“Se os bois e os cavalos tivessem mãos e pudessem pintar e produzir obras de arte similares às do homem, os cavalos pintariam os deuses em forma de cavalos e os bois pintariam os deuses em forma de bois.” [Xenófanes (570 a.C. – 475 a.C.)]
Mais uma espécie de crónica de Nuno Pacheco, no “Público”, sobre o AO90. Desta vez, para variar, até há poucas listas de palavras abstrusas (e listas mais curtas do que o costume, outra inovação refrescante), o que deixa espaço para algumas incursões pelos primórdios da fantasmagórica nacional-aldrabice que os políticos profissionais baptizaram como “acordo ortográfico de 1990”.
Ora, assim sendo, além de passar a integrar o repositório em curso aqui no Apartado 53, este artigo, transcrito (em baixo) na íntegra, é também uma oportunidade para fazer as conexões da ordem, isto é, através de “links” reconstituir… ligações. Sempre foi demasiadamente evidente que, por um lado, relacionar as coisas umas com as outras faz todo o sentido, e que, por outro lado, que “isso dá trabalho”; ora, tudo o que em Portugal “dá trabalho” não é para “se fazer”, é para “se ir fazendo”. Estabelecer relações de causa e efeito ou nexos de causalidade ou, quanto mais não seja, apontar algo ou alguém que ilustre, explique ou simplesmente refira factos, assinale fontes, identifique autorias, atribua citações ou, em suma, relacione entre si diversos conteúdos, bem, como sabemos, por regra tal tarefa é uma espécie de castigo de Sísifo: por algum insondável mistério, visto não haver culpa formada, os deuses mandam que se empurre um penedo monte acima e, quando finalmente o condenado chega ao topo do monte, o penedo rola de novo encosta abaixo. Ou seja, eterno esforço recompensado apenas com eterna desilusão. Repetir ad infinitum um castigo é outra forma de explicar (e expiar) o conceito de “dever”.
Deixemos porém, a obscuridade mitológica, sempre tão desarmante na sua clareza, e voltemos ao trivial quotidiano. Efectivamente, como diz agora a crónica (em sentido duplo), foi Cavaco o mandante e Santana o pau-mandado. Estes dois, lídimos representantes da mais pura e dura mediocridade nacional, em ambos os casos provindos das direitas políticas civilizadamente trogloditas, foram a posteriori acolitados por outros que tal das esquerdas, com José Sócrates — esse colosso de honestidade e transparência — e sua seita à cabeça. O camartelo acordista, uma aparente bandeira das direitas, os azuis, foi afinal acarinhado e promovido por esquerdistas, os vermelhos. Explica-se tal fenómeno com a maior das facilidades: o dinheiro não tem cor. Não adianta tentar intrujar a História e descrever um zarolho as vistas; o AO90 não é só um assalto dos direitolas, o gang inclui inúmeros esquerdolas (além do respectivo suporte “doutrinário”, veja-se e analise-se o´”Berloque de Esquerda”, um caso patológico) e para todos os envolvidos a questão resume-se a cifrões, o resto é palha para ração de jumentos.
As actuais graçolas sobre o AO90, além de recorrentes e tão engraçadas como tirar cera dos ouvidos, são um eco já ténue daquilo que ameaça fazer desaparecer para sempre, no mesmo vórtice, a Língua Portuguesa e quem em Portugal tirou a tampa do ralo cultural. Fingir que a questão surgiu do nada, sugerir que não houve objectivamente culpados, insinuar em cada mentira uma espécie de proselitismo devoto, tentar explicar todo o logro, enfim, por uma espécie de fatalidade do bem, isso é insuportável, castigo demasiado.
Pois nem assim Sísifo desistirá de cumprir o seu dever, sempre empurrando para cima o pedregulho que sempre rola para baixo, e sendo preciso também se sujeitará de novo ao suplício de Tântalo. A decepção como recompensa pelo esforço e o inalcançável logo ali, à distância do braço, mesmo cumulativamente os dois castigos são coisa pouca.
Bem pior, verdadeira maldição, é não querer ver. Nem com o olho único da testa, à maneira dos ciclopes.
Os factos de Marcelo e o fato sem salvação de Santana
Muito antes de imaginar que viria a ser Presidente da República (feito que bisou), Marcelo Rebelo de Sousa foi conhecido como “criador de factos políticos”, tarefa que desempenhou afincadamente a partir de vários jornais, para gáudio de uns e desespero de outros. Já Pedro Santana Lopes, politicamente formado no mesmo PPD (hoje PSD) que Marcelo, viria a ser conhecido pela criação de um “fato” ortográfico: o acordo assinado na Ajuda em 1990.
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E “fato” porquê? Porque foi ele quem escreveu, em 2012: “Agora ‘facto’ é igual a fato (de roupa).” Acrescentando, em defesa deste raciocínio: “Mas também ‘caso’ (de Justiça) é igual a ‘caso’ (do verbo casar) e ‘falta’ (no desporto) é igual a ‘falta’ (de carência). E nem vale a pena falar do que os nossos avós tiveram de se habituar, para deixar de escrever ‘pharmácia’, palavra com tantas tradições.” Se fosse ao dicionário, teria milhares de exemplos, tantas são as palavras com dois, três ou mesmo dezenas de significados, no português como noutras línguas.
Mas o que levou Santana a vestir aquele “fato” foi a defesa do acordo ortográfico (AO90) no qual se empenhou. Num artigo publicado em 14/2/2012 no semanário Sol, Santana insurgia-se contra o facto de Vasco Graça Moura “desrespeitar” o AO90 na Fundação das Descobertas: “Não é aceitável”, dizia. E dava exemplos de como se escrevia no século XIX, afirmando que “a língua mudou e a pátria […] não acabou”, numa bizarra confusão entre língua e escrita. Depois puxava lustro aos seus botões, garantindo que foi Cavaco quem lhe entregou a tarefa de “negociar e assinar o Acordo Ortográfico”: “A este propósito, Cavaco Silva foi peremptório: em seu entender, o Acordo Ortográfico era essencial para que, no século XXI, o português falado em Portugal não ficasse com um estatuto equivalente ao do latim.” É curioso que nem Cavaco escrevia no dito acordo. Em casa, escrevia “à antiga”. Depois… “traduziam-no”.