Dia: 23 de Abril, 2021

‘E depois do adeus’


1. Não conheço Guilherme d’Oliveira Martins. Apenas o vi pessoalmente, umas três ou quatro vezes, entre 2010 e 2012, se bem me lembro, sempre em palestras nas quais Vasco Graça Moura foi o orador.

2. O próprio G.O.M. jamais proferiu, tanto nas ditas palestras como em quaisquer outros eventos, que me recorde, o mais ínfimo comentário — público ou particular, nos “media” tradicionais ou em qualquer outro suporte — sobre a Ortografia em concreto, a Língua Portuguesa em geral e o “acordo ortográfico” em particular.


O AO90 é, de facto, para o Brasil, o verdadeiro, o maior, o mais apetecível e lucrativo negócio da China: a troco de absolutamente coisa nenhuma recebe “de presente” todas as ex-colónias portuguesas. Sem lacinhos a rematar e a abrilhantar os presentinhos, mas com os cumprimentos da gerência, isto é, de Belém e São Bento. A dita gerência (ou Governo) da República portuguesa outorga assim, e portanto, de mão-beijada, ao Brasil, toda a primazia em quaisquer negócios de “cooperação” com as administrações indígenas dos territórios que entre os séculos XVI e XX Portugal colonizou em África e na Ásia.

Está em curso a transferência daquelas que foram as nossas posições de privilégio, já não enquanto potência colonial mas apenas em função do nosso papel histórico nos países que na actualidade resultaram do extinto Império português. Posições de privilégio essas que nos foram concedidas pelos actuais governantes dos referidos novos países, dado o nosso inegável e (aparentemente já não) perene legado histórico. Todas as  grotescas oferendas que a oligarquia ora dominante em Portugal decidiu entregar ao Brasil foram, rápida e nada subtilmente, atiradas para o colo político dessa outra ex-colónia portuguesa, aquela única que sobrou do domínio espanhol na América do Sul (nos termos de um Tratado, note-se).

Ao que parece, segundo a inamovível “lógica” dos actuais governantes lisboetas, existe um total “desprendimento” pelas coisas terráqueas, são uns mãos-largas, ou seja, há que entregar ao Itamaraty, com a cobertura dos “negócios estrangeiros” cá da “terrinha”, quaisquer negócios chorudos ou possibilidades de saque das riquezas naturais de 7 países e 2 territórios (Goa deve estar para breve), entregando aos brasileiros a incumbência “diplomática” de fazer o que lhes apetecer com o molho de chaves da CPLP e quintais adjacentes. Tudo isto, bem entendido, feito pela calada e automaticamente “justificado” pelo “gigantismo” do Brasil, dado o “fato” de eles serem 210 milhões em 240 milhões de “falantes” de uma língua que recentemente re-baptizaram como “pórrtugueiss universáu”, ou seja, a língua brasileira.

O referido gigantismo, conforme aliás a patologia inerente, toma a acromegalia do “país-continente” por legitimamente referendada, implicando a sua suposta “supremacia”, e aceita por democraticamente eleito o “direito natural” do “gigante brasileiro” a apossar-se, por exemplo e por arrastamento, das escolas (ex-)portuguesas de Angola, Moçambique, Guiné, Cabo-Verde, São Tomé, Timor-Leste e agora, por fim, Macau. E quem diz “língua universáu” e escolas, diz “ensino” e quem diz “ensino” diz liceus, diz universidades, diz diplomas, diz alunos com formação superior, diz altos quadros, diz empreendedores, diz decisores, diz políticos. Todos eles a falar brasileiro fluentemente e a escrever “ao abrigo” do AO90, isto é, segundo uma espécie de transcrição fonética do linguajar brasileiro. Versão “culta”, pois claro, seja lá isso o que for em tão cerrada selva de falares.

Adeus, Macau.

A magia da palavra…

Guilherme d’Oliveira Martins

– www.dn.pt

Fernão de Oliveira, autor da primeira Gramática da Linguagem Portuguesa (1536), alertou: “Não desconfiemos da nossa língua, porque os homens fazem a língua e não a língua os homens”; e João de Barros, quatro anos depois, afirmou que o português “não perde a força para declarar, mover, deleitar e exortar a parte a que se inclina, seja em qualquer género de escritura”. É a língua o nosso mais importante valor civilizacional. Deve, por isso, ser por todos protegida. E como fazê-lo? Falando-a e escrevendo-a bem. Compreendemos, por isso, Fernando Pessoa, num texto muito referido mas pouco compreendido: “Odeio com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon…”

Muito se tem dito sobre o tema. Contudo, do que falamos é de um ato de cidadania, mais do que de questão de gramáticos, como está no Livro do Desassossego. O fundamental é que saibamos comunicar, que nos façamos entender corretamente, tal como nos ensinaram os melhores cultores do nosso idioma. E tantas vezes esquecemos as nossas próprias condições históricas, bem diferentes do caso da língua inglesa, que não necessitou de regulamento ortográfico, porque, como país da Reforma, o rei Jaime I ordenou que fosse feita a tradução da Bíblia em língua vulgar, obra magna que ficaria concluída em 1611. Hoje, continua a ser essa a matriz do falar e do escrever em inglês, como uma das mais belas obras literárias do idioma, criada para ser lida em voz alta nos templos e compreendida em silêncio por cada um dos seus leitores.

A história portuguesa nesse domínio é, como sabemos, assaz diferente. Desde 1911 que o tema se discute, numa longa sucessão de encontros e desencontros.

A República propôs-se simplificar, com substituição, por exemplo, dos dígrafos de origem grega (th, ph) por grafemas simples (t, f) ou com a eliminação do y.

E Pascoaes não se resignou: “Na palavra lagryma, (…) a forma do y é lacrymal; estabelece (…) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio… Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal.” Em 1931, foi assinado um primeiro acordo luso-brasileiro, que não foi aplicado. Em 1945, houve novo tratado, mas o Brasil continuou a aplicar o seu vocabulário de 1943. Em 1973, o governo português aboliu os acentos grave e circunflexo em certos casos; e em 1990 houve o Acordo Ortográfico…

Independentemente de controvérsias, temos de tomar consciência de que se trata de um património cultural partilhado, língua de várias culturas e cultura de várias línguas, que terá mais de 500 milhões de falantes no final do século. Temos de cuidar bem desse valor, para que o português seja bem falado e escrito (com os verbos intervir e haver bem conjugados, com o plural de acordo sem ó aberto), sem o massacre dos pronomes; sem erros escusados de uma novilíngua orwelliana – como resiliência em vez de resistência; implementação em vez de execução ou até implemento; evidência em vez de prova; empoderamento em vez de capacitação. Ler ou ouvir grandes escritores é o melhor caminho – disse-o Filinto Elísio: “Aprendei, estudai; / e os bons autores sabereis ter em crédito e valia. / Eles a língua em seu primor criaram / eles no-la poliram.”

Guilherme d’Oliveira Martins – Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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Guilherme d’Oliveira Martins, ex-ministro da Educação: “Negociar a Declaração Conjunta obrigou a coragem”

– Hoje Macau –  hojemacau.com.mo

 

Guilherme d’Oliveira Martins dá amanhã, às 18h30, uma palestra online sobre a relação entre arte e educação na Fundação Rui Cunha. Em entrevista, o administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian e antigo ministro da Educação, que acompanhou a criação da Escola Portuguesa de Macau, revela-se orgulhoso do trabalho feito e lembra as negociações com a China para a Declaração Conjunta como o principal momento da presidência de Mário Soares

Arte e educação. São complementares e fundamentais?

A arte é fundamental, uma vez que se trata da primeira etapa da aprendizagem de qualquer ser humano. Os estudos de psicologia educativa demonstram que o primeiro passo que damos tem a ver com a aprendizagem dos sentidos e das artes. Hoje sabemos que ainda dentro da barriga da mãe uma criança já responde a estímulos musicais, e por isso quando temos educação de infância deparamo-nos imediatamente com o primeiro passo em relação às artes, música e pintura. Quando um dia perguntaram a Sophia de Mello Breyner o que era indispensável numa escola, ela disse: “Poesia, música e ginástica”. O jornalista ficou muito surpreendido, e disse: “Mas, senhora dona Sophia, e a matemática?”. Sophia respondeu: “Acha que é possível distinguir uma redondilha de um alexandrino, ouvir uma pauta de música, sem relacionar a matemática?”. O jornalista ficou esclarecido. Sophia estava a falar da aprendizagem das suas referências mais antigas, a escola grega, que tem todos estes elementos. As artes estão sempre no princípio. E daí a importância que o ensino artístico tem quando falamos daquilo que é uma experiência indispensável, a do diálogo, inovação, da criação e da capacidade de nos conhecermos melhor.

Fala destas questões para um território onde existe a Escola Portuguesa de Macau (EPM), um projecto educativo diferente…

Que eu conheço muito bem. Tivemos a oportunidade de desenvolver um projecto que superou as expectativas iniciais. Sinto um especial orgulho em virtude da qualidade do projecto educativo e dos resultados alcançados. Houve, no início, muitas dúvidas naturais, estávamos próximos do handover e não sabíamos sequer o que iria ser o futuro desenvolvimento da EPM. Daí ter superado as expectativas como um projecto pedagógico de grande qualidade e que vai ao encontro daquilo que são as exigências da contemporaneidade.
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