Dia: 20 de Maio, 2021

O Apocalipse de agora


É uma excelente imagem.

Não propriamente enquanto metáfora (e trocadilho e jogo de palavras), ainda que essa seja igualmente evidente, mas antes como imagem mesmo, terrível, literalmente ilustrativa: salvas as devidas e respeitosas distâncias, atendendo às vítimas envolvidas, o AO90 fez com o Português o mesmo que as bombas de napalm no Vietnam: arraso total. Dos escombros sobraram apenas alguns detritos indistintos, uma massa negra malcheirosa soltando ainda umas fumarolas, ou sem cor de todo ou empestando a madrugada com o halo infernal em  todos os tons de  cinza e o azul-espectro dos pesadelos.

Neste artigo, o autor adopta na perfeição — e quase sem utilizar muito o zig-zag, se exceptuarmos a putativa “justeza do AO90” e mais um ou outro deslize, por regra imediatamente revertido — a flagrante analogia entre o filme de Francis Ford Coppola e o apocalipse que se abateu sobre a Língua Portuguesa; indo ainda mais longe na analogia, A.J. Pascoal desenha um arco de similitude entre a célebre frase proferida pela personagem interpretada por Robert Duval e aquilo que não é mais do que o nosso dever, ou seja, combater os “impostores da linguagem”, o seu “triunfalismo bacoco” e sem fazer caso da “edificação da sua mitomania”.

Remédio santo, digamos assim, para acabar de uma vez por todas com as mentiras debitadas, em sua solene e circunspecta basófia, por qualquer um dos mais proeminentes acordistas. Por assim dizer, o napalm (ou coisa que o valha) acaba com a tosse e cura instantaneamente todas as maleitas.

De facto, sempre embarretando o seu característico chapéu de Cavalaria e aferrolhando o seu ar impassível debaixo de fogo, o Coronel Kilgore deixa para a história uma frase lapidar, ou, melhor dizendo, duas: que adora o cheiro a napalm pela manhã e que isso “cheira a vitória”.

Felizmente, convenhamos, no caso vertente, Portugal não é os States. Infelizmente, porém, poucos portugueses apreciam odores exóticos ou maçadas, aborrecimentos, chatices. Muito poucos, pouquíssimos, e nem se sabe ao certo se ainda há disso. Dir-se-ia que não, já não há, isto aqui foi chão que deu uvas, agora é mais samba e futchibóu. Quando muito, no que concerne a labaredas, vai uma ou outra churrascada, toda a gente é veterana mas é sempre de “muitos anos a virar frangos”.

Bom, seja por mor e em memória dos heróis do mar, do nobre povo e da nação valente, ou que ao menos sirva de palíndromo histórico, resistir é um dever e o dever é aquilo que nos resta. O “cheiro a vitória”, portanto, ainda assim.

E o som triunfante de uma cavalgada imparável, transparente, majestosa, tão antiga como o anel dos Nibelungos.


[Uma das peças que compõem a “banda sonora” do filme “Apocalypse Now”]
[The “Ride of the Valkyries” (German: Walkürenritt or Ritt der Walküren) refers to the beginning of act 3 of Die Walküre, the second of the four operas constituting Richard Wagner‘s Der Ring des Nibelungen. (Wikipedia)]

O cheiro a consoantes mudas assassinadas pela manhã

António Jacinto Pascoal
publico.pt, 12.05.21

Nada tenho contra a escritora Isabela Figueiredo, a quem desejo êxito literário no exercício do seu labor criativo. Contudo, nem os maiores arautos do Acordo Ortográfico de 1990 terão ficado indiferentes à ligeireza e leviandade com que as suas palavras foram proferidas.

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É tentador assimilar o destino de um povo à convenção hegemónica de uma língua, na afirmação de si mesmo perante a saudade do Império e o sintoma de uma existência e identidade precárias, na constante urgência de reavivar o centro mítico abatido em que aquele vive. Queremos sempre mais do que somos e travestimo-nos, invariavelmente, daquilo que não somos. Ao contrário do que se possa crer, a supressão de grafemas e a purga de acentos que o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90) providenciou não se traduz na promessa de um gesto de humildade e de solidariedade para com os países de Língua Portuguesa, mas a mais recente, esfacelada, incompreensível e incoerente tentativa de assegurar a Portugal a sua sobrevivência cultural e, anacronicamente, a expressão épica e controladora que o seu instinto anima.

Abdicámos da natureza ontológica da grafia – e nisso tivemos, com efeito de ceder, “convidando” outras nações a cedências – a fim de manter a intenção de prolongar o estranhíssimo fenómeno do destino imperial e, finalmente, nos convertermos nos sonhadores de nós mesmos e nos idólatras do poder e das honrarias de um ideal fáustico inexistente, análogo ao proposto por Pessoa na Mensagem. O nosso provincianismo é de facto megalómano.

Alfredo Margarido (A Lusofonia e os Lusófonos: Novos Mitos Portugueses, 2000) – sem esquecer o luso-angolano Leonel Cosme em Os Portugueses. Portugal a Descoberto, 2007) – não foi o primeiro ensaísta a alertar para o terreno movediço da lusofonia, essa pretensão encapotada de neocolonizar territórios onde se fala português, por intermédio da própria língua, nas suas dimensões gráfica, semântica e ideológica, em que “os missionários da lusofonia agem como se não tivéssemos atrás de nós uma longa história de relações polémicas com aqueles que escolheram falar português”. Muito antes, em 1997, já Eduardo Lourenço publicara Imagem e Miragem da Lusofonia, mas também Portugal Como Destino e Mitologia da Saudade, dando-nos conta deste novo mito, sustentado no “sentimento profundo da fragilidade nacional” e na perda identitária do esplendor imperial, enquanto sistema de compensação gerado desde a sacralização das origens, ao sebastianismo de Os Lusíadas (referência icónica da cultura portuguesa, como Lourenço se lhe referiu), à lógica profética de António Vieira, e à utopia Pessoana do Quinto Império, lida, o mais das vezes, sem escrúpulo de vaidades. Lembremos como nem Camões se deixou deslumbrar por acessos narcísicos e megalómanos de larga escala, convencido dos embustes dos egoísmos nacionais e imbuído do discernimento e pudor de não faltarem atrevimentos “Nesta pequena casa Lusitana”.

Em parte, o recente discurso poliédrico do Presidente da República tocou escombros, ruínas, demónios, fantasmas e feridas que não foram de todo resolvidas. Alfredo Margarido dizia noutro lugar que a “descolonização” não simplificou sequer a validade das literaturas africanas e que “a própria existência da ‘descolonização’ prova que ainda não conseguimos libertar-nos da ganga colonialista, já que os portugueses surgiram como únicos actores do processo político: colonizadores graças às malhas que o Império tece, mas também descolonizadores, quando se trata de destecer as mesmas malhas”.
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