Sine qua non

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Existem duas teses: uma que em teoria postula a “correcção” (ou a “revisão“, segundo a terminologia de alguns anti-acordistas) e a outra que na prática visa a anulação pura e simples do AO90. Ou seja, há quem pretenda justificar o injustificável socorrendo-se de fábulas mirabolantes e há quem apenas pretenda a oposição determinada, primeiro, a recusa liminar, segundo, e a destruição, por fim, de qualquer veleidade neo-colonialista do Brasil e dos seus capangas portugueses.

A língua nacional do Brasil, o brasileiro, resultou primeiramente da colonização portuguesa e subsequentemente de um (relativamente) rápido processo de miscigenação linguística, compreendendo esta a  incorporação das línguas indígenas e em simultâneo as dos contingentes migratórios. Tal processo natural de progressiva autonomização, que perdurou por mais de quatro séculos, terminou na constituição de um “corpus” linguístico próprio e distinto sob todos os pontos de vista: lexical, semântico, prosódico (pronúncia, ortoépia) e ortográfico. Essa progressiva mas terminante (e determinante) autonomização terminou, pela simples ordem natural das coisas, em inexorável e irrevogável independência, ou seja, conduziu a uma nova língua em tudo diversa da original: hoje em dia, a língua que se fala e escreve no Brasil — veicular, por acréscimo, dada a enorme dimensão do país — já pouco ou nada tem a ver com o Português-padrão, a Língua-matriz que exportámos para todo o mundo ao longo dos séculos XV e XVI e que aterrou no Brasil no ano da graça de 1500.

Não é nada fácil, convenhamos, explicar de forma simples e essencial a lógica ou demonstrar as evidências de um fenómeno comum, mas de facto é muito, é demasiado e é por vezes irritante o que se diz e se lê sobre as patranhas acordistas — a “língua universal“, a “expansão e difusão do Português“, a “língua de trabalho da ONU“, o “valor económico da Língua“, a “facilidade na aprendizagem“. Tudo tretas absurdas, é claro, tudo a ver se algum patego cai na esparrela, ou, havendo vários animais de bossa, então que deles se faça uma cáfila (nem de propósito, o substantivo colectivo que designa os grupos de camelos), os quadrúpedes marchando a compasso; o objectivo é enganar o gado, em suma, e assim facilitar os negócios estrangeiros. O que significa, literal e passivamente, a promoção do expansionismo brasileiro, o consentimento cavalar do neo-colonialismo brasileiro e até o aplauso entusiasta da nacional-corrupção atávica e congenitamente brasileira (e portuguesa, ou pela ordem inversa).

Demonstrar a pessoas normais, essa sub-espécie em vias de extinção, algo tão comezinho e trivial como o golpe de Estado que Portugal e Brasil “adotaram”, temos de reconhecer essa triste realidade, não é pequeno exercício de humildade e reveste-se de roupagens com seu quê de oriental, uma espécie robe tipo “paciência de Chinês”. Isto à falta de mais gente com um pouco de tino, que ainda há-de haver disso, porque há, com certeza, imagino, mas que vai primando pelo mutismo ou pelas mais inconsequentes e inúteis sessões de malabarismos ortográficos (listas irrelevantes que apenas servem para vulgarizar as calinadas) ou longas e bocejantes exposições de um suposto brilhantismo pessoal (eventos famosíssimos na Buraca, por exemplo). Maníaca e sistematicamente, o que se tem escrito por aí sobre o AO90 é pura palha, cereal para espessar rações.

Seria por conseguinte necessário — ou condição sine qua non, pelo menos desde 2008 — que mais alguém dissesse e fundamentasse (muito melhor do que o arquivista do Apartado 53, decerto) que a independência linguística é um fenómeno comum… como sucedeu com todas as Línguas de raiz latina, o Francês, o Castelhano, o Italiano, o Romeno, o Catalão, o Galego, o Português.

Nós herdámos dos romanos a linhagem civilizacional, as estradas, as pontes, os aquedutos e as bases da Língua Portuguesa. O Brasil herdou de nós, por amostra, as igrejas de Ouro Preto, a imensidão das fronteiras e as bases da sua língua nacional.

Tentar estabelecer alguma espécie de paralelismo com as Línguas de outras potências colonizadoras é algo deslocado: usando, sem afinal alterar o embate violento com a realidade, o caso do Português-padrão no Brasil em comparação com o Inglês da Inglaterra e o da América, ou o Francês de França e o do Québec ou o Espanhol da Espanha e o do México… não tem ponta por onde se lhe pegue, lamento; rebaixar, diminuir, amesquinhar a bitola da comparação é, no mínimo, ridículo. As diferenças assinaladas em tais analogias, que afinal o não são, não têm absolutamente nada a ver com a questão: nos USA (ou na África do Sul, na Índia, no Quénia e em toda a Commonwealth) não existe a menor diferença estrutural e gramatical; o mesmo vale para o Francês e todas as nações, territórios e países que integram a Francophonie; e o mesmo sucede, evidentemente, com o Castelhano e os 23 países de língua oficial espanhola.

Sotaques diferentes e pontuais entradas lexicais são factores comuns nos países anglófonos, francófonos ou da hispanofonia, mas esses factores são irrelevantes em qualquer das três “irmandades” linguísticas. As respectivas matrizes são sólidas, são invariáveis e estão fixadas.

Ora, o do AO90 difere em tudo, não há analogias possíveis se compararmos o brasileiro com o Português: não há comparação. Não tem nada a ver. A língua brasileira seguiu o seu próprio caminho e este, ao contrário do que sucede com todos os caminhos, não tem retorno. Não há regresso. Pelo contrário, aliás: este caminho continua a afastar-se cada vez mais, infinitamente, do ponto de partida — a Língua Portuguesa.

Face a isto, que é uma realidade, verificável e verificada, comprovável e comprovada, somente restam duas alternativas: ou se aceita a realidade ou se nega a realidade. Não há terceira via. Nem outra hipótese além de lutar contra a realidade inventada que pretendem impor-nos e, com igual tenacidade, pela realidade como ela é.

Vamos falar a sério, então? Lutar, sim, mas sem malabarismos inconsequentes? Enfrentar os negacionistas e inventores de realidades alternativas?

É que torna-se a cada dia mais urgente que mais gente se junte à luta. Com a sua palavra, dita ou escrita mas pronta. Com a sua vontade, intacta e férrea mas transparente e honesta. Com a certeza, enfim, de que estamos do lado certo desta luta e que este é também o lado real da História.

Isso é muito importante. É vital. É condição sine qua non.

Até o Spotify passou a “falar” português europeu

Nuno Pacheco
www.publico.pt, 18.03.21

 

Nem de propósito. No mesmo dia em que era publicada a minha crónica anterior, dando conta da edição em Portugal de uma colecção do ‘Snoopy’ em português do Brasil, sem qualquer aviso a explicar tal opção, chegava a notícia de que a plataforma de distribuição de música Spotify ia ter 36 novos idiomas, incluindo “oficialmente o Português Europeu”. Note-se que entre os 25 antes disponíveis o Spotify incluía o “Português do Brasil (Brazilian Portuguese)” mas também duas variantes do espanhol (“Spanish” e “International Spanish”) e duas do francês (“French” e “Canadian French”), acrescentando agora ao chinês nova variante, o “Simplified Chinese”. E assim somam quatro línguas com duas variantes cada, incluindo o “Portuguese for Portugal”!

Nada disto é estranho. Estranho é que se continue a insistir numa uniformização ortográfica do português, ignorando que, mesmo que tal fosse possível (e não é), de nada adiantaria face ao resto, ou seja, às diferenças naturais que cada cultura imprimiu ao uso, oral e escrito, do idioma comum. É curioso, por exemplo, que na citada edição do ‘Snoopy’ (com as tiras traduzidas em português do Brasil), os textos introdutórios tenham um lote de palavras que, mesmo aplicando o malfadado Acordo Ortográfico de 1990, continuam diferentes cá e lá. Comecemos pelas que passaram a ser iguais na escrita: ‘diretor’, ‘ótimo’ ou ‘trajetória’. E agora as outras: ‘fato’, ‘contato’ (‘facto’ e ‘contacto ‘em Portugal), ‘tênis’, ‘bebê’, ‘polêmica’, ‘platônica’, ‘fenômeno’, ‘icônicos’ (aqui diferentes na acentuação), ‘dezesseis’ (‘dezasseis’, na grafia portuguesa) ou ‘características’, ‘aspecto’, ‘perspectiva’ e ‘acepção’, que eram iguais nos dois países mas que o AO90 obrigou Portugal a alterar para ‘caraterísticas’, ‘aspeto’, ‘perspetiva’ e ‘aceção’. Que belo serviço à unidade do idioma!

O cinema é outro exemplo de que, mesmo com reformas ortográficas, a distinção entre o uso do idioma em Portugal e no Brasil se mantém e manterá, saudavelmente, já que só assim ganham identidade em cada um dos países as dobragens ou legendagens de filmes estrangeiros. Já aqui se falou disto, no passado, com vários exemplos. Mas podemos fazer um outro exercício, usando dois vídeos de filmes com uma característica rara: dobragem (dublagem, no Brasil) em português brasileiro e legendas no português europeu pré-AO90.

Um deles é o DVD de ‘6 Dias, 7 Noites’, de Ivan Reitman, comédia com Harrison Ford e Anna Heche. Ainda no genérico, na cena do jantar entre Frank e Robin, ouve-se este diálogo entre ambos: Ela: ‘Será que dá pra dizer o que está tramando?’ Ele: ‘É somente parte da surpresa.’ Ela: ‘Não vai terminar tudo, vai?’ Ele: ‘Nós não vamos terminar. ‘Ela:’ Tá legal.’ Ele: ‘Sabe o que é que eu quero? O que eu quero mesmo é incrementar o romance’. E nas legendas lemos isto: Ela: ‘O que andas a tramar?’ Ele: ‘Faz tudo parte da surpresa.’ Ela: ‘Queres acabar comigo?’ Ele: ‘Nós não estamos a acabar’. ‘Pelo contrário, eu pretendo aumentar o romantismo das nossas vidas’.”

Já com a edição francesa em UHD-4K de ‘Dracula’, de Francis Ford Coppola, podemos fazer idêntico exercício. A dada altura, Renfield (Tom Waits) diz, na dobragem: ‘Eu fiz tudo o que me pediu, Mestre. Mestre, eu estou aqui! Eu idolatro o Senhor!’ E nas legendas lemos: ‘Fiz tudo o que pediste, Amo. Amo, estou aqui! Tenho-te venerado!’ Quando Jonathan (Keanu Reeves) e Mina (Winona Ryder) se encontram no jardim, trocam estas palavras: Ela’: Jonathan, eu amo você’. Ele: ‘Eu amo você, Mina’. E nas legendas: Ela: ‘Jonathan, amo-te’. Ele: ‘E eu a ti, Mina’.

O mesmo sentido, a mesma língua, mas dois mundos bem distintos nas expressões da fala. Aceitar isto é essencial para que nos entendamos nas nossas diferenças. É o que fazem, para dar dois bons exemplos, editoras como a Tinta da China ou a Companhia das Letras. A primeira edita os livros de Ruy Castro sem mexer no original brasileiro, mas escrevendo as badanas em português europeu pré-AO90; o mesmo fazem as edições portuguesas da brasileira Companhia das Letras, mantendo intacta a escrita de Chico Buarque, cuja obra tem editado em Portugal. E há ainda outro exemplo, digno de nota: no excelente ‘Livros Que Tomam Partido’ ‘(1968-1980)’, do investigador brasileiro Flamarion Maués, o editor português (Parsifal) não tocou na escrita do autor, em português do Brasil, mas manteve o português europeu pré-AO90 nos excertos (citados) de obras editadas em Portugal e nas “entrevistas e depoimentos prestados por fontes portuguesas.” Se todos agissem com tais escrúpulos, o “acordês” seria já escrita morta.

Nuno Pacheco

[Artigo de Nuno Pacheco, “Público” 18.03.21.Imagem de topo: Eduardo Casalini, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons. Destaques e “links” (a verde) meus.]

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