Triste comédia

Os neuropsicólogos que estudam a linguagem tentam compreender como utilizamos e combinamos palavras (ou signos, no caso de uma linguagem gestual) para formar frases e transmitir os conceitos elaborados pelo cérebro. Investigam também como compreendemos palavras expressas por outros e de que forma o cérebro as transforma em conceitos. A linguagem surgiu e manteve-se ao longo da evolução porque constitui um meio de comunicação eficaz, sobretudo para conceitos abstractos; auxilia-nos a estruturar o mundo em conceitos e a reduzir a complexidade das estruturas abstractas a fim de apreendê-las: é a propriedade de “compreensão cognitiva”. O termo “chave-de-fendas”, por exemplo, evoca várias representações dessa ferramenta: as descrições visuais da sua aparência e utilização, as condições específicas do seu emprego, a sensação que provoca o seu manuseio ou o movimento da mão quando a utiliza. Da mesma forma, a palavra “democracia” é associada a diversas representações conceptuais. A “economia cognitiva” que a linguagem autoriza ao reagrupar numerosas noções sob um mesmo símbolo permite-nos elaborar conceitos complexos e alcançar níveis de abstracção elevados.

[António Damásio; Hanna Damásio. ‘O cérebro e a linguagem. Viver Mente & Cérebro’.
Scientific American, ano XIII, nº. 143, Dez. 2004]

Assunto recorrente, principalmente em Portugal, a chamada “revisão” do AO90 parece actualmente constituir o tema central no que diz respeito ao “acordo ortográfico” de 1990 (AO90). Puro engano, está bem de ver, se bem que tenhamos de reconhecer os méritos dos métodos de dissimulação que os acordistas conseguiram levar a cabo.

A golpada foi de facto brilhante: em 1986 cozinharam uma primeira versão do “acordo” introduzindo no articulado umas quantas aberrações (ainda mais horripilantes do que aquelas que lhes interessavam) para que a contestação fosse radical e absoluta, como veio evidentemente a suceder. Foi com base nessas hiper-aberrações que surgiram as bacoradas de alguns pretensos acordistas, como as brincadeiras do “cagado de fato na praia”. Toda a gente gozou imenso com o cagado e com o seu fato sem se aperceber de que os acordistas pretendiam na realidade ameaçar o povão com uma versão deliberadamente exagerada contendo o que nem a eles mesmos interessava; tal expediente serviu para que se tornasse mais fácil aparecer posteriormente com uma outra versão, já sem o recheio do “cagado” e do “fato”; assim, satisfeitos com a sua “vitória”, os “indignados” profissionais do costume (e agentes acordistas) regressaram a penates, olha que bom, ganhámos, assim ao menos temos um “acordo”, sim, mas sem “cagados” nem “fatos”. Está claro, tratou-se de uma velha e relha manobra de contra-informação, daquelas que se podem encontrar em qualquer manual de guerrilha propagandística: primeiro ameaça-se com alguma coisa que seja inadmissível e depois saca-se da manga, como se fosse uma concessão aos opositores, a versão final — que sempre foi a única em que os vigaristas estavam interessados. 

Uma ressonância dessa táctica transparece de certa forma neste artigo de Gregório Duvivier, um comediante brasileiro: mesmo tratando-se apenas de alterações respeitantes ao acordo ortográfico de 1945, que o Brasil denunciou unilateralmente 10 anos depois, o comediante deixa de ter qualquer espécie de piada quando se “indigna” com questões de acentuação e de hifenização, os dois únicos itens em que “o Brasil cedeu”. Desses dois aspectos do AO45 que o Brasil não cumpriu então e que apresenta agora no AO90 como sendo “cedências”, aquilo que mais irrita o excelente piadético é a abolição do acento diferencial em pára/para. 

Aliás, o busílis, para os brasileiros que sabem escrever qualquer coisinha, resume-se àqueles dois pormenores (que ocorrem, desde 1945, exclusivamente na escrita brasileira) e à diferenciação entre a forma verbal “pára” e a preposição “para”.

Ora, aqui também vale a mesmíssima táctica (vigarice) utilizada na versão de 1986 do “acordo” e posteriormente na versão “mitigada” de 1990: quando o articulado “final” deste foi aprovado e, posteriormente, quando foi “ratificado” pelos deputados portugueses a soldo (RAR 35/2008), já toda a gente sabia perfeitamente que não iria ser aquela a versão final do estropício e que iria haver posteriormente uma “comissão técnica de revisão” para nela “corrigir os erros mais flagrantes”. De facto, como alegam alguns portugueses, não é só “despiorar” o AO90, é rever as “contradições flagrantes”, as “facultatividades” e, sobretudo, as “duplas grafias”.

Apenas então, quando entrar em funções tal “comissão”, serão “corrigidas” as “aberrações” todas, a do “pára/para” (fica “para/pra”), as tais “facultatividades” e as “duplas grafias” (se no Brasil a consoante é articulada, então em Portugal reentra na escrita). Teremos, por conseguinte, à conta do truque “ok, então nós cedemos”, a “adoção” definitiva — e na íntegra — do brasileiro como língua oficial de Portugal. 

Portanto, os que agora se atiram às “contradições” como gato a bofe terão não apenas de se calar como de, por desfastio, dar palmadinhas nas costas uns aos outros e uma bofetada enorme na coerência. E terão ainda de reconhecer que afinal contribuíram para dar uma enorme, tremenda, fatal machadada na nossa História.

Nossa ruína começou em 2009, quando aprovaram o novo acordo ortográfico

Gregório Duvivier, “Folha de S.Paulo” (Brasil), 12.01.21

País ficou ainda mais confuso a partir do momento em que a gente não sabia nem se era pra ou para onde ir

Historiadores do futuro divergirão sobre a hora em que tudo começou a dar errado aqui. Haverá quem culpe o golpeachment de 2016. Outros citarão o fatídico 7 a 1 na Copa de 2014. Arqueólogos atribuirão às manifestações de 2013 o papel de invasões bárbaras — a culpa, dirão, é do gigante que acordou, quebrou tudo e voltou a dormir.

Tenho uma hipótese que gostaria que paleontólogos do futuro aventassem ao se deparar com nossos fósseis. Nossa ruína começou antes, mais precisamente em 2009, quando aprovaram o novo acordo ortográfico —que, além de não ser novo, não gerou nenhum acordo.

Nesse mesmo ano Portugal entrou numa crise da qual nunca se recuperou. No Brasil, a crise chegou com alguns anos de atraso, como de hábito.

Não se derruba tantos acentos numa língua sem que se derrubem algumas instituições junto. O falante do português ficou na sua própria língua como num ônibus lotado: sem assento. Nem hífen, o cinto de segurança da língua.

A palavra “co-comandante” passou a ser grafada “cocomandante”. Percebam os impactos subliminares de se falar uma língua na qual o cocô é o mandante. Apenas isso explica o fato de termos eleito um tolete de bosta pra pilotar o país.

O Brasil nunca soube pra onde ir, mas ficou ainda mais confuso a partir do momento em que a gente não sabia nem se era “pra” ou “para” onde ir.

A reforma ortográfica derrubou o acento de pára, no sentido de parar, e agora no português “para” significa duas coisas opostas: para onde se vai, e o ato de deixar de ir. O lema “progresso para sempre” diz o contrário do que ele quer dizer.

Dito isso, chego ao real motivo dessa crônica: precisamos parar de escrever “para” com o sentido de “pra”. Com a queda do acento no verbo parar, o acordo nos obriga a escrever “pra” quando usamos a preposição, pra diferenciá-la do verbo. A vogal da primeira sílaba da preposição não deixará saudades.

Ninguém a pronunciava, em nenhuma variante do português — não conheço ninguém que peça: “vamos pAra casa!”, a não ser numa dublagem da sessão da tarde.

Eu me lembro do amigo cronista Fabrício Corsaletti, ao fim de uma noitada sem fim, pedindo aos amigos: “se eu morrer, é pra! É pra!”.

“É pra que?”

“É pra! Não deixa nenhum editor trocar meus ‘pras’ por ‘paras’! Promete?”

Dito isso, peço encarecidamente aos revisores, e editores, e professores desse país: é pra! É pra! Deixem os “pras” em paz. O para precisa parar. Quem sabe assim o país volta a andar.