Dia: 3 de Abril, 2021

Sociedades secretas, negócios discretos

Não hostilizemos quem acredita piamente em que um dia, algures no futuro, o Sacavenense ganhará a Taça dos Campeões Europeus. E ainda, sobretudo, mantenhamos a compostura, admitamos que num outro dia um OVNI azul às riscas aterrará no aeroporto internacional de Portalegre e dele sairão, como turistas, uma data de Conguitos verdes paridos em Melmac.

Acreditar em tão profanos milagres é o mesmo que negar a existência de uma sociedade secreta (ou discreta), sem dúvida a mais perigosa de todas, perante cujo poderio é virtualmente impossível fazer seja o que for.

Esta terceira mas primordial seita, estranha simbiose das duas sociedades secretas oficiais (por assim dizer), é constituída por homens de negócios e por políticos (há diferença?), por regra membros de uma das outras duas confissões (ou de ambas, que também há disso), não têm aparentemente qualquer ligação entre si e não praticam rituais próprios de espécie alguma, ocupando-se exclusivamente da congeminação (entre os membros) de grandes negócios, desfalques faraónicos, tráfico de influências (e toda a sorte de outros tráficos), extorsão, lobbying, corrupção, especulação e manipulação de mercados. Etc. Absolutamente nada fica de fora ou está ao abrigo deste tipo de ganância, daquela patológica obsessão pela acumulação de riqueza.

A Maçonaria, cujos membros dizem de si mesmos ser “Pedreiros Livres” — que de pedreiros nada têm e de livres muito menos — e a Opus Dei (ou “Obra de Deus”, uma entidade abstracta que se rege pela lei da letra morta), constituem, pela junção das partes, um imenso grupo de pressão (política, de regime, autárquica, diplomática, empresarial) e constituem, cumulativamente, um conglomerado de interesses não apenas políticos como, ou principalmente, económicos. O aparente laicismo de uns e a religiosidade fingida de outros consistem basicamente (e comummente) na propagação de uma fé inabalável no dinheiro e na prossecução da sua crença no enriquecimento pelo enriquecimento. Para tal desiderato, no qual crêem cegamente, uns e outros socorrem-se de lacaios especializados para as tarefas mais sujas e plebeias, como lavar vestígios ou “abrir portas”, com tudo o que implicam os trabalhos de tais criados pagos à peça ou à ordem, em espécie ou numerário, por grosso ou por atacado.

É com incontornável solicitude que os sabujos, a mando de membros da seita de seitas. envergando a “libré” de “facilitadores” especializados, avançam amiúde com questões aparentemente menores. As trupes de auxiliares servem (na perfeição) os interesses da selecta alcateia de gananciosos patológicos e foi assim que, por exemplo, surgiu e medrou a chamada “questão ortográfica”, ou seja, o AO90.

Ignoremos, ao invés do habitual, as já muito badaladas teorias da conspiração que envolvem as duas sociedades secretas. No entanto, bem entendido, não apenas existem bastos sinais do envolvimento de qualquer delas (ou de ambas) em questões relacionadas com o idioma em particular e com o Ensino em geral, assim como parece evidente que ambas tiveram tudo a ver com a “adoção” da cacografia brasileira; os “irmãos” de ambas as famílias estiveram envolvidos e na dita questão continuam enterrados até ao pescoço; sabemos que assim terá sido e é, sim, mas também podemos estar certos de que jamais viremos a saber ao certo em que medida ocorreu tal envolvimento, quais dos “manos” (de toga ou de batina) estiveram envolvidos e o quê ou quanto, ao certo, isso implicou: não existe nas seitas, por definição e inerência, qualquer tipo de registo; não prestam contas de nada a ninguém, nem ao Fisco nem a quaisquer outras entidades do Estado (é óbvio, eles “são” o Estado); os membros gozam de total imunidade e outorgam a si mesmos o estatuto de total e absoluta impunidade.

À míngua de provas documentais de qualquer espécie, de muito pouco ou nada servirá especular sobre algum ascendente ou assacar-lhes a mais ínfima responsabilidade (claro, nunca foram eles, nunca fizeram nada, são só apreciadores de missinhas, mais nada). Não será, por conseguinte, com vãs (e ocas) polémicas sobre qual das seitas se superioriza moralmente à outra que será possível concluir, por exemplo, pobre analogia, que em Melmac não existe só o Alf. O conceito de moral (ou imoral) está a priori fora de cogitação, no caso vertente, pelo que a frivolidade da comparação é inútil.

Porém, sem teorias da conspiração ou sequer a mais subtil das conjecturas, ainda que, porque não há provas, não saibamos ao certo o que é a “fé” ou o que ali é feito, todos sabemos perfeitamente… o que é uma sociedade secreta, o que ali é feito, quem, quando, como e para quê. E sabemos isso de ciência exacta precisamente pelo mesmíssimo secretismo que define qualquer das irmandades: se são secretas, então têm algo a esconder.

São coisas que se explicam a si próprias e por si mesmas.

Desta premissa podemos nós ter a certeza. Uma certeza clara e limpa e luminosa — o oposto diametral da permanente obscuridade, a escuridão sepulcral da criminalidade ritual.

Frutas, legumes e sociedades secretas

Observador – observador.pt, 28.03.21

António Pedro Barreiro

Imagine-se que o Parlamento decidia aprovar uma nova regulação acerca da produção de legumes – não de frutas, mas apenas de legumes. Certamente, muito haveria a debater sobre uma proposta desta natureza. Seria pertinente? Que efeitos teria na produção agrícola? E que consequências produziria na dieta dos portugueses? Discussões fascinantes e necessárias. Mas, antes de todos esses debates, há uma questão prévia, que é a de perceber que coisa é essa que o legislador entende por legumes. O caso torna-se agudo quando chegamos, por exemplo, ao tomate, que muita gente acredita ser um legume, mas que a ciência sabe, para além de qualquer dúvida, tratar-se de uma fruta.

Eu posso ser o maior defensor da nova regulação sobre a produção de legumes. Mas não posso aceitar que, à boleia de uma lei sobre legumes, o legislador se sinta no direito de legislar sobre o tomate, porque o tomate não é um legume. Seria, aliás, especialmente perigoso que o legislador andasse a brincar com os equívocos e os preconceitos do senso comum, para convencer os portugueses de que o tomate é afinal um legume e deve, por isso, caber no objecto da nova legislação. A política é uma arte nobre de serviço público. Ou se faz com base na verdade – e a verdade, bem o sabemos, é a adequação das ideias à realidade das coisas – ou faz-se mal. E, quando se faz mal, faz mal ao povo.

Em Dezembro de 2019, o PAN propôs que os deputados pudessem, ao preencher o seu registo de interesses, declarar se pertencem a sociedades secretas – ou, como se tem dito, discretas. Dizia então o deputado André Silva que é “inconcebível que os titulares destes cargos continuem a não declarar a sua filiação em organizações marcadas por uma forte opacidade, por um grande secretismo e que apelam a fortes laços de hierarquia”. A proposta tem o seu cabimento, até porque existe o risco real de que algumas pessoas se sirvam das relações travadas no contexto da sociedade secreta para subir na vida à custa do tráfico de influências. Mas o problema, como sempre, está nos pormenores. É que, além da Maçonaria – que é, de facto, uma sociedade secreta, que se caracteriza pela opacidade, que se estrutura segundo relações hierárquicas muito fortes e que constitui, com efeito, um espaço onde o tráfico de influências é possível –, o PAN quis incluir no estatuto de sociedade secreta o Opus Dei, que não obedece a nenhuma dessas características.
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