Dia: 21 de Junho, 2021

Os Cinco

Mais um artigo sobre “o uso e abuso” de anglicismos. A coisa já cansa, sejamos francos, mas não deixa de ser uma curiosa espécie de fenómeno… anti-linguístico, digamos assim. De facto, e nisso reside a sua “curiosidade”, a questão, sendo radicalmente contra-producente, é por regra apresentada agora (porquê agora?) como a única maleita que afecta a Língua Portuguesa; ou seja, igorando olimpicamente (quando não ostensivamente) o AO90 — este sim, o verdadeiro cancro que vai minando a nossa Língua nacional.

A sanha extrema com que os agentes ao serviço das negociatas brasileiras vão destruindo a Língua Portuguesa é uma excepção no âmbito do movimento mundial pela instauração obrigatória da Novilíngua, se bem que os princípos basilares e as técnicas de demolição sejam as mesmas, num caso e no outro: adulterar a Língua, seja ela qual for, implica a alteração radical do raciocínio e, por consequência, do próprio indivíduo, o que incluiu a revisão da História e a liquidação sumária da consciência. Disto mesmo é exemplificativo o mais recente banimento das obras de Enyd Blyton; sem necessidade de quaisquer juízos de valor, a verdade é que a rotulagem desta autora como “racista e xenófoba”, incluindo-a numa extensa lista de autores “inadmissíveis”, implica o apagamento de boa parte da nossa memória, especialmente de períodos da puberdade e da adolescência de milhões de leitores em todo o mundo.

A imposição selvática da linguagem “politicamente correcta” implica igualmente a proibição, a erradicação, o abate de palavras — mesmo ou principalmente no quotidiano, por fluidez discursiva, sem qualquer carga ideológica ou política — pressupõe um tipo de empobrecimento que, por indelével, equivale a um ditame tão binário quanto imbecil: isto podes dizer, aquilo não podes. 

E não podes escrever e não podes sequer pensar.

Banir o pensamento é afinal possível. Basta adulterar as palavras, tornar obrigatória a obsolescência de conceitos e a caducidade da memória, extinguir por decreto o passado de um  indivíduo, de um povo, de uma nação.

Evidentemente, a neo-colonização de Portugal (e PALOP) pela língua brasileira (AO90) é em tudo semelhante, a começar pelos métodos e processos, à selvática imposição do pensamento único através da “destruição das palavras”, para usar uma expressão do próprio Orwell, o visionário que previu o horror agora tornado realidadePorém, mesmo provindo ambas as formas de ditadura mental da mesma “escola” de estupidificação em massa, e embora sejam similares os métodos e as respectivas finalidades, entre a obrigatoriedade da Novilíngua e a imposição da língua brasileira existem algumas diferenças de pormenor.

Como, por exemplo, retomando o fio à meada, alvos errados e tiros falhados: atirar sobre “o uso e abuso” da língua “cámone” é um exercício de puro (e vesgo) laxismo, ou coisa ainda pior, dependendo da figura que vocifera a sua espécie de nacionalismo oral e a sua estranha concepção de purismo linguístico, visto que tais pruridos puristas são tão ineficazes como eliminar a estupidez por decreto e tão inúteis como engessar as pernas a alguém que está com uma valente gripe.

Em suma, o “tiro ao anglicismo” está, ao contrário do que sucede no “tiro ao boneco”, nos arraiais, infalivelmente condenado a acertar sempre ao lado.

Acresce que alguns destes (aparentemente) azelhas do tirinho nem mesmo tentam disfarçar que usam uma espingarda torta: o seu verdadeiro alvo é fazer passar o AO90 por “facto consumado”, algo com que as pessoas normais já nem devem ralar-se, está feito, está feito, agora (porquê agora?) aguentem-se à bronca. Esta táctica de desvio de enfoque, truque manhoso e aldrabice velha e relha que os vendidos aprendem no seu 1.º ano de formação intensiva, socorre-se primordialmente do falso pretexto “anglófono” mas apresenta outras variantes, diversas manobras de diversão para os mesmos fins: por exemplo, listas e mais listas de “aberrações” (como se o AO90 não fosse, todo ele, de cabo a rabo, uma aberração), “discussões” amenas, tertúlias e “mesas-redondas” em vários órgãos de comunicação social, textículos sobre assuntos “linguísticos” sortidos, qual deles o mais irrelevante e frívolo. 

Nesta acepção, quem, ainda que movido de boa-fé e de todo inocente, colabora em tais manobras acordistas, ou quem às ditas confere sequer um mínimo de credibilidade, então estará — lamentavelmente, tristemente — a ser conivente de alguma forma com tais expedientes, com tais vendidos, com tal traição.

Bem, as papas e os bolos não enganam todos.

Pode bem ser que estejamos nós outros utilizando uma simples espada mental, pode até essa espada estar já romba, ou até quebrada de tanto golpear armaduras de coriáceos acordistas, mas não será por isso que deixaremos de a empunhar e contra eles investir, agora como sempre.

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Perdão? Final demasiadamente lírico?

Ah, OK, não vi o sinal de STOP. Oops, “STOP” é Inglês, não posso. Oops, “oops” também.

Como diz “em português” a nossa juventude nas redes anti-sociais, LOL.

 

O vírus do anglicismo

Joaquim Miguel de Morgado Patrício
Centro Nacional de Cultura, 18.06.21

 

Saber inglês é hoje uma ferramenta necessária para quem estuda, investiga, trabalha, viaja e tem de ter acesso ao mundo globalizado. Em todas as épocas há uma língua franca, sendo a de hoje o inglês. Os avanços técnico-científicos permitiram uma globalização que possibilitou uma maior proximidade, em que o inglês foi promovido a língua dominante nas empresas que controlam a produção, beneficiando-o nos impressos e folhas de instruções, nas etiquetas, caixas, distribuição, transportes, publicidade, ou seja, em todas as apresentações e disponibilização do produto desde a origem ao consumidor.

Esta permissividade tem condições especialmente favoráveis em países que têm falta de autoestima ou uma fraca imagem de si em termos económicos, onde o estrangeiro associado aos mais ricos é que é bom, sinónimo de culto, moderno, desenvolvimento e prestígio. Por vezes há ausência de legislação obrigatória quanto ao uso da língua materna ou oficial nas instruções e nos rótulos dos produtos importados. E quando há legislação, nem sempre os entes competentes a fazem cumprir, sendo injustificável que se invoquem dificuldades na sua implementação ou fiscalização. Não fazer cumprir uma lei também é uma opção e estratégia, tida como uma mera exigência do politicamente correcto, sem conteúdo prático.

Por questões de imagem e de redução de custos, a língua da empresa é a da casa-mãe, que não se compadece com traduções, com perda de tempo e de dinheiro, o que é agudizado pelo facto de, no actual momento económico, a sua sede ter a maior probabilidade de ser num país anglófono, ou que tenha tão só o inglês como língua de comunicação global.

Opta-se quase sempre pelo idioma tido internacionalmente como mais conveniente, o das empresas multinacionais, em que a língua da empresa é a do país onde está a inovação criativa e o dinheiro, sendo a língua do poder.

Esta imposição do inglês como língua económica, cultural e política, é tida, por vários autores, como imperialismo linguístico e um vírus do anglicismo.
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