«Aproximou-se e veio reto na minha direção. “Desculpe, mas não concordo!”, disse ele. Perguntei com o que não concordava e ele então declamou duas ou três estrofes de “Os Lusíadas”. E declamou bem. Muito bem. Depois de uma pausa bem pensada, declamou um poema, que não identifiquei. Também declamou muito bem, olhando o tempo todo na minha direção, como quem demonstra uma tese ou dá uma aula. Quanto terminou, ficou em silêncio, aguardando. Eu não sabia o que dizer da demonstração, então agradeci e lhe perguntei de quem era o segundo poema. Ele respondeu que era dele. E completou: “Não é a mesma língua! Por isso, discordo”. E fez menção de ir embora. Eu então lhe perguntei com quem tinha tido o prazer de falar e ele me estendeu a mão, dizendo: “Ah, desculpe. Muito prazer, Geraldo Vandré.” E foi embora.» [Paulo Franchetti]
Aqui vai mais um texto de cariz independentista e, por conseguinte, identitário, na sequência da mais recente (e justa) ofensiva anti-acordista que tanto em Portugal como no Brasil vão definindo — sem tergiversações, sem mentiras e sem sequer “considerandos”, por regra manhosos — a única saída possível para o AO90: essa manobra política não serve para nada, a “língua universal” é um absurdo impraticável, portanto anule-se o “acordo” e que a língua do Brasil siga por si mesma, separando-se finalmente da matriz portuguesa. Ou, para utilizar a expressão de Paulo Franchetti, mais um dos autores brasileiros*** a constatar a definição da expressão portuguesa “óbvio ululante”, “não é a mesma língua!”.
À semelhança do anterior, este outro artigo de outro autor brasileiro, foi também ele publicado num jornal do lado de lá. Lado de lá esse que, no caso vertente, isto é, a luta pela independência da língua brasileira, em nada difere do lado de cá: quanto a isso, sim, as pessoas do lado de lá, do Brasil, estão em perfeita sintonia com as do lado de cá, de Portugal. Finalmente, em suma, estamos uns e outros de acordo quanto a todos os assuntos relacionados com a Língua de cada qual, afinal era (é) facílima — e mais do que evidente — a solução: agora que já não é criança nenhuma, cresceu, desenvolveu-se durante dois séculos, a natureza das coisas segue apenas as coisas da Natureza, a língua do Brasil seguirá o seu próprio caminho, basta que corte de uma vez por todas o cordão umbilical que à força alguns — de lá e de cá — tentaram remendar.
Remendar um cordão umbilical é tão absurdo como banir uma recordação, como rasgar uma carta, como emendar o passado. E emendar o passado é tão impossível como reescrever a História.
(Des)Acordo Ortográfico
Nelson Valente
www.diariodaregiao.com.br, 27.05.21
Quantas vezes na vida você já perguntou: Como se escreve tal palavra mesmo? É com z ou com s? Tem acento? (assim mesmo sem circunflexo, pois o chapeuzinho só vai na cabeça antes de plural), tem hífen? Essas dúvidas sempre existiram e vão continuar existindo, só que o novo acordo ortográfico, que de novo não tem nada, pois começou a ser elaborado há 29 anos, mas só entrou completamente em vigor em 2016, ao invés de ajudar, parece ter atrapalhado ainda mais a escrita.
Quer um bom exemplo? Quando uma criança está fazendo a lição de casa e tem uma dúvida, pergunta para quem? Os pais, é claro. Só que a grande maioria desses pais foi educada na transição do acordo ortográfico, portanto cresceram com as mesmas dúvidas. Aí a solução é dar um “google” e eis que a quantidade de explicações é tão extensa, muitas citando outras regras gramaticais, que geralmente a dúvida não é esclarecida e ainda aumenta.
Claro que em educação nada acontece em curto espaço de tempo, mas a demora e o sentimento de que o Acordo Ortográfico dos países de Língua Portuguesa se tornou uma nau sem rumo está criando gerações com grave déficit de escrita. Quando os jovens são chamados aos concursos públicos, o que, infelizmente, está ocorrendo com frequência cada vez maior, a falta de familiaridade com a norma culta da língua tem levado a resultados desastrosos, como assinalam os famosos Exames de Ordem da OAB. As reprovações acontecem em massa (às vezes o índice é de 80%). Lê-se pouco e escreve-se mal, o resultado só pode mesmo ser deprimente. Isso infelizmente alcança também os exames para o magistério. É fácil imaginar o que ocorre quando o indivíduo se expressa verbalmente, em que as agressões ao vernáculo doem em nossos ouvidos.
O português brasileiro precisa ser reconhecido como uma nova língua. E isso é uma decisão política. A língua é uma força biológica: não se pode modificá-la com uma decisão política. É preciso dizer, com todas as palavras, em alto e bom som: o português brasileiro é uma língua e o português europeu é outra. Muito aparentadas, muito familiares, mas diferentes. Já existe outro sistema linguístico totalmente diferente do português lusitano no português falado hoje no Brasil.
Sabemos que 75% da população brasileira é analfabeta funcional. São 218 milhões de pessoas e, entre elas, estão nossos docentes de língua portuguesa. Não vamos nos iludir. O Brasil não tem tradicionalmente uma política linguística. A difusão do português brasileiro no exterior ocorre quase por inércia, mais pela importância que o Brasil vem assumindo geograficamente, geopoliticamente e economicamente. Portugal, ao contrário, tem uma política linguística, tem o Instituto Camões, com mais de mil professores espalhados pelo mundo todo, enquanto o Brasil tem 40 leitorados. Cria-se aí, já, uma diferença.
Nós que tínhamos de ter uma política linguística mais agressiva, mas temos uma posição de colonizados, de que, se Portugal já está lá, não precisamos ir. Precisamos, sim. Nós somos 90% de quem fala português no mundo e somos a 7ª economia mundial. Portugal, ao contrário, está no fundo do poço, com essa crise horrível que acontece por lá. Nós que temos de investir e brigar pelo nosso espaço, porque as pessoas de fato querem aproveitar as oportunidades que nós oferecemos.
Não dá para impor uma língua de uma hora para outra a um povo. O padrão da língua no Brasil deve ser a língua falada pela maioria da população brasileira contemporânea, que é o português brasileiro. O que ocorre com o dito Novo Acordo Ortográfico é que na verdade Portugal “colonizador” quer colonizar a língua portuguesa. O que ocorre é um conflito entre português de Portugal e português brasileiro nas escolas. Pois quando um aluno diz que não sabe português, na verdade, está dizendo que não sabe as normas da gramática do português ensinado na escola.
A implementação do dito Acordo é simplesmente uma bagunça, é o caos linguístico; é uma desgraça! É a bancarrota da Língua! E a consequência é o caos linguístico que se está verificando nas escolas, na comunicação social, falada/escrita/ouvida e lida. Para que não ocorra um desacordo na nossa língua, quem sabe daqui a alguns anos apaguemos o “português” e fique só o “brasileiro”.
Nelson Valente
Professor universitário; jornalista; escritor
[Transcrição integral de artigo, com o título “(Des)Acordo Ortográfico”, da autoria de Nelson Valente, publicado no jornal brasileirowww.diariodaregiao.com.br em 27.05.21. Destaques e sublinhados meus. Inseri “links” e imagens. Imagem de topo(no artigo): por Pedro Américo – Martins, Lincoln. Pedro Américo: pintor universal. Brasília, Federal District: Fundação Banco do Brasil, 1994 ISBN 85-900092-1-1, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=20218656. Imagem de topo de: VortexMag (Brasil).]
[Nota: quando os autores são brasileiros é aqui conservada (evidentemente) a ortografia dos originais.]
[*** Outro nome incontornável, de entre os oposicionistas-independentistas brasileiros, é também o do professor, doutor em filologia, linguista e escritor Marcos Bagno.]