«A data de 5 de Maio foi oficialmente estabelecida em 2009 pela Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) – uma organização intergovernamental, parceira oficial da UNESCO desde 2000, que reúne os povos que têm a língua portuguesa como um dos fundamentos da sua identidade específica – para celebrar a língua portuguesa e as culturas lusófonas. Em 2019, a 40ª sessão da Conferência Geral da UNESCO decidiu proclamar o dia 5 de Maio de cada ano como “Dia Mundial da Língua Portuguesa”» [“site” da UNESCO]
«Aproximou-se e veio reto na minha direção. “Desculpe, mas não concordo!”, disse ele. Perguntei com o que não concordava e ele então declamou duas ou três estrofes de “Os Lusíadas”. E declamou bem. Muito bem. Depois de uma pausa bem pensada, declamou um poema, que não identifiquei. Também declamou muito bem, olhando o tempo todo na minha direção, como quem demonstra uma tese ou dá uma aula. Quanto terminou, ficou em silêncio, aguardando. Eu não sabia o que dizer da demonstração, então agradeci e lhe perguntei de quem era o segundo poema. Ele respondeu que era dele. E completou: “Não é a mesma língua! Por isso, discordo”. E fez menção de ir embora.» [Paulo Franchetti]
«Na perspectiva dos acordistas, tudo se resume a seguir a táctica preconizada por Goebbels, a qual consubstancia na prática o “pensamento” teórico do seu alucinado chefe: uns quantos agentes papagueiam, sistematicamente e à vez, como servindo-se num rodízio com patranhas em vez de acepipes, sempre as mesmas aldrabices básicas. A táctica é de facto viável: basta repetir infinita e invariavelmente as mesmas tretas. E a técnica parece ser mesmo infalível: quanto maior e mais simples é a mentira, mais gente acredita nela — até porque ninguém concebe que “outros possam distorcer a verdade tão abominavelmente“. Neste caso concreto, quanto ao AO90, prato principal do alucinado repasto, com CPLP e “lusofonia” por acompanhamento e decoração, sequer existe “distorção da verdade” — isto ele é só mentiras mesmo.» [“Post” As Variações da Mentira]
Ontem, dia 4 de Maio, lá tivemos de levar com mais uma sessão de propaganda oficial (e oficiosa) do AO90. Na RTP, a cadeia televisiva do Estado, isto é, paga pelos nossos impostos, como o próprio Estado, foi montada mais uma encenação da fantochada a pretexto do tal dia mundial da língua brasileira, uma “comemoração” inventada por uns quantos indefectíveis do “gigante brasileiro”, a começar pelo actual Secretário-Geral da ONU, o alfacinha António Guterres.
E se o pretexto existe há dois anos (ena!, dois anos!, que farturinha!, e que coincidência!), então toca a reunir as tropas, o pessoal dos negócios, uns bacanos da CPLP a ver se a ideia de língua “universáu” cola, talvez um ou outro “do” Camões e do IILP, dá-se uma apitadela ao anti-receção que estiver para aí virado e pronto. Siga.
O truque é sempre o mesmo ou, esmiuçando a coisa à vol d’oiseau, pois que de contradições e paradoxos se trata, a armadilha é sempre igual: junta-se uma comandita de acorditas para fingir que estão a discutir o AO90 “democraticamente” com um qualquer anti-acordita (por regra, também eles sempre os mesmos) que no alegre evento os acorditas estraçalham à dentada; assim, sozinho, encolhido entre os mastins e tentando manter a compostura perante os seus rosnados, ao resistente apenas cabe o papel de bizarria esquisitóide; algo parecido com o que sentiam os cristãos de antanho quando atirados às feras nas arenas romanas, se bem que no caso seja bem pior, o povo nos anfiteatros ainda goza com o supliciado escarmentando dele e atirando-lhe à careca pedras pontiagudas (e acepipes já mastigados e sandálias rotas, lixos assim).
É de facto um triste, deprimente espectáculo este, e ainda por cima quando sinais e avisos não faltam, à primeira qualquer cai, à segunda cai quem quer. De mais a mais se a questão central é a de haver um “dicionário comum”, por exemplo, bem, então dir-se-ia que satisfeita tal “exigência” o assunto ficaria arrumado, problema nenhum, viva o Malaca, viva o Bechara, três hurra pelo Lula e outras tantas pelo Sócrates. Como se andasse tudo por aí, em Portugal e nos PALOP sobraçando dicionários, um timorense de Maubara tropeçando num guineense de Bafatá ou moçambicanos apanhando o autocarro para Cabo Verde e toda a gente a abrir seus calhamaços para consultar “desculpe” e “olá, como vai” e “cumprimentos à esposa” nas línguas das outras ex-colónias.
Claro que o tipo de eventos promovidos pela RTP (e pela SIC, outra agência governamental) é reservado até ao fundo da sanita, povo e mal vestidos em geral nem a 100 metros, essa escumalha que fique atrás dos cordões policiais agitando freneticamente suas bandeirinhas grátis.
Portanto, devidamente guardadas as distâncias higiénicas, a surrealista tertúlia televisiva pôde contar, além do referido anti-acordita, com a inolvidável presença (inolvidável para ela, é claro) de uma se calhar conhecidíssima escritora portuguesa de livros à venda no Brasil (talvez de culinária, desconheço a especialidade “literária” da senhora), um fulano de Moçambique, se bem me lembro, que toca viola ou canta yélélélélé ou lá o que é, um outro “notável” igualmente virtual a dizer não sei o quê sobre o que presumo nem ele mesmo saiba; e acho que havia ainda outro, mas confesso que também não me recordo ao certo (e não vou perder tempo a recuar até à gravação na “box”, não sou masoquista) e pouco ou nada interessa, outros da mesma safra que lá pusesse o realizador daquela pepineira diriam as mesmas ou quejandas baboseiras: em qualquer sessão de propaganda política ou de intoxicação de massas ou em massa — e este programa “É Ou Não É” deu na perfeição para ambas as serventias — não importa absolutamente para nada o que se diz; apenas interessa quem diz, como diz e, principalmente, onde diz; o fascínio das lantejoulas, das luzinhas a piscar, os olhos carrancudos e gravíssimos das câmeras, em tão finérrimo ambiente qualquer bojarda é tolerada e elogiada, por entre “ah” e “oh” e “tch”, toda e qualquer mentira, por mais descarada e arrogante que seja, é aplaudida, e a soirée é tida pelo “honorável público”, “mininos e mininas”, emulando o Circo, como uma excelente série de números da contorcionista, do ilusionista, do trapezista e de toda a trupe, em suma, “qui méréci apiláusos, vá lá, palminhas, palminhas”.
Não esqueçamos, porém, a performance daqueloutro verdadeiro artista, da sua presença grave e circunspecta, uma variante do palhaço rico, prestidigitador e malabarista em simultâneo, o tipo que arvora “Excelência” como seu nome artístico.
Deste ligeiramente jovem patriarca e de seus rotativos comparsas nas artes circenses, feras amestradas, troca-tintas ortográficos, vigaristas da corda bamba cursiva, aldrabões das pilhas humanas, patinadores de gelo seco, enfim, dessa cambada já largamente se falou, que enjoo, e, palpita-me, pelo menos eu cá terei ainda de voltar ao dito quando de novo, ainda que ad infinitum, tiver de ser.
A vigarice, por maldição do destino, é nesse aspecto parente próximo da Língua Portuguesa: não prescreve.