«O tal Acordo Ortográfico serve apenas para semear grandes desacordos». Exacto. É para isso mesmo que serve. Exclusivamente. “Para semear grandes desacordos” será porventura uma formulação tímida, soa quase como se o autor deste texto estivesse a pedir desculpa pelo atrevimento, mas, enfim, não se pode ter tudo: no fundamental, o que o dito autor adianta — com alguma surpresa sua mas sem surpresa nenhuma para nós outros, que já conhecemos de ginjeira a patranha da “língua universáu” — colide de frente e em cheio, como dois camiões TIR numa picada, com pequenos pormenores como, por exemplo, o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos (CDADC).
Esta legislação protege primordialmente a integridade da obra publicada; ou seja, para os leigos em matérias legais ou para os que se aborrecem sempre que lhes cheira a “trapalhadas” jurídicas, a edição, a composição tipográfica e a impressão de todos os exemplares de uma obra têm de respeitar na íntegra o original (equivalente, para todos os efeitos, a manuscrito).
Está absolutamente vedado, por conseguinte, a qualquer editor, o direito de modificar seja o que for (ortografia, sequência, cronologia, palavras, expressões, destaques, sublinhados, pontuação, sinais gráficos, qualquer didascália ou nota) no original de uma obra escrita, seja esta literária ou não.
A não ser, evidentemente, quando se trata de uma tradução. Ora, o facto é que qualquer livro brasileiro tem de ser literalmente traduzido para Português, no Brasil, assim como carecem de tradução as obras cujo original esteja escrito em Inglês, Francês, Espanhol, Checo, Farsi, Mandarim ou Catalão, por exemplo. Outro tanto é feito no “país-Continente”, onde obras de Fernando Pessoa, Eça de Queirós ou José Saramago, também por exemplo, são literalmente traduzidos para a língua brasileira.
Aliás, no Brasil não apenas traduzem as obras de Português para brasileiro, como chegam até ao ponto de inserir legendas no peito de qualquer tuga quando ele abre a boca perante uma câmara de TV e fala usando aquela estranha Língua que para os brasileiros é incompreensível e que entendem ainda pior, uma palavrita aqui, outra acolá, do que o Espanhol ou o “americano”. As três são línguas estrangeiras — logo, alienígenas — com algumas semelhanças entre si (Francês é que “pricisa naum”) e que de vez em quando parecem-se vagamente com o brasileiro, enfim, dá para desenrascar se “o cara” for de férias para a Florida, Madrid, Buenos Aires ou o Algarve.
As “aberrações” que Lira Neto refere, à imagem e semelhança daquelas que citam alguns portugueses que se dizem “anti-acordistas”, constituem o fulcro de um dos truques de prestidigitação inventados por Malaca y sus muchachos: nos casos em que anteriormente ao “acordo” em Portugal (e PALOP) se grafavam sequências consonânticas (“corrupção”, “espectador”, etc.) que aqui são mudas mas no Brasil são articuladas, então — dizia a firma Malaca & Bechara e dizem ainda hoje alguns indígenas da tugalândia — há que repor cá essas consoantes “mudas” (para nós), sonoras no Brasil.
E, à boleia dessa vigarice, pretende-se que uma putativa CTR (Comissão Técnica de Revisão) apresente mais essa imposição brasileira como sendo outra “cedência” do Brasil. Este expediente permitirá que a cacografia brasileira imposta pelo AO90 passe de 98% para um número redondo, ou seja, 100%; nisto consistirá o “trabalho” dessa CTR, para cujas cadeiras e mordomias inerentes já se vai perfilando uma longa fila de intelectualóides tachistas, passe a redundância.
A forma “desprendida”, displicente ou “à desprezo” como este autor refere a adulteração praticada nas suas obras editadas em Portugal — imitando o mercenarismo de alguns vendidos tugas que impingem livrecos estropiados — vem comprovar dois factos: primeiro, que, ah, ganhar a vida custa muito, toca a vender livros, o que é preciso é pategada que os compre, pouco ou nada importa que mexam na escrita, estejam à vontade, alterar um original é ilegal… a não ser que o autor se esteja nas tintas; segundo, que, de entre todas as tangas com que tentam impingir o AO90 a tenrinhos, a “facilidade de publicação” (o mercado de livros “globáu”) não passa de uma das maiores de todas as fraudes apregoadas pelos escritores e editores acordistas — essa repelente borra de batido de bananas.
O tal Acordo Ortográfico serve apenas para semear grandes desacordos
Lira Neto“Diário do Nordeste” (diariodonordeste.verdesmares.com.br) (Brasil), 25.05.21
Os livros publicados por editoras brasileiras costumam trazer, na página de créditos, a informação de que foram editados conforme o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa — tratado internacional que, firmado em 1990, por Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e, posteriormente, Timor Leste, entrou em vigor em nosso país a partir de 2009. Por isso não deixa de ser curioso que obras de autores brasileiros precisem ser “adaptadas” ao serem publicadas em Portugal.
Acabo de passar por essa experiência insólita. Arrancados da terra, meu trabalho mais recente, começa a chegar na próxima semana às livrarias lusitanas. Ao ler as provas da edição portuguesa, constatei que muitas palavras estão grafadas de forma distinta da edição original. Onde escrevi “trajetória”, “incômoda”, “retangular” e “rebatizado”, por exemplo, os leitores lusos lerão, respectivamente, “trajectória”, “incómoda”, “rectangular” e “rebaptizado”.
Minha estimada e criteriosa editora em Lisboa, Eurídice Gomes, chefe da Divisão Literária do braço português do grupo editorial Penguin Random House, já havia me avisado que tal iria ocorrer. É uma praxe da casa, pelo menos para os gêneros de não ficção, ela me explicou. Respondi-lhe que em nada isso me incomodava, já que o propósito — óbvio e perfeitamente justificável — é proporcionar maior legibilidade ao texto para o público local.
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