Karl Kraus (1874-1936), um escritor vienense que olhava para os erros na escrita como os causadores dos grandes males do mundo. Sem ir tão longe, não faria mal aos nossos governantes e deputados lerem, já não digo Kraus, mas as misérias citadas nesta crónica. Talvez assim avaliassem melhor o indefensável “acordo” que assinaram e teimam em manter, virando costas à razoabilidade dos que se lhe opõem.
Nuno Pacheco