1. Não conheço Guilherme d’Oliveira Martins. Apenas o vi pessoalmente, umas três ou quatro vezes, entre 2010 e 2012, se bem me lembro, sempre em palestras nas quais Vasco Graça Moura foi o orador.
2. O próprio G.O.M. jamais proferiu, tanto nas ditas palestras como em quaisquer outros eventos, que me recorde, o mais ínfimo comentário — público ou particular, nos “media” tradicionais ou em qualquer outro suporte — sobre a Ortografia em concreto, a Língua Portuguesa em geral e o “acordo ortográfico” em particular.
O AO90 é, de facto, para o Brasil, o verdadeiro, o maior, o mais apetecível e lucrativo negócio da China: a troco de absolutamente coisa nenhuma recebe “de presente” todas as ex-colónias portuguesas. Sem lacinhos a rematar e a abrilhantar os presentinhos, mas com os cumprimentos da gerência, isto é, de Belém e São Bento. A dita gerência (ou Governo) da República portuguesa outorga assim, e portanto, de mão-beijada, ao Brasil, toda a primazia em quaisquer negócios de “cooperação” com as administrações indígenas dos territórios que entre os séculos XVI e XX Portugal colonizou em África e na Ásia.
Está em curso a transferência daquelas que foram as nossas posições de privilégio, já não enquanto potência colonial mas apenas em função do nosso papel histórico nos países que na actualidade resultaram do extinto Império português. Posições de privilégio essas que nos foram concedidas pelos actuais governantes dos referidos novos países, dado o nosso inegável e (aparentemente já não) perene legado histórico. Todas as grotescas oferendas que a oligarquia ora dominante em Portugal decidiu entregar ao Brasil foram, rápida e nada subtilmente, atiradas para o colo político dessa outra ex-colónia portuguesa, aquela única que sobrou do domínio espanhol na América do Sul (nos termos de um Tratado, note-se).
Ao que parece, segundo a inamovível “lógica” dos actuais governantes lisboetas, existe um total “desprendimento” pelas coisas terráqueas, são uns mãos-largas, ou seja, há que entregar ao Itamaraty, com a cobertura dos “negócios estrangeiros” cá da “terrinha”, quaisquer negócios chorudos ou possibilidades de saque das riquezas naturais de 7 países e 2 territórios (Goa deve estar para breve), entregando aos brasileiros a incumbência “diplomática” de fazer o que lhes apetecer com o molho de chaves da CPLP e quintais adjacentes. Tudo isto, bem entendido, feito pela calada e automaticamente “justificado” pelo “gigantismo” do Brasil, dado o “fato” de eles serem 210 milhões em 240 milhões de “falantes” de uma língua que recentemente re-baptizaram como “pórrtugueiss universáu”, ou seja, a língua brasileira.
O referido gigantismo, conforme aliás a patologia inerente, toma a acromegalia do “país-continente” por legitimamente referendada, implicando a sua suposta “supremacia”, e aceita por democraticamente eleito o “direito natural” do “gigante brasileiro” a apossar-se, por exemplo e por arrastamento, das escolas (ex-)portuguesas de Angola, Moçambique, Guiné, Cabo-Verde, São Tomé, Timor-Leste e agora, por fim, Macau. E quem diz “língua universáu” e escolas, diz “ensino” e quem diz “ensino” diz liceus, diz universidades, diz diplomas, diz alunos com formação superior, diz altos quadros, diz empreendedores, diz decisores, diz políticos. Todos eles a falar brasileiro fluentemente e a escrever “ao abrigo” do AO90, isto é, segundo uma espécie de transcrição fonética do linguajar brasileiro. Versão “culta”, pois claro, seja lá isso o que for em tão cerrada selva de falares.
Adeus, Macau.
A magia da palavra…
Fernão de Oliveira, autor da primeira Gramática da Linguagem Portuguesa (1536), alertou: “Não desconfiemos da nossa língua, porque os homens fazem a língua e não a língua os homens”; e João de Barros, quatro anos depois, afirmou que o português “não perde a força para declarar, mover, deleitar e exortar a parte a que se inclina, seja em qualquer género de escritura”. É a língua o nosso mais importante valor civilizacional. Deve, por isso, ser por todos protegida. E como fazê-lo? Falando-a e escrevendo-a bem. Compreendemos, por isso, Fernando Pessoa, num texto muito referido mas pouco compreendido: “Odeio com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon…”
Muito se tem dito sobre o tema. Contudo, do que falamos é de um ato de cidadania, mais do que de questão de gramáticos, como está no Livro do Desassossego. O fundamental é que saibamos comunicar, que nos façamos entender corretamente, tal como nos ensinaram os melhores cultores do nosso idioma. E tantas vezes esquecemos as nossas próprias condições históricas, bem diferentes do caso da língua inglesa, que não necessitou de regulamento ortográfico, porque, como país da Reforma, o rei Jaime I ordenou que fosse feita a tradução da Bíblia em língua vulgar, obra magna que ficaria concluída em 1611. Hoje, continua a ser essa a matriz do falar e do escrever em inglês, como uma das mais belas obras literárias do idioma, criada para ser lida em voz alta nos templos e compreendida em silêncio por cada um dos seus leitores.
A história portuguesa nesse domínio é, como sabemos, assaz diferente. Desde 1911 que o tema se discute, numa longa sucessão de encontros e desencontros.
A República propôs-se simplificar, com substituição, por exemplo, dos dígrafos de origem grega (th, ph) por grafemas simples (t, f) ou com a eliminação do y.
E Pascoaes não se resignou: “Na palavra lagryma, (…) a forma do y é lacrymal; estabelece (…) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio… Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal.” Em 1931, foi assinado um primeiro acordo luso-brasileiro, que não foi aplicado. Em 1945, houve novo tratado, mas o Brasil continuou a aplicar o seu vocabulário de 1943. Em 1973, o governo português aboliu os acentos grave e circunflexo em certos casos; e em 1990 houve o Acordo Ortográfico…
Independentemente de controvérsias, temos de tomar consciência de que se trata de um património cultural partilhado, língua de várias culturas e cultura de várias línguas, que terá mais de 500 milhões de falantes no final do século. Temos de cuidar bem desse valor, para que o português seja bem falado e escrito (com os verbos intervir e haver bem conjugados, com o plural de acordo sem ó aberto), sem o massacre dos pronomes; sem erros escusados de uma novilíngua orwelliana – como resiliência em vez de resistência; implementação em vez de execução ou até implemento; evidência em vez de prova; empoderamento em vez de capacitação. Ler ou ouvir grandes escritores é o melhor caminho – disse-o Filinto Elísio: “Aprendei, estudai; / e os bons autores sabereis ter em crédito e valia. / Eles a língua em seu primor criaram / eles no-la poliram.”
Guilherme d’Oliveira Martins – Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian
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Guilherme d’Oliveira Martins, ex-ministro da Educação: “Negociar a Declaração Conjunta obrigou a coragem”
– Hoje Macau – hojemacau.com.mo
Guilherme d’Oliveira Martins dá amanhã, às 18h30, uma palestra online sobre a relação entre arte e educação na Fundação Rui Cunha. Em entrevista, o administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian e antigo ministro da Educação, que acompanhou a criação da Escola Portuguesa de Macau, revela-se orgulhoso do trabalho feito e lembra as negociações com a China para a Declaração Conjunta como o principal momento da presidência de Mário Soares
Arte e educação. São complementares e fundamentais?
A arte é fundamental, uma vez que se trata da primeira etapa da aprendizagem de qualquer ser humano. Os estudos de psicologia educativa demonstram que o primeiro passo que damos tem a ver com a aprendizagem dos sentidos e das artes. Hoje sabemos que ainda dentro da barriga da mãe uma criança já responde a estímulos musicais, e por isso quando temos educação de infância deparamo-nos imediatamente com o primeiro passo em relação às artes, música e pintura. Quando um dia perguntaram a Sophia de Mello Breyner o que era indispensável numa escola, ela disse: “Poesia, música e ginástica”. O jornalista ficou muito surpreendido, e disse: “Mas, senhora dona Sophia, e a matemática?”. Sophia respondeu: “Acha que é possível distinguir uma redondilha de um alexandrino, ouvir uma pauta de música, sem relacionar a matemática?”. O jornalista ficou esclarecido. Sophia estava a falar da aprendizagem das suas referências mais antigas, a escola grega, que tem todos estes elementos. As artes estão sempre no princípio. E daí a importância que o ensino artístico tem quando falamos daquilo que é uma experiência indispensável, a do diálogo, inovação, da criação e da capacidade de nos conhecermos melhor.
Fala destas questões para um território onde existe a Escola Portuguesa de Macau (EPM), um projecto educativo diferente…
Que eu conheço muito bem. Tivemos a oportunidade de desenvolver um projecto que superou as expectativas iniciais. Sinto um especial orgulho em virtude da qualidade do projecto educativo e dos resultados alcançados. Houve, no início, muitas dúvidas naturais, estávamos próximos do handover e não sabíamos sequer o que iria ser o futuro desenvolvimento da EPM. Daí ter superado as expectativas como um projecto pedagógico de grande qualidade e que vai ao encontro daquilo que são as exigências da contemporaneidade.
Que desafios aponta à EPM para o futuro? Hoje a maior parte dos alunos tem o chinês como língua nativa.
Essa é hoje uma realidade muito evidente, a do multilinguismo. O futuro é o diálogo entre várias línguas, é indispensável garantir o paradigma da educação e da formação ao longo da vida. Há a necessidade de aprendermos várias línguas e de em simultâneo garantir que, ao termos conhecimento, podemos dialogar melhor. O centro académico do mundo onde existe o maior número de aprendentes de língua portuguesa está em Pequim. Sou jurista de formação e quando saí da universidade fui para a contratação internacional, para o Direito internacional. Tive de trabalhar na língua inglesa e um dos problemas que existia era a falta de compreensão dos subscritores dos contratos em relação ao conteúdo dos mesmos. Hoje não temos qualquer dúvida de que quem assina um contrato tem de saber as suas consequências na língua que domina. O português é hoje a língua mais falada no hemisfério sul…
Graças ao Brasil.
Sim, ao português do Brasil. E há uma compreensão exacta que leva a que a nossa relação com a cultura chinesa, com a aprendizagem das instituições da República Popular da China (RPC), parta desta ideia, da necessidade de aprender o português porque é uma língua importante. Estamos a chegar à sua primeira pergunta, sobre a importância das artes. Esta capacidade que temos de aprender várias línguas, paralela à necessidade de usarmos a linguagem universal da arte, para podermos dialogar melhor.
Que análise faz à intervenção do Estado português na EPM nos últimos anos? Houve algum distanciamento?
É indispensável continuar a haver uma atenção especial e um acompanhamento relativamente à experiência da EPM. É algo que, quer junto do ministro da Educação e do Governo, tenho exprimido com especial ênfase, até pela ligação antiga que tenho à escola, em relação a alguém de quem sou muito próximo, que é o professor Roberto Carneiro [ligado à Fundação da EPM]. Essa atenção terá sempre resultados positivos no plano político e na relação com o centro fundamental da economia mundial, que é a RPC e a língua chinesa.
Quando era ministro da Educação e lidou com o dossier da EPM, quais eram os maiores receios relativamente ao período pós-1999?
O receio fundamental não se verificou, que era uma redução muito drástica do número de alunos e da presença da língua portuguesa em Macau. Considero que o trabalho realizado e a prática assumida em Macau tem permitido que a língua portuguesa continue a ter um lugar importante.
As autoridades chinesas também contribuíram para esse sucesso ao apostar na língua portuguesa, nomeadamente Pequim, além do apoio financeiro das autoridades de Macau à escola.
Não tenho dúvidas. Sei bem, até porque a minha experiência, na sociedade civil, em termos do diálogo cultural, tem sido positiva. O papel da RPC no aspecto da língua é positivo.
Acompanhou o diálogo com a China relativamente à Declaração Conjunta quando era assessor de Mário Soares na Casa Civil da Presidência da República. Considera que a Declaração Conjunta e a Lei Básica têm sido cumpridas por Pequim?
Pelo que tenho acompanhado, sim. Há uma relação que globalmente é positiva.
Portugal deveria dar mais atenção a Macau no plano político, e não apenas económico?
Nesse domínio, não tenho uma leitura pessimista. A minha preocupação é defender o aprofundamento do carácter positivo dessa relação. Tenho uma perspectiva positiva [da evolução da situação após 1999], pois penso que devemos fazer um esforço real para que as coisas corram o melhor possível.
Em relação à relação bilateral entre Portugal e China, que análise traça sobre o seu futuro?
A posição portuguesa desenvolve-se no contexto europeu e compreendendo as condicionantes geoestratégicas actuais. Vivemos um sistema de polaridades difusas e vão haver vários focos de desenvolvimento. A verdade é que não podemos pensar no futuro da geoestratégia mundial sem o papel crescente da China e a sua importância. É indispensável que essas polaridades que encontramos devam pender para se equilibrar em nome da paz. Uma cultura de paz para mim é particularmente importante e isso só existe se houver equilíbrio de várias influências. Naturalmente que esse equilíbrio obriga a que a Europa tenha maior protagonismo na cena internacional ao lado dos grandes polos que se vão desenvolvendo. O que mais se vai desenvolver nos próximos anos será o polo asiático e a RPC. Devemos fazer com que haja mais cooperação na cultura, na ciência, economia, de forma a que possamos ter paz. Daí a importância que tem a ONU e sobretudo uma perspectiva positiva relativamente à acção dos vários países. Não posso deixar de referir a nova rota da seda e a importância que um país com uma grande costa marítima, como é Portugal, com relacionamento com todos os continentes, tem numa estratégia como essa.
O dossier Macau foi muito importante no período da Presidência de Mário Soares. Houve momentos de tensão também.
Naturalmente que sim. Recordo-me que havia, da parte de Mário Soares, uma consciência muito clara relativamente à importância da cooperação com a Ásia e com o desenvolvimento das potências asiáticas nos vários domínios. Falo da China, mas também da Índia. De facto, se hoje não temos qualquer dúvida sobre a importância geoestratégica da Ásia, nessa altura nem todos puderam ver tão longe como o então Presidente da República, que compreendeu bem que o futuro estaria justamente num país tão antigo e rico culturalmente e espiritualmente como a China.
A China era também um país em desenvolvimento, isso também terá contribuído para uma diferente visão por parte das autoridades portuguesas.
Mas a verdade é que o lugar que hoje a China tem no mundo confirma a ideia que então existia, de que o desenvolvimento iria ter um curso de grande importância. Daí chamar a atenção para o facto de se ter confirmado essa ideia que só os mais lúcidos tinham.
Se tivesse de apontar o momento de maior tensão durante a Presidência de Mário Soares, relativamente a Macau, qual seria?
O momento em que se tornou indispensável assinar a Declaração Conjunta e subscrever um regime que se revelou positivo, mas onde havia muitas desconfianças nos anos 80.
Em relação às autoridades chinesas ou ao futuro?
Ao futuro. Nem todos seguiam a ideia de Mário Soares e outros governantes. Aí devo referir que além de Soares também o general Ramalho Eanes teve um papel extremamente positivo porque conhecia Macau. Eles tiveram um papel importante ao poder antecipar o futuro. Havia desconfianças que os rodeavam, a opinião pública está sempre cá e tem uma visão menos aberta e consciente. Quer Eanes e Soares compreenderam que o futuro passaria por Macau. Sinto-me sempre em casa em Macau e ao se assinalar os 100 anos da publicação de Clepsydra, de Camilo Pessanha, o facto de ele ser um autor da língua portuguesa, é um forte elo que nos leva a compreender a importância do diálogo cultural com Macau. Os 100 anos da Clepsydra podem e devem ser uma oportunidade para uma reflexão positiva sobre a importância desta relação cultural. Daí ter referido a complexidade da Declaração Conjunta e não factos menores, episódios que ocorreram que foram circunstâncias menores. No plano dos factos, menciono essa negociação que obrigou a coragem, a visão de futuro, designadamente a compreensão quanto à permanência da língua portuguesa. É algo que existe em Macau, mas [que existe] também pela compreensão da RPC.
[Destaques a “bold”/cor diferente e sublinhados meus. Foto de busto de Camões de: “Crónicas Macaenses” (copyright: Rogério P. D. Luz).]
«O vetor dessa expansão está em Macau – cidade chinesa que foi domínio português entre 1557 e 1999. Segundo o coordenador do Centro da Língua Portuguesa do Instituto Politécnico de Macau, professor Carlos Ascenso André, a crescente presença da língua em universidades chinesas é fruto de uma estratégia clara de difusão e expansão do português na China. Nos últimos dez anos, o número de universidades chinesas que ensinam português praticamente quadruplicou, passando de seis para 23 instituições.»
«Segundo Caio César Christiano, professor brasileiro contratado há um ano pelo Instituto Politécnico, “Macau assumiu a incumbência de ser o centro difusor da língua portuguesa na China. É um desejo claro de a China formar muitos professores e tradutores de língua portuguesa”.»
«Macau sempre teve importância estratégica singular. Tornada domínio do Império Português em 1557, a reboque da expansão colonial lusitana na Ásia, a cidade converteu-se rapidamente em entreposto comercial e porto seguro para incursões portuguesas na região do Pacífico.»
«É justamente esse caráter híbrido e cosmopolita que faz de Macau uma área estratégica para o projeto de expansão dos estudos da língua portuguesa em território chinês. Tal expansão tem uma clara dimensão econômica e geopolítica, ligada a interesses estratégicos chineses na América Latina e, sobretudo, na África lusófona.»
«O Brasil é, ele mesmo, um foco de interesse chinês. Os investimentos chineses na América Latina cresceram nas últimas décadas de maneira rápida e consistente. Desde 2009, a China é o maior parceiro comercial do Brasil, substituindo o primado histórico das relações com os Estados Unidos.»
BBC Brasil (extractos)