Dia: 17 de Junho, 2021

Portsoc

Pretendia-se que quando a Novilíngua fosse adoptada de uma vez por todas e a Velhalíngua esquecida, um pensamento herético  fosse literalmente impensável, pelo menos na medida em que o pensamento depende das palavras. [George Orwell, “1984”]


Como anteriormente aqui disse, e repito, e que me perdoe pelo calão algum mais comichoso dos três leitores deste manual de diatribes contra o AO90 (e outros detritos), estou-me altamente nas tintas para a cagança dos idiotas profissionais que abusam da Língua Inglesa. Por regra e definição, essa pandilha é constituída por tecnocratas que pouco ou nada sabem dizer (e muito menos escrever) em Inglês (e muito menos em Português), além de jargão técnico, tipinhos com uma pronúncia desgraçada (sotaque das Amoreiras, digamos), yuppies do século XXI cuja “pinta” de lorpas se topa a léguas. Enfim, que se danem os inguelishes e que se inglixe a jactância.

Esse estranhíssimo fenómeno (tipos que tentam impressionar a pategada com “buéda” tecnicismos no original) poderia interessar alguma coisinha caso tivesse a ver com assuntos sérios em geral, como a Ortografia, a Gramática portuguesa, a História de Portugal, o nosso património cultural, a independência nacional ou a soberania que estrangeiros nos sonegaram; ou seja, com o “acordo ortográfico”.

O AO90 contém igualmente algo de soluços de vaidosos e muito de tiques de autoritaristas, além de outro tanto de radical imbecilidade, porém é caso único, uma hecatombe que ameaça não deixar pedra sobre pedra dos nossos castelos no ar e apagar para todo o sempre o mais ínfimo vestígio de tudo o que prezamos, valorizamos e, em suma, somos; aquele horrendo crime de lesa-inteligência pretende derrubar todos os que, durante novecentos anos, construíram o que a última geração de estrangeirados ameaça abrasileirar.

No processo de aniquilação em curso, pretendem eles substituir a Língua portuguesa pelo brasileiro utilizando a táctica da novilíngua, isto é, a invenção literal de uma nova língua para eliminar a existente; isto não implica apenas chamar os bois por outros nomes, trata-se de reescrever a História e de “reformar” o próprio pensamento: conceitos, idiossincrasias, ideias simples ou raciocínios complexos, anseios individuais ou colectivos, devaneios ou desejos e mesmo os erros, as falhas, as faltas, os equívocos, as coisas hilariantes e as tristes, até a língua em que sonhamos; tudo, rigorosamente tudo será alterado, adulterado, “corrigido” segundo os sacros mandamentos dos oficiais do Partido, os donos da língua e, portanto, da vontade dos proletas — cujas funções consistirão exclusivamente em gerar outros escravos do Grande “país-Irmão”.

Proibir a língua “velha” (a velhice é já um demónio ao serviço da Nova Igreja) faz parte, obviamente, deste hediondo plano de terraplanagem linguística e cultural através da massificação da catatonia e contando já com o geral estado comatoso que caracteriza a indígena chusma de “pensadores”. As patranhas colossais, as mentiras descabeladas propaladas por alguns traidores e vendidos portugueses, contando com a nacional apatia (uma patologia ancestral), tentam impingir a todo um povo de descendentes de colonizadores a cacografia e, em última análise, a língua dos ex-colonizados. Caso único no mundo, evidentemente, “fundamentado” nesta coisa extraordinária: eles são 210 milhões e nós somos 10 milhões. Ou seja, a língua é só uma questão de contar cabeças; mesmo que os novos colonos provenham de um país a 7.500 km de distância, com o oceano Atlântico de permeio, mesmo que o Brasil seja uma ex-colónia portuguesa independente desde 1822 (e Portugal desde 1143), mesmo que do lado “dji” lá a pronúncia (não confundir com “sotaque”) seja para nós alienígena, a sintaxe abstrusa e a cacografia completamente anárquica, pois ainda assim uma mão-cheia de alucinados — isto é, de gulosos vigaristas — insiste na “adoção” por Portugal do brasileiro como Língua nacional, extinguindo em simultâneo o Português.

George Orwell era um inglês que escrevia, evidentemente, em Língua Inglesa. A sua obra mais genial é, sem dúvida, Nineteen Eighty-Four (1984). Isto sim, é Inglês que se pode (e deve) citar até à exaustão.

Nem sempre utilizar expressões inglesas serve só para impressionar (pategos). Há coisas que fazem parte da Língua em que foram criadas mas que acabam por se tornar património do universo inteiro.

Como a austera, apagada e vil tristeza de Camões, Hamlet (Shakespeare) reflectindo sobre to be or not to be ou, pela inversa, contrariando a sentença lapidar de “1984”,

Victory is possible

Os malefícios de um provincianismo mental acrítico e fascinado pelo novo

Nem a TLEBS, com as suas fastidiosas e aberrantes descrições, nem o AO 90, com os “seus erros, imprecisões e incoerências”, propiciam uma reflexão sobre a Língua.

Maria do Carmo Vieira
“Público”, 11 de Junho de 2021

 

O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.
Fernando Pessoa

 

Regresso a um tema que me é caro e sobre o qual me tenho repetido porquanto, a meu ver, permanece o absurdo que o caracteriza, bem como a doença de que padece e à qual se refere a epígrafe escolhida. Refiro-me à Reforma curricular de 2003, cujo espírito e metodologias se mantêm porquanto “o princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro”, o que ainda não aconteceu.

Não posso deixar de confessar que o presente texto nasceu do livro do Professor Jorge Calado (IST),Limites da Ciência (2.ª edição, 2021), da Fundação Francisco Manuel dos Santos, “redigido com o Acordo Ortográfico de 1945”, conforme se lê em nota. Será imprescindível transcrever as palavras do autor, a propósito de “A Língua e a linguagem”, para evidenciar a relação com a Reforma de 2003 acima referida e entusiasticamente anunciada. Eis a transcrição, longa, mas imperiosa: “Alguns cientistas, isolados nas suas torres de marfim, pensam que, se ninguém os entende, fazem figura de seres supremamente inteligentes. A verdade é que a construção de uma linguagem hermética, entendida por poucos e benéfica para nenhum, não passa, muitas vezes, de mais um sintoma de impreparação. A nudez da ignorância disfarçada com o manto espesso do artifício. […] A snobeira do falar difícil e pseudocientífico encontrou terreno fértil nas humanidades. […] que dizer da relativamente recente (2004) substituição da velha Nomenclatura Gramatical Portuguesa dos artigos, substantivos, adjectivos, verbos, pronomes, advérbios, preposições, etc., pela pretensiosamente científica Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário (TLEBS), entretanto suspensa? Uma salgalhada de variáveis, determinantes, auxiliares aspectuais e modais e preciosidades como ‘Um Nome tem um funcionamento não contável quando necessita de um suporte (discretizador ou enumerador) que o discretize ou enumere.’ Ciência, isto?”

Haverá que esclarecer o Professor Jorge Calado que a TLEBS não foi suspensa, apenas “corrigida” (imagine-se o desconforto do vocábulo para os “cientistas” que a trabalharam) continuando activa nos seus “disparates”, em programas e exames de Português. Na tentativa de apagar a polémica e o desastre intelectual que representou, a TLEBS transfigurou-se em Dicionário Terminológico, sendo seu obstinado mentor o Professor João Costa, de há longa data Secretário de Estado da Educação, e obviamente um fervoroso impulsionador da Reforma de 2003 da qual se salienta, no que à disciplina de Português diz respeito, a apologia de textos funcionais, o menosprezo pela Literatura, mormente pela Poesia, o amaldiçoamento de aulas expositivas, bem como do uso da memória e a pseudo-novidade da “Reflexão sobre a Língua” que a TLEBS proporcionaria, segundo “explicaram”, em acções de formação. E acções de formação porquê? Pela constatação da impossibilidade de os professores compreenderem as “inovadoras” descrições terminológicas. Eu própria assisti apenas a uma sessão, não estando inscrita, e foi o suficiente. Perante uma dúvida, a formadora repetiu vezes sem conta a mesma explicação, com o mesmo vocabulário, aberrante e impenetrável, apontando no final, e ostensivamente, a minha “impreparação”.
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