«Eu casualmente conheci Pacheco. Tenho presente, como n’um resumo, a sua figura e a sua vida. Pacheco não deu ao seu paiz nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma idéa. Pacheco era entre nós superior e illustre unicamente porque tinha um immenso talento. Todavia, meu caro snr. Mollinet, este talento, que duas gerações tão soberbamente acclamaram, nunca deu, da sua força, uma manifestação positiva, expressa, visivel! O talento immenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundidades de Pacheco!»
[Eça de Queirós, “A Correspondência de Fradique Mendes”]
Chame-se-lhe nepotismo, amiguismo, compadrio ou qualquer outra ternurenta designação do género, a verdade é que nessa alegre actividade, para variar e por excepção, Portugal e Brasil são de facto “países irmãos”; oh, sim, sim, sem dúvida, no que toca a usurpar cargos à conta de “cunhas” ou arrumar tachos consoante a seita, ah, caramba, em tal mister tanto os tugas como os zucas são verdadeiros especialistas; e se alguém disser que na Itália ainda é pior, isso só pode ser por uma lamentável (e imbecil) carga de ingenuidade: os meliantes que integram organizações de crime organizado como a Mafia (ou a Camorra ou a Ndrangheta) são verdadeiros meninos de coro quando comparados com o crime desorganizado em Portugal e no Brasil.
Vem este intróito a propósito da geral orgia tachista que deu origem ao “acordo ortográfico”, abreviando uma longa história, inventado por agremiações informais de ladrões — de ambos os lados do Atlântico — mas suportado, incentivado e promovido por instituições formais, esses ninhos de compadres, correlegionários, compinchas, tachistas a granel.
A ABL, de que fala um brasileiro no artigo agora reproduzido, o qual, aliás, versa exclusivamente sobre o nepotismo ali vigente, tem o seu lamentável paralelo em membros da tuga ACL; não oficialmente na instituição, propriamente dita, cujo presidente pretende “despiorar” o AO90, mas em alguns bacanos que alegre e ociosamente envergam o traje cerimonial da lisboeta agremiação.
De certa forma, a colaboração — seja ela activa ou passiva — desses académicos na “adoção” em Portugal da cacografia brasileira torna-se compreensível: o papel de tais gerontes brasileiros e portugueses, tradicional e sumamente desocupados, isto é, sem nada que fazer, resume-se a produzir de vez em quando umas papeladas sobre o “acordo” e a mandar umas bocas pseudo-científicas para tentar justificar o AO90. Exercício fútil (e cretino), é claro, dada a impossibilidade técnica (e pragmática) de justificar o injustificável.
Sucede que o AO90, como bem sabemos, não contou na sua atrapalhada feitura com qualquer das duas Academias; quando muito, alguns dos “notáveis” de ambos os tugúrios (como Bechara, por exemplo e desgraça) juntaram umas papeladas à letrada aberração, a ver se porventura conseguiriam aldrabar algum patego ou catolizar um ou outro retardado.
Como sabemos também, ou ainda melhor, o AO90 foi exclusivamente cozinhado entre políticos indiferenciados, governantes (Cavaco, Lula da Silva, José Sócrates) e deputados do PS e do PSD.
Suas académicas sumidades não se meteram na marosca, pelo menos não de forma a comprometer-se em semelhante alhada, guardando assim nas profundidades de si mesmos, gravemente, prudentemente, o que talvez fosse da sua competência mas que o seu imenso talento emudeceu então e agora cala.
Os encantos da Academia Brasileira
O século XXI marca o fim de uma instituição que passou mais de cem anos no melhor do imaginário popular e das aspirações dos homens ligados de alguma forma à cultura. Trata-se da Academia Brasileira de Letras (ABL), criação de um grupo efetivamente de grandes valores intelectuais, liderados por Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Graça Aranha e outras referências da cultura em sua época.
Tendo a Academia Francesa como modelo, a ABL procurou sempre reunir aqueles que se destacavam, especialmente na criação literária. Mas sempre teve espaço para notáveis, como o caso dos presidentes da República, desde Getulio Vargas, eleito por aclamação em pleno Estado Novo, a José Sarney, com obra compatível, e Fernando Henrique Cardoso, sociólogo de esquerda, cuja contribuição à cultura foi ter tido nos seus dois mandatos um ministro da Cultura eficiente, Francisco Weffort, que, curiosamente, a Academia não elegeu. Mas, em troca de favores para a formação de seu património, hoje robusto, derrotou Juscelino Kubitscheck, campeão da pura democracia no Brasil. Não foi de direita nem de esquerda. A Academia sempre foi sensível a abrigar os donos de ‘Media’, como foram os casos de Assis Chateaubriand e Roberto Marinho.
Mesmo em seus melhores anos, a ABL cometeu seus pecados ao confundir as coisas. Com a morte de um dos fundadores e entre os grandes da literatura, José de Alencar, elegeu seu filho Mário, de produção modesta. Meio século depois, ainda sob os efeitos da alegria de ter recebido o rebelde Jorge Amado, em sua fase madura, elege sua mulher, Zélia Gattai, que, não fosse pelo casamento, jamais chegaria à cobiçada cadeira.Depois de décadas dirigida pela mão firme e competente de Austregésilo de Athayde, passou a ter presidência rotativa, mas sem a força de impedir a criação de grupos que escolhem os eleitos entre os seus.
Embora ao longo de sua vida a academia nem sempre tenha inspirado aspirações de notáveis como Carlos Drummond de Andrade e Erico Verissimo, hoje são poucos os de produção literária, que não a de relações próximas e apadrinhamento do chamado “núcleo duro”, que escolhe os ocupantes das vagas por critérios pessoais. Não se tem a preocupação de buscar mulheres e homens com produção, mas tão somente eleger pela origem ideológica e mesmo pelo compadrio. Foi-se o tempo em que a Academia elegeu Santos Dumont, mesmo sem sua candidatura formal. Mas ele nunca tomou posse. Ou insistia com talentos como Guimarães Rosa, que, supersticioso, achava que morreria tão logo assumisse. Por isso demorou mais de dois anos e quando assumiu morreu meses depois.
Foi-se o tempo em que os diplomatas escritores tinham uma presença. Os actuais foram eleitos há mais de 20 anos, como o caso de Alberto Costa e Silva. Geraldo Holanda Cavalcanti Sergio Rouanet, este, embora diplomata, aproveitou sua posição de responsável pela cultura no governo de Fernando Collor para pavimentar a candidatura e se elegeu, descaradamente, no exercício do alto cargo, vencendo um ser superior como Roberto Campos, eleito em outra oportunidade.
Hoje, são muitos os intelectuais produtivos, de carreira e obra, que não estão entre as prioridades do grupo que domina a Casa de Machado de Assis. Exemplos são: Mary Del Priore, com mais de 30 livros editados e bem vendidos; Nelson Motta, escritor de sucesso, compositor, jornalista, um editor de referência e cultura; José Mário Pereira, da Topbooks; e Ricardo Cravo Albin, um ativista da memória histórica e da música no Brasil. São hoje imortais advogados, professores de Direito, economistas, cineastas, muitos jornalistas, alguns com obra literária. Muitos, apesar de cultura, autores semi-inéditos.
A excepção virou regra e, assim, o Brasil vai perdendo com o tempo uma instituição que teve respeito, prestígio e coroava carreiras, devotada à produção e à acção cultural. Um pré-requisito é ser de esquerda, mesmo que a chamada esquerda caviar. Sinal dos tempos. ■
[Transcrição integral de artigo publicado pelo jornal “O Diabo” de 18.02.21, da autoria de Aristóteles Drummond. Foi conservada a escrita brasileira do original, já que o autor é brasileiro. Imagem do artigo original; alojei localmente a imagem em cumprimento das regras de “netetiquette” (não usar largura de banda alheia). Destaques meus. Imagem principal: Lula da Silva, doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Coimbra (copyright Universidade de Coimbra).]