«A palavra falada é um fenómeno natural; a palavra escrita é um fenómeno cultural. O homem natural não pode viver perfeitamente sem ler nem escrever. Não o pode o homem a que chamamos civilizado: por isso, como disse, a palavra escrita é um fenómeno cultural, não da natureza mas da civilização, da qual a cultura é a essência e o esteio.» [Fernando Pessoa]
Ainda a respeito do programa da RTP sobre a língua brasileira, essa encenação de ASS que não motiva o respeitável público a ovacionar ou sequer a aplaudir com dois dedos, indolente e sonolentamente, temos aqui em baixo a reprodução de mais um texto sobre a data comemorada em geral e o programa televisivo que a festejou em particular.
Não foi exactamente uma festa, em resumo. Aliás, a julgar pelo ar fúnebre dos convidados, aquilo mais parecia um velório ou, se tal é possível, algo tão solene e tétrico, sinistro, deprimente, como exéquias em câmara ardente, em sentido literal.
Este artigo do “Público” faz o relato conciso da cerimónia, identificando e apresentando — coisa que eu próprio não fiz num dos últimos “posts” — quem estava lá, que velinhas acendeu e que asneiras disse. Entenda-se aqui “asneiras” na acepção de inválidas por omissão sistemática (o que diabo fez, escreveu ou sequer disse essa gente antes contra o AO90?) e também porque afirmações avulsas, esporádicas e inconsequentes (como é o caso) denunciam por regra total indiferença e, por inerência, são “razões” asininas que apenas dependem de circunstâncias, produtos e “figuras” a compor, a adular e, numa palavra, a vender.
“Pormenores técnicos” como o «carácter normativo da ortografia», por exemplo, ou mentiras descaradas como referir a “necessidade” de “eliminar” as consoantes “mudas” porque “atrapalham”, por exemplo, são afirmações que não valem nem 0,0001% de qualquer edição microscópica no Brasil, esse país que para os acordistas e os “neutrais” é um fascinante colosso.
De resto, é dizer que sim, mas não, ou que talvez, quem sabe.
Ou seja, em duas linhas que se entrecruzam, os “não” e os “nim”, “opiniões” colossalmente estúpidas e tibieza militante que valem, ambas, “um pouco” mais do que menos um: zero.
Como num programa de televisão se demonstrou que o Acordo Ortográfico não era necessário
| Opinião – www.publico.pt, 11 de Maio de 2021
Maria do Carmo Vieira
Não pedimos, não queremos e não precisamos do Acordo Ortográfico.
A. E. [*], Apologia do Desacordo Ortográfico, 2010A ortografia é um fenómeno da cultura, e portanto um fenómeno espiritual. O Estado nada tem com o espírito. O Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever numa ortografia que repugno (…).
Fernando Pessoa, A Língua Portuguesa, edição Luísa Medeiros, 1997
O programa “É ou Não É?”, de dia 4 de Maio p.p., na RTP 1, moderado pelo jornalista Carlos Daniel, elucida flagrantemente as epígrafes escolhidas. Aliás, o que li e ouvi, em relação a intervenções, sobretudo no dia 5 de Maio, juntando os gurus oficiais do momento festivo, constitui um manancial de matéria que expõe, sem pejo, contradições, servilismo, arrogância intelectual, culto da ignorância, e porque não dizê-lo, estupidez, implicando lamentavelmente a Língua Portuguesa e a vil roupagem com que a mascararam, ridicularizando-a. Os versos do poeta Luís de Camões, que Augusto Santos Silva não aceita como figura para identificar e representar a Língua Portuguesa, traduzem bem a “surdez” e o “endurecimento” de uma “pátria” que não louva e favorece “o engenho”, mas “que está metida/ no gosto da cobiça e na rudeza/ de uma austera, apagada e vil tristeza” (Canto X de Os Lusíadas). Uma consciência reiterada, ao longo dos séculos, por muitos outros escritores e poetas – António Ferreira, Francisco Rodrigues Lobo, Francisco Manuel de Melo, António Vieira, Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner Andresen, Vasco Graça Moura…
Se dúvidas houvesse sobre o facto de os cidadãos não encontrarem razão para o Acordo Ortográfico (AO) que foi decretado à sua revelia e, no caso português, contra todos os pareceres solicitados pelo Instituto Camões e estrategicamente escondidos do público, o programa da RTP 1, acima referido, demonstrou-o ao vivo: um moçambicano (Stewart Sukuma), um brasileiro (Arthur Dapieve) e um português (António Zambujo). Nenhum deles pensou alguma vez que esse acordo pudesse vir a acontecer, nem vislumbrou qualquer vantagem daí adveniente, muito pelo contrário. Eis as suas palavras: Stewart Sukuma – “O Acordo Ortográfico foi mais usado a nível político e económico, mais do que a nível cultural. Os artistas acham mais piada continuar a cantar no seu português criado por via destes casamentos todos que existem. (…) é isto que faz a língua mais bonita. Pelo que sei, Moçambique nunca seguiu à risca o AO. (…) Não sentimos o Acordo em Moçambique”; Arthur Dapieve – “Esse Acordo Ortográfico nasceu um pouco de uma tentativa de uma certa utopia de que se a gente escrevesse tudo exactamente da mesma maneira, nós nos tornaríamos mais próximos. Nesse sentido, ele fracassou. A riqueza da língua portuguesa é a variedade de falares. Não era necessário.”; António Zambujo – “Exactamente o que ele disse. Subscrevo o que disse o Arthur. Não era necessário.” Naturalmente, não incluí, neste painel a três, os convidados que, directa ou indirectamente, representavam uma posição acordista ou não-acordista.
Situação confrangedora, e que elucidou igualmente em flagrante o porquê do caos linguístico instalado na escola e na sociedade portuguesas, após a imposição do AO, foi a da jornalista, professora e escritora Isabela Figueiredo. Efectivamente, ao afirmar, com uma surpreendente leveza, que usava uma “ortografia mista”, escrevendo à sua maneira (omissão das consoantes mudas, mas manutenção dos acentos) e deixando aos revisores a tarefa da uniformização, Isabela Figueiredo apontou a razão do caos que grassa na sociedade portuguesa, com cada um escrevendo à sua maneira; fez também, e infantilmente, papel de ignorante porque não se acredita que desconheça o carácter normativo da ortografia, que a sua “ortografia mista” põe em causa, bem como a estabilidade que aquela exige. Do alto do pedestal instável em que se posicionou, ao longo do debate, confessou ainda Isabela Figueiredo, com a mesma euforia e no final do debate: “Sempre senti ao longo da minha vida de estudante a necessidade de eliminar as consoantes mudas e o acordo ortográfico veio satisfazer este meu grande desejo de as assassinar, de as fazer desaparecer.”
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