Foi Ministro da Cultura entre 1995 e 2000. Portanto, estava no Governo — e numa “pasta” de relevância equivalente à da Educação, não façamos a coisa por menos — quando o AO90 estava, muito descansadinho, a repousar numa qualquer gaveta do Terreiro do Paço.
Apesar de nunca ter mexido uma palha a respeito do assunto enquanto podia, se calhar rezando a todos os santinhos para que o assunto esquecesse entretanto, porque Manuel Maria Carrilho sempre foi contra o “acordo ortográfico”, a verdade é que, na prática, limitou-se a empurrar com a barriga o problema. Ainda mais na prática, se tal é possível, “passou a pasta” do AO90 quando passou a “pasta” da Cultura. [“Post” «Cultura — de novo a empurrar com a barriga?»]
Ainda a língua: uma dimensão universal ou paroquial?
Para sair disto e rumar ao futuro (à consagração das variantes do português) é preciso livrarmo-nos do “elefante”.
Nuno Pacheco
“Público” (Ipsilon), 06.05.21Podem respirar de alívio: o Dia Mundial da Língua cumpriu-se e os senhores e senhoras que tiveram a amabilidade de o celebrar voltaram aos seus normais afazeres. Na sala, sozinho, ficou o “elefante” do costume. Há quem lhe chame acordo, mas na verdade é um estorvo ortográfico. O mais estranho é que, passadas três décadas da sua funesta aprovação em 1991 e cerca de dez anos da sua imposição com recurso a uma “pistola” política (se não assinam todos, assinam só três e vamos lá para a frente), parece que não saímos do grau zero da discussão. O ministro Santos Silva, sibilino, repetiu na televisão o que já dissera, dias antes, numa entrevista à “Multinews”: não tem “nenhuma competência técnica nesse assunto” (o que deve corresponder em absoluto à verdade), mas como Portugal cumpre o que assina, cabe-lhe zelar por tal cumprimento. Ou seja, “verificar que o país respeita esse acordo”. Drummond perguntaria: “Trouxeste a chave?” Neste caso, não é necessário: ele tem-na bem guardada.
Já Edite Estrela, autora do livro “Saber Usar a Nova Ortografia” (editado, nem de propósito, pela editora Objectiva, com o proscrito dígrafo CT, tal como jornal que ela própria dirige, o “Acção Socialista”, com o ainda mais proscrito dígrafo CÇ), veio a público, na Antena 1, repetir argumentos estafados, afirmando que o acordo consagra “a unidade possível” (o que, dito de outro modo, só prova que há uma “unidade impossível”, a que foi lunaticamente prometida a quem nela acreditou nos alvores do acordo), que o “bom é inimigo do óptimo”, etc. E lá veio de novo o pobre e tão estafado “abysmo” de Pascoaes, como prova de que estas coisas terão sempre oposições, resistências, que é tudo uma questão afectiva que o tempo curará. Ámen.
Mas disse mais: que o Dia Mundial fixado pela UNESCO é um “importante passo para que a ONU possa adoptar a língua portuguesa como língua de trabalho e, quem sabe, como língua oficial”. E até citou António Guterres, quando primeiro-ministro: “Afirmou, e cito, ser tarefa fundamental da comunidade de povos e países de língua portuguesa dar as mãos e trabalhar no sentido de conferir ao português uma dimensão universal. Ora eu acho que foi também com esse objectivo […] que os académicos de Portugal e do Brasil, e as autoridades políticas respectivas, trabalharam muitos anos para acabar com a singularidade de a língua portuguesa ser a única grande língua de cultura que reconhecia expressamente duas variantes oficiais.”
Pois aqui ficam algumas novidades que talvez interessem a Estrela. Primeira: foi mais fácil Guterres ser eleito (e quem sabe se reeleito) secretário-geral da ONU do que a língua portuguesa lá entrar como língua oficial ou sequer de trabalho. Segunda: para cumprir o que Guterres sugeriu não era preciso nenhum acordo, só trabalho e vontade. Terceira: continua, apesar do acordo, a haver duas variantes ortográficas, a de Portugal e a do Brasil (e devia haver oito ou nove, cada uma respeitante ao seu país de língua portuguesa). Quarta: para que não fiquem ideias erradas acerca do que pensaria Guterres deste tema, talvez não seja mau ler o que escreveu no Facebook, em 2019, o seu Ministro da Cultura, Manuel Maria Carrilho: “Pensei – e nisso tive todo o apoio do primeiro-ministro António Guterres – que a melhor estratégia para liquidar aquele inútil aborto da herança cavaquista-santanista era justamente não falar dele, era metê-lo numa gaveta e votá-lo ao mais completo esquecimento.” E disse ainda que só o “voluntarismo patológico” de José Sócrates fez avançar aquela “inutilidade”.
Voltando a Drummond, agora num excerto mais completo do seu poema “A rosa do povo”, de 1945: “Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra/ e te pergunta, sem interesse pela resposta,/ pobre ou terrível, que lhe deres:/ Trouxeste a chave?” Trazíamos, na verdade, mas foi-nos confiscada. As chaves que nos deram, ou encravam na fechadura ou não nos permitem chegar às tais “mil faces secretas sob a face neutra”.
Porque em lugar da dimensão universal, múltipla, vimo-nos reduzidos a uma dimensão paroquial, onde nem a língua abarca todas as suas variantes nem estas se vêem livres para estabelecer as suas regras e harmonicamente partilharem as suas diferenças. O território, agora, é dos que sempre odiaram a escrita, as suas regras, e, a coberto de uma “nova norma”, nos fizeram recuar um século, até 1910, quando não havia ortografias oficiais e a escrita era uma miscelânea de ortografias, etimológicas ou inventadas. Para sair disto e rumar ao futuro (à consagração das variantes do português) é preciso livrarmo-nos do “elefante”.
[Artigo transcrito a partir de uma cópia na Internet. “Links” meus.]