Conversa fiada

Coerência, numa palavra. Também em 1955 o Brasil rescindiu unilateralmente o acordo ortográfico que havia  negociado com Portugal e tinha subscrito dez anos antes, em Agosto de 1945. Honra seja feita aos brasileiros que, alegre e felizmente, romperam há 76 anos e se preparam para repetir agora esse valoroso feito quanto ao estropício de 1990.

É, de facto, para todos os portugueses decentes, motivo de grande regozijo que aquele “país-Continente”, decerto enojado com a miserável bajulação (puxa-saquismo, em brasileiro) de alguns vendidos portugueses, tencione marimbar-se radical e positivamente para o AO90. Pois bem, merecem uma saudação calorosa os “caras”, incluindo os do Itamaraty, mesmo que para estes, tanto os da comandita de Lula como os da de Bolsonaro, a coisa seja bem mais difícil: ao fim e ao cabo, para uns e para outros o fim do AO90 será algo equivalente a largar a galinha dos ovos de oiro; lá se vão imensos negócios da China (e de Angola).

Em conclusão: é de saudar entusiasticamente o activismo anti-AO90 de que tem dado bastas provas o escritor, jornalista e critico literário brasileiro Sérgio Rodrigues, na mesma linha de outros autores, políticos, artistas — todos eles igualmente brasileiros, bem entendido — como, por exemplo, o professor Sérgio de Carvalho Pachá, o assessor da Presidência Filipe Martins, Sidney Silveira ou o deputado federal Dr. Jaziel.

Também do lado de lá do Atlântico, como se vê, há quem tenha no sítio o que é preciso, pessoas de coragem, convicções, saber e inteligência mais do que suficientes para denunciar a fraude intelectual inventada há mais de 30 anos, ou seja, o desacordo que nunca serviu fosse para o que fosse… a não ser para baralhar e tornar a dar um “problema” que jamais existiu e para criar conflitos anteriormente inexistentes entre Portugal e o Brasil.

Sérgio Rodrigues Português ou brasileiro? “A ilusão de um idioma único não passa de conversa fiada”

“Diário de Notícias”, Quinta-feira 27/5/2021
Entrevista de João Almeida Moreira – São Paulo (Brasil)
dnot@dn.pt

 

BRASIL Sérgio Rodrigues, escritor brasileiro, aderiu à tese da autonomia do português do Brasil, com base em “argumentos linguísticos fartos” e numa “fenda gramatical que vem se alargando”.

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O escritor e jornalista brasileiro Sérgio Rodrigues, 59 anos, publicou uma coluna no jornal Folha de S. Paulo, no dia 12 de Maio, a declarar adesão às teses de autonomia do “português brasileiro”. Em entrevista por ‘e-mail’ ao DN, o vencedor do Grande Prémio Portugal Telecom de literatura, de 2014, com O Drible (Companhia das Letras), explica que “argumentos linguísticos fartos e maduros de muitos anos”, assim como a crescente “fenda gramatical” entre o que se escreve e, sobretudo, o que se fala em cada um dos países sustentam a tese.

Para o autor de Elza, a Garota (Quetzal), What Língua Is Esta? (Gradiva), além de Viva a Língua Brasileira e de mais um punhado de obras, quando se deixa “um país do tamanho e da complexidade do Brasil solto por 500 anos, e não se esforça com muito afinco para construir pontes, universidades, editoras, instâncias variadas de controlo, o resultado não poderia ser outro. Os espanhóis fizeram esse esforço, os portugueses não”.

Em coluna do Jornal Folha de S. Paulo, sob o título “Lusofonia, Adeus!”, diz que “o acordo ortográfico [AO] jogou gasolina na fogueira do antibrasileirismo em Portugal” e aproxima-se das teses dos autonomistas do português brasileiro. Quais os pecados do AO, na sua visão, e o que sustenta as teses autonomistas?

Não acho que precise de esmiuçar os defeitos do AO para o público português, que tem sido submetido a uma rica dieta de críticas a ele nos últimos anos, tanto na imprensa quanto em livros. Basta dizer que o AO, a meu ver, carrega um pecado original, o de supor que seria uma boa ideia unificar a ortografia de duas línguas que, embora muito parecidas, já são suficientemente diferentes para precisarem seguir seus próprios caminhos. O que sustenta a tese da autonomia do português brasileiro são argumentos linguísticos fartos e maduros de muitos anos, presentes nos trabalhos de um linguista brasileiro como Marcos Bagno e de um linguista português como Fernando Venâncio, entre outros. A fenda gramatical entre nós vem-se alargando, isso é um facto. Claro que um facto menos óbvio na linguagem escrita, escolarizada, e mais nítido quando consideramos a oralidade e a língua falada pelo povo. Mas um facto ainda assim.

Esse antibrasileirismo a que se refere é sobretudo a propósito de uma reportagem da correspondente da Folha em Lisboa em que se conta que professores consideraram errado o uso do português do Brasil e nalguns casos até baixaram a nota de alunos brasileiros por isso. Mas se um aluno americano escrever theater em vez de theatre em Inglaterra não será corrigido também? Ou se um português no Brasil escrever “mais pequeno”, forma autorizada em Portugal, em vez de “menor”, não teria a nota diminuída?

Você se engana, os episódios relatados pela Folha não tiveram peso algum em meu argumento, além do que chamamos de “gancho” jornalístico. São só um caso recente. Os sinais de que o antibrasileirismo é disseminado, multiforme e crescente na sociedade portuguesa me parecem fartos, o que aliás era previsível, se considerarmos o grande fluxo migratório de brasileiros nos últimos anos. Acho que ocorreria o mesmo em qualquer país. No caso, me interessa mais falar do preconceito linguístico, e aí me parece estar o xis da questão. Poucos portugueses discordariam da afirmação de que os brasileiros falam e escrevem meio  errado, confere? Muitos brasileiros também pensam assim. Isso ocorre porque o nosso português já é outro. Não é errado, é diferente, submetido a outras regras. Enquanto isso não for levado a sério, com todas as suas consequências educacionais e culturais, não será bom para ninguém.

Só Portugal deseja ser “o centro do idioma”, ou nota isso nos dois lados?


O Brasil não tem autoestima linguística para ser nem o centro do idioma para si mesmo, o que é mais um argumento a favor da autonomia. Nossas gramáticas escolares, como destaca o linguista Carlos Alberto Faraco, são calcadas até hoje da norma-padrão lusitana do século XIX. Muito provavelmente, essa falta de sintonia com nosso próprio modo de falar tem grande parcela de culpa pela mediocridade alarmante do desempenho educacional brasileiro. É uma forma de esquizofrenia.

Do seu conhecimento, americanos ou australianos, mexicanos ou argentinos, por exemplo, também defendem autonomia em relação ao inglês ou ao castelhano europeu?


Há de tudo no mundo, mas é preciso considerar o que existe de específico no caso do português. Como gosta de dizer o professor Venâncio, Portugal deixou correr solto o português brasileiro, nunca se preocupou em zelar por ele, regulá-lo, mantê-lo no cabresto, como fez e faz até hoje, por exemplo, a Real Academia Espanhola com os países da América hispânica. Pelo contrário, parece ter havido certo empenho em ampliar distâncias: quando decidiu fazer a reforma de 1911, matriz do cisma ortográfico que o AO tentou corrigir, a Academia das Ciências de Lisboa optou por agir à revelia da Academia Brasileira de Letras. Essa postura tem aspetos positivos e negativos. O espanhol é uma língua com grande número de variedades nacionais, mas todas penduradas num tronco solido. Há ressentimentos, óbvio: argentinos costumam se orgulhar de seu modo peculiar de falar e podem odiar espanhóis com uma intensidade que julgo sem paralelo no universo do português. Por outro lado, o fluxo de livros e trabalhadores intelectuais entre a ex-matriz e as ex-colónias hispânicas sempre foi intenso, 0 que não ocorre no português. São histórias muito distintas.

A adesão de jovens portugueses a canais de youtubers brasileiros assim como a moda, por exemplo, de treinadores de futebol portugueses no Brasil não servirá para atenuar distâncias?

Há indícios linguísticos fortes de que as distâncias vêm se ampliando pouco a pouco, devagar, mas sempre. Se no passado as telenovelas de Jorge Amado e a febre de José Saramago no Brasil não as mitigaram, duvido de que youtubers e treinadores de futebol consigam fazer isso.

Entrando num campo muito mais abrangente do que a linguística, há quem defenda que a base da discussão é política, histórica: por, supostamente, os americanos, por exemplo, sentirem mais orgulho na herança britânica do que os brasileiros na portuguesa, jamais lhes ocorreria serem autonomistas.

Não acho que o romantismo seja bom conselheiro nesse caso. As relações entre ex-colonizadores e ex-colonizados serão sempre uma maçaroca bem confusa de amor e ódio. Não percebo nenhuma animosidade especial contra portugueses hoje no Brasil, embora provavelmente já tenha havido em outros momentos históricos. O problema talvez esteja mais próximo da indiferença, de um certo descaso. Mas a escrita portuguesa, por exemplo, é valorizada, há muitos autores que vendem bastante bem aqui, como Valter Hugo Mãe e José Luís Peixoto. Não me parece que se possa dizer o mesmo de nenhum escritor brasileiro em Portugal já há muitos anos.

Na sua opinião, o antibrasileirismo, em voga hoje em Portugal, assim como o antiportuguesismo no Brasil esteve em voga na época da emigração em massa na viragem para o século XX, não influi na questão da autonomia?

Como eu dei a entender acima, a questão do distanciamento das línguas é anterior a qualquer sentimento de xenofobia. As línguas estão em constante movimento, todas elas. Quando você deixa um país do tamanho e da complexidade do Brasil solto por 500 anos, e não se esforça com muito afinco para construir pontes, universidades, editoras, instâncias variadas de controlo, o resultado não poderia ser outro. Os espanhóis fizeram esse esforço, os portugueses não. Minha coluna cruza os dois temas apenas ao constatar que o AO, visto em Portugal como uma imposição brasileira, contribuiu para agravar preconceitos.

Se a autonomia for consumada, posso presumir que aquelas professoras citadas (mas não ouvidas) na reportagem da Folha deixam de incorrer em antibrasileirismo e passam a estar correctas ao baixar as notas dos alunos brasileiros?

Sem dúvida. Casos de humilhação e maus-tratos a parte, elimina-se automaticamente a injustiça da discriminação no momento em que se reconhece oficialmente o que, de certo modo, já é um facto. Os alunos brasileiros também passam a entrar no jogo com outro espírito, sem a ilusão de um idílico idioma único que não passa de conversa fiada.

O que se ganha com a autonomia não é menor do que o que se perderia? Machado de Assis deixaria de escrever na mesma língua dos portugueses, Fernando Pessoa deixaria de escrever na mesma língua dos brasileiros, que deixariam deter um nobel da Literatura, José Saramago, de quem se orgulhar…

Sobre Portugal não sei responder, mas o Brasil tem muito a ganhar, em termos culturais e educacionais, transformando sua norma-padrão num reflexo da língua que de facto se fala no país. E, veja bem, nós falamos português. Continuaremos a falar português, evidentemente. Só não é o português lusitano, é o português brasileiro, o que faz alguma diferença. Quando dou adeus à lusofonia em minha coluna, estou falando de um mito de unidade ao qual se tentou dar consistência política e que saiu pela culatra. Mas, tomando a palavra em sentido mais amplo e menos rígido, nossa filiação à lusofonia é inevitável, por mais que o Brasil reconheça a autonomia de seu português. Quem quiser ler Machado em Portugal ou se orgulhar do Nobel de Saramago no Brasil não vai precisar mudar de conduta.

[Transcrição integral (a partir da edição em papel) de entrevista realizada por João Almeida, em São Paulo (Brasil), com o título «Sérgio Rodrigues Português ou brasileiro? “A ilusão de um idioma único não passa de conversa fiada”», publicada pelo “Diário de Notícias” em 27/5/2021. Destaques, sunlinhados e “links” meus. Imagem de topo de: SuperProf (Brasil).]

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