Perfilados de MedoPerfilados de medo, agradecemos Aventureiros já sem aventura, Perfilados de medo, sem mais voz, Rebanho pelo medo perseguido, Alexandre O’neill |
«E foi assim, parafraseando O’Neill, “ortografados de medo” (com medo que o português, como idioma, se desmembrasse, medo que contaminou certa intelectualidade e serviu de mote a actos políticos condenáveis), que impuseram a loucura da “unificação”. Agora, no dia 5 de Maio, hão-de tecer-se novas loas à língua, como convém. Ignorando que, se houve porta que Abril não abriu, foi a de reconhecer à língua portuguesa maturidade para integrar as suas diferenças (as suas variantes nacionais) sob uma denominação comum. Podendo e devendo partilhá-las num dicionário global normativo (que infelizmente não existe), embora distinguindo o que seria aplicável em cada país. É esse o futuro por que vale a pena lutar.» [Nuno Pacheco]
Não, não é.
O “futuro por que vale a pena lutar” é o passado por que vale a pena lutar. E esse passado, há que dizê-lo sem medo, que de cobardes estamos todos fartos, é ainda o presente, um presente de hiato entre decência e inteligibilidade, um laivo esplendoroso de clarividência no meio de um assomo de loucura.
Não existe no AO90 uma única palavra portuguesa “imposta” ao Brasil; é, aliás, 100% ao contrário, tudo pela inversa, toda a “nova grafia” é integralmente brasileira; trata-se, portanto, de um “acordo” sem acordo algum, já que uma das partes cede em rigorosamente tudo e a outra parte não cede absolutamente em nada. Pouco importa, face à crueza dos números e perante o roncar da porca da realidade, que uns quantos idiotas inventem de novo o fogo ou, em alternativa, finjam que o Brasil não assinou em 1945 e “desassinou” em 55 aquilo que no AO90 apregoam como sendo “cedências” dos “caras”.
E também não, não foi porque uns quantos medrosos tiveram “medo que o português, como idioma, se desmembrasse”, que meia dúzia de cretinos se lembraram de tentar impingir a todos nós o AO90. Essa patranha, o pretenso “medo” da extinção de uma putativa língua minoritária, essa mentira que ainda hoje circula foi apenas um dos pretextos para tentar disfarçar a vigarice e, do mesmo passo, vender como minimamente credível a tese do “gigantismo” brasileiro: se o Brasil é um país-continente, dizem eles, na sua “lógica” de técnicos oficiais de contas linguísticas, então basta “adotar” a espécie de língua que os brasileiros usam para comunicar entre si, amalgamar numa pasta todas as suas variantes (nordestino, carioca, paulista, amazónico, sulista, etc.) e levar Portugal a “adotar” uma espécie de escrita fonética brasileira como sendo “comum”.
Consumada esta manobra de engenharia linguística, a coberto da CPLP e a pretexto de uma alucinada “expansão” (neo-colonialista), extinguindo por simples exclusão de partes o Português-padrão, as verdadeiras finalidades do AO90 revelaram-se por fim: está já em curso a liquidação da Língua Portuguesa, a transferência de poderes do Governo português para o brasileiro, a tomada de posse por parte do Palácio do Planalto das nossas instalações diplomáticas e, principalmente, das infraestruturas de Ensino, incluindo campus universitários, instalações e edifícios, organizações e instituições culturais portuguesas em África e na Ásia.
Com carta branca de traidores governamentais e com a solícita colaboração de vendidos “intelectuais” (linguistas e “investigadores” da treta), gente paga à hora e tarefeiros para o trabalho de sapa (intoxicação da opinião pública), uma fraude colossal — em estreia mundial — vai já garantindo, hoje por hoje, um nada despiciendo maná de tachos, além dos já conhecidos e muito mais por conhecer negócios da China.
A imposição selvática do AO90 anulou qualquer possibilidade de entendimento, antecipando em 50 ou 60 anos aquilo que será de todo inevitável, isto é, a “entronização” da língua brasileira como uma entidade imaterial independente. Seria talvez possível empurrar ainda mais para as calendas essa inevitabilidade, caso se acordasse (a sério) na fixação de duas variantes do Português (uma em Portugal e PALOP, a outra no Brasil), mas tal apenas teria alguma hipótese de sucesso caso os “homens de negócios” de ambos os lados fossem arredados das negociações, se em vez de linguistas pagos com tachos e sinecuras houvesse lá gente de saber, na muito difícil condição de a política e os políticos, mercenários, aldrabões e mentirosos profissionais ficarem de fora das académicas discussões.
Nessa absolutamente impossível conformidade talvez pudesse surgir alguma ponta (ou ponte) para um entendimento curial, com nenhuma obrigatoriedade e apenas para efeitos da mais elementar resolução de algumas discrepâncias.
Mas já nem isso é possível. Deixou de existir sequer formulação para designar, descrever ou delimitar, mesmo que grosseira e genericamente, todo e qualquer tipo de “acordo ortográfico” entre Portugal, Brasil, PALOP, Timor, Macau, Goa e diáspora(s).
O Brasil declarou a sua independência política em 1822. Parabéns.
Alguns vendidos portugueses declararam a extinção da Língua Portuguesa através da “adoção” por Portugal da língua brasileira. Malditos sejam.
Os traidores são por definição apátridas. Por definição e pela eternidade que deles já se esqueceu.
Completam-se, no domingo, 47 anos do 25 de Abril. Quase tantos, já, quantos os que durou a ditadura, que na verdade não foram bem 48 mas sim 47 anos, 10 meses e 27 dias, contados entre o golpe militar de 28 de Maio de 1926, que os partidários da ditadura celebravam como “revolução nacional”, e o golpe militar de 25 de Abril de 1974, que mundialmente se tornou célebre como “revolução dos cravos”. Não é mera questão de semântica, nem jogo de palavras: o que esteve em causa foi sempre a liberdade. Reprimida, durante a ditadura; ainda confusa na turbulência da transição; e finalmente consagrada na democracia.
Sinais dos tempos: em 1974, com os tanques na rua, tornou-se célebre uma fotografia onde, ao fundo, se via um grande cartaz de cinema a anunciar O Esquadrão Indomável. Nem de propósito. Em 2021 não há “esquadrão”, mas há Hollywood, com a cerimónia dos Óscares a ser transmitida (quem diria) pela televisão estatal, a RTP. Uma tardia “conquista de Abril”? Nem por sombras. A cerimónia costuma realizar-se em Fevereiro, às vezes em Março, e só devido à pandemia é que foi empurrada para Abril, coincidindo no nosso 25. Já agora, para não ficarem dúvidas, o tal “esquadrão indomável” do cartaz retratado em 1974 também não era um grupo de heróis, mas sim de polícias implacáveis e com métodos nada democráticos. “Quando eles estão em acção é difícil dizer quem são os polícias e os assassinos”, dizia na altura a propaganda do filme, que na versão original se chamava The Seven Ups.
Uma dúzia de anos antes de nos ser devolvida a liberdade, escreveu Alexandre O’Neill (no seu livro Poemas com Endereço, 1962) “Perfilados de medo”, que José Mário Branco viria magistralmente a musicar, gravando-o em 1971 no exílio, em Paris. “Perfilados de medo, agradecemos/ o medo que nos salva da loucura./ Decisão e coragem valem menos/ e a vida sem viver é mais segura.” (Poesias Completas, Ed. Assírio & Alvim, 2000, pág. 191). Pois bem: há casos em que é o medo que nos empurra para a loucura, em vez de nos salvar dela. E um deles, já gasto, cansativo, moribundo, é o da ortografia. Não havia em Portugal uma ortografia oficial até ser fixada em 1911, após o derrube da Monarquia. Foi a I República que nela insistiu, num país onde 76% da população era analfabeta. Mas o “bichinho” das alterações ortográficas não parou: deu mais reviravoltas em 1945 e em 1973, remexendo em acentos e letras, congeminou novas aventuras nos anos 1960, quis revolucionar as regras em 1986, recuou perante as muitas acusações escandalizadas, e finalmente ajustou-as em 1990, para depois, bem mais tarde, vê-las impostas numa coisa chamada “acordo ortográfico” com a inalcançável veleidade de criar uma ortografia comum ao universo da língua portuguesa.
Visto de fora, pode parecer normal. Mas, visto de dentro, o resultado é um pesadelo. Já em 1945, quando Portugal (então uma ditadura ainda com colónias em África) tentou acertar com o Brasil uma ortografia unificada, o gesto pecava por tardio. As divergências entre os dois países no domínio da língua eram já insanáveis. O Brasil concordou em 1945, mas dez anos depois desvinculou-se. As regras ortográficas de 1945 serviam o português de cá, o europeu, mas não serviam o português do Brasil, americano. Tudo quanto se fez depois, além de ser em vão, só serviu para descaracterizar o português de cá e de lá, sem proveito nem préstimo. Enquanto isso, as colónias africanas emanciparam-se após o 25 de Abril, cada qual com a sua bandeira, o seu hino, as suas leis, os seus sistemas e moedas próprias. Por que razão não deviam, também, dar livre curso ao uso feito do português, fixando as respectivas variantes? Por nenhuma razão. Só uma certa loucura lusitana imaginou que, escolhendo a sua própria via em tudo o resto, deviam ficar presos a uma ortografia comum.
E foi assim, parafraseando O’Neill, “ortografados de medo” (com medo que o português, como idioma, se desmembrasse, medo que contaminou certa intelectualidade e serviu de mote a actos políticos condenáveis), que impuseram a loucura da “unificação”. Agora, no dia 5 de Maio, hão-de tecer-se novas loas à língua, como convém. Ignorando que, se houve porta que Abril não abriu, foi a de reconhecer à língua portuguesa maturidade para integrar as suas diferenças (as suas variantes nacionais) sob uma denominação comum. Podendo e devendo partilhá-las num dicionário global normativo (que infelizmente não existe), embora distinguindo o que seria aplicável em cada país. É esse o futuro por que vale a pena lutar.»Nuno Pacheco
[Transcrição integral (artigo recebido por email). Jornal “Público” de 22.04.21. Destaques, sublinhados e “links” meus. Imagem de cartaz de filme (inserido) proveniente de “blog”.]