«No grupo havia, porém, uma criança que não gostava de finais felizes. Retomou a narrativa e acrescentou que o Lobo tinha mastigado tão bem, mas tão bem a avó que esta, ao ser retirada “cá para fora”, estava (des)feita em bocadinhos. Mais “gore” era impossível! E enquanto eu buscava uma saída para aquele desfecho sangrento, Melanie antecipou-se. Era verdade que o Lobo Mau tinha mastigado a avozinha com os seus grandes dentes, mas o pai do Capuchinho Vermelho trazia no bolso uma fita-cola muito forte com a qual colou os bocadinhos da avó muito bem colados, tão bem colados que no fim nem se notava nada.»
Como sabe qualquer doutorado em tautologia, e há bastantes por aí, “truísmo” é algo que pela sua própria natureza se impõe naturalmente, não carecendo de explicações ou considerandos. É o caso daquilo que os seus inventores designam como “AO90” ou, ainda mais estupidamente, como “acordo ortográfico”. Sabendo nós que essa aparentemente inócua designação oculta uma realidade nojenta, uma mentira abjecta, torna-se-nos penoso — ou insuportável — despender tempo e feitio com o asqueroso desconchavo; por vezes, noblesse oblige (e para mal dos pecados), chega a ser necessário fingir que se dá algum crédito aos acordistas ou que se confere uma lasca de credibilidade às baboseiras que militantemente papagueiam. Pura ilusão, quando muito, é claro, se bem que por vezes a atávica imbecilidade dos brasileirófilos até dê jeito, é uma forma de os zurzir onde mais lhes dói, isto é, nos bolsos.
O AO90, repitamos e resumamos de novo o esquema, consiste no extermínio do Português-padrão substituindo-o pela língua brasileira e assim, usando o “acordo” como pretexto e cortina de fumo, promover os interesses geoestratégicos brasileiros nas vertentes económica e política; dito de forma mais incisiva, o AO90 é uma invenção que teoricamente pretende validar e conferir alguma credibilidade política à CPLP; esta sinistra organização, criada por brasileiros segundo os seus interesses exclusivos, comporta a dupla finalidade de abrir uma espécie de “porta dos fundos” na Europa, usando o estatuto de estado-membro de Portugal na União Europeia, e de, em última análise, saquear as imensas riquezas de Angola e as dos restantes territórios que em determinado momento histórico foram colónias portuguesas. Tudo isto, é claro, entregue de mão-beijada ao “país-continente”, sem uma única contrapartida (que dispensamos, porque a Língua tem imenso valor mas não tem preço) e tendo, ainda por cima, todas as contas e despesas inerentes pagas à cabeça pelo extraordinariamente solícito Estado português e seus sabujos.
Nós sabemos que este é o statu quo do cambalacho, para qualquer adulto minimamente letrado a inacreditável golpada é de uma simplicidade assustadora; mesmo alguém que não disponha de todas as ferramentas mentais poderá intuir — ao menos — que “algo” se passa, que o “acordo” tresanda a roubalheira.
É muito fácil entender porque é tudo afinal muitíssimo mais evidente do que aquilo que prefeririam os envolvidos. Até uma criança entende tudo isto.
Ora bem, nem de propósito, talvez neste artigo de Ana Cristina Leonardo — mesmo não tendo sido essa a sua intenção, calculo — esteja uma possibilidade de explicar a fraude “ortográfica” aos mais pequenos, sem os traumatizar (porque o tema é de facto violento) com os pormenores mais escabrosos,
Através de simples alegorias, utilizando analogias básicas e metáforas elementares, o que é preciso é que se diga às crianças a verdade, toda a verdade e apenas a verdade sobre o tráfico da nossa Língua; que a CPLP serve exclusivamente os interesses do Brasil e de um bando de salteadores portugueses, uma espécie de “Irmãos Metralha” do lado português; que o AO90 não passa de uma capa muito parecida com a do Mancha Negra para entrar disfarçadamente na Europa e como disfarce de gatuno para assaltar os cofres de Angola e as riquezas naturais das nossas ex-colónias em África; que o golpe (AO90) foi obtido através de negócios secretos entre políticos, às escondidas, sem provas e quase sem deixar rasto.
É possível ainda, dentro da mesma lógica pedagógica, apontar como modelo de resistência a extraordinária personalidade da rapariguinha da história e, com a tenacidade da sua coragem e o exemplo da sua tenacidade, demonstrar que não somos poltrões, que as crianças são grandes heróis em tamanho pequeno, ninguém desiste nem desistirá jamais porque a nossa luta é justa e ninguém irá lutar em vez de nós.
Bem pode o Lobo Mau (o AO90) tentar matar e comer a nossa Avozinha (a Língua Portuguesa), desfazê-la em bocadinhos. A rapariguinha, apesar de criança, é mil vez mais persistente do que todos os animais ferozes e do que milhares de adultos.
Tão corajosa, tão resistente, tão determinada e coerente que vai já acumulando um arsenal com todos os rolos de fita-cola que há no mundo.
No fim, a Avozinha ressurgirá de novo inteira, íntegra, digna e solene. Nem se vai notar nada.
Portugal, “we have a problem”, (pelo menos)
«Diz a lei de Murphy que, se uma coisa tem hipóteses de correr mal, correrá mal de certeza e da pior maneira. Apesar de ser uma lei que faz as delícias dos pessimistas encartados, a sua formulação condicional — “SE…” — prova que Murphy era, na realidade, um optimista.
Um enunciado realmente negro da referida lei seria: dado que nada do que é humano exclui a hipótese de poder correr mal, então, tudo correrá pessimamente. Resumindo: aquele “SE” salva-nos do desastre total.
A razão por que se tem um olhar pessimista ou optimista sobre a realidade continua um mistério. Há quem lhe encontre explicação nas experiências de vida, mas basta que eu invoque um pequeno episódio (real) passado com crianças para que essa interpretação se prove coxa.
Numa colónia de férias à beira de um lago (o lago não conta para o caso, mas é um facto que havia um lago), ao final de tarde costumava sentar o grupo de crianças que me estava atribuído. As crianças tinham entre cinco e seis anos e o propósito da reunião consistia em que uma delas começasse a contar uma história a que depois outra daria continuidade e assim sucessivamente, como diria João César Monteiro.
Um dia, a cena desembocou numa versão livre do “Capuchinho Vermelho”. Uma das crianças (chamemos-lhe Melanie que era mesmo o seu nome) deu-a por terminada após, devorada a avó pelo Lobo Mau, ter aparecido o pai do Capuchinho Vermelho que conseguia tirar a coitada da barriga do “Canis lupus”. No grupo havia, porém, uma criança que não gostava de finais felizes. Retomou a narrativa e acrescentou que o Lobo tinha mastigado tão bem, mas tão bem a avó que esta, ao ser retirada “cá para fora”, estava (des)feita em bocadinhos. Mais “gore” era impossível! E enquanto eu buscava uma saída para aquele desfecho sangrento, Melanie antecipou-se. Era verdade que o Lobo Mau tinha mastigado a avozinha com os seus grandes dentes, mas o pai do Capuchinho Vermelho trazia no bolso uma fita-cola muito forte com a qual colou os bocadinhos da avó muito bem colados, tão bem colados que no fim nem se notava nada. E foi quando eu, evidentemente, me apressei a dar por terminada a hora do conto.
Às vezes penso no que será feito daquelas duas (então) crianças, esperançosa de que, pelo menos Melanie (a única de quem, curiosamente, fixei o nome), tenha continuado vida fora a guardar no bolso uma fita-cola das muito fortes.
Havendo, portanto, situações em que um olhar pessimista ou optimista permanece inexplicável (a criança da versão “gore” não vinha de uma família disfuncional ou sequer problemática…), outras há em que só um cego não vê que a coisa vai acabar em despautério. E sendo verdade que muitas dos provas de efectividade da lei de Murphy assentam numa falácia — por exemplo, aquela que diz que se andarmos à procura dos óculos, só havemos de encontrá-los no último sítio em que os procurarmos (claro que quando os encontramos, damos por finalizada a busca…) — , tratando-se do famigerado Acordo Ortográfico, Murphy só parece ter pecado por defeito.
Habituados que estamos já à enorme variedade de “fatos” do Diário da República, eis que no outro dia vimos, com estes que a terra há-de comer, o primeiro-ministro na televisão a apontar para um quadro explicativo das medidas de desconfinamento onde aparecia a palavra “contato”.
Aqui chegados, e plagiando Manuel Bandeira, há que reconhecê-lo: “contato” “é outra civilização”!
Dirão — como sempre fazem os defensores do AO, apesar de andarem muito calados — que a culpa de contato por contacto está na ignorância e não no Acordo em si. Sem entrar em celeumas sobre o “Ser-em-Si”, o “Ser-para-Si”, o “Ser-para-Outro” e etc. — razão tinha Jorge Luis Borges quando escreveu que “a metafísica é um ramo da literatura fantástica” — a pergunta absolutamente pragmática que se impõe é: quem, em Portugal e antes do AO, escrevia contacto sem C? E a mesma pergunta vale para os incontáveis “fatos” do Diário da República.
São dois exemplos singelos, mas que vêm dar razão a Murphy: se algo tem hipóteses de correr mal, correrá mal de certeza e da pior maneira.
Não é que não tenham sido avisados: decapitar a eito as consoantes mudas de uma língua só podia dar asneira. Mesmo deixando de lado a degola (escapou o agá, vá lá saber-se porquê), o que se poderia esperar de uma reforma ortográfica que chuta para canto — ou seja, para a “pronúncia culta” —, num país onde, em 1974, 25% da população era analfabeta de pai e mãe e que, apesar de todo o esforço, continuava o ano passado na cauda da Europa no que toca ao total da população com ensino secundário / superior concluído (52% para 78% da média da União Europeia)? A peculiaridade da reforma ortográfica portuguesa não se esgota, contudo, na desfiguração grotesca a que a língua vem sendo sujeita. Dá-se também o caso de, embora teimando na sua bondade, conseguirem alguns revoltar-se contra a agonia do português, sem dedicarem uma palavra ao AO.No “Expresso”, um dos primeiros jornais nacionais a alinhar com os delírios uniformizadores da língua, pôde ler-se recentemente (edição de 1-4-2021) um (bom) texto do jornalista Rui Cardoso (“O Português a Saque: Entre o inglês contrabandeado e o brasileiro das novelas, a língua portuguesa agoniza. Nunca se escreveu tão mal e o exemplo vem de cima”), sem que uma única vez se questione a influência do Acordo na desgraça em curso (insiste-se, aliás, em respeitá-lo, escrevendo-se, por exemplo, “dispositivos óticos, dos faróis às lentes…” para dispositivos ópticos, dos faróis às lentes… — os primeiros referem-se à audição, só os segundos à visão, uma diferença que, apesar de todos os sonhos húmidos de unidade, os brasileiros insistem, e bem, em manter).
Temos, portanto, um daqueles exemplos em que, apesar de ser consensual o facto de termos um problema, os poderes responsáveis em Portugal preferem continuar a assobiar para o lado e insistir na via do desastre, no que toca ao AO nem admitindo remendos (as sucessivas recusas do Parlamento em fazer marcha atrás no disparate roçam o absurdo).
Esta forma singular de lidar com problemas, desresponsabilizando-se deles e varrendo-os para debaixo do tapete, remetendo a sua solução para as calendas gregas ou, na expressão menos erudita, para o dia de São Nunca à tarde, estende-se a outras áreas da vida pública, como não poderia deixar de ser.
Também recentemente, na edição de 3 de Abril do “Diário de Notícias”, o historiador António Araújo pôs frontalmente o dedo na ferida no que respeita ao critério (confuso, para sermos meigos) de prioridades do Plano de Vacinação contra a covid-19. Num artigo não decerto por acaso intitulado “Civilização”, escreveu: “A maior e mais triste lição que podemos retirar da actual pandemia, desde o seu início, é a forma abjecta como os seres humanos são capazes de desprezar os seus semelhantes”.
Sem recorrer ao “Diário da Guerra aos Porcos” do argentino Bioy Casares, preferindo, pois, a dura realidade às metáforas literárias, António Araújo chamou os bois pelos nomes: “O ano passado, não foram tomadas ou tardaram as medidas de protecção e testagem nos lares da terceira idade, quando já era por demais evidente — até pelo que íamos sabendo do estrangeiro — que aí residia o fulcro da maior tragédia. Surgida a esperança da vacinação, só a custo se incluíram os mais idosos nos grupos prioritários, enquanto a maralha canalha se acotovelava para passar à frente na lista dos bafejados pela Pfizer”.
E avança com números: sendo acima dos 60 anos que se situam 98% das mortes, do grupo dos + 80 só 33% haviam recebido as duas doses da vacina e cerca de 24% nenhuma; na faixa dos 65-79, o número de vacinados com as duas doses esgotava-se nos 3%. Enquanto isto, a pressão dos mais diversos grupos faz o seu caminho, alargando-se o número de prioritários enquanto as vacinas escasseiam.
No entretanto, tínhamos lido o vice-almirante Gouveia e Melo, responsável máximo pela execução do Plano, insurgir-se contra a vacinação de “grupos e grupinhos”.
Cumpre, pois, desabafar, parafraseando Rantanplan, o célebre cão de Lucky Luke, e lembrando, por causa das tosses, a diferença entre autoridade e autoritarismo: afinal, para quando alguém que saiba mandar?»
[Imagens: 1. Rantanplan; 2. Mancha Negra (Phantom Blot) By Source (WP:NFCC#4), Fair use, https://en.wikipedia.org/w/index.php?curid=66448081; Capuchinho Vermelho; irmãos Metralha]
[Texto, da autoria de , recebido por email. Transcrição integral, com inclusão de duas imagens. Publicado no jornal