O tubarão fantasma

«Sucedeu que as instruções do Ministério das Relações Exteriores à Delegação do Brasil na ONU chegaram por telegrama, causando grande impacto. O embaixador chefe da missão recusou-se a pronunciar o voto constrangedor, o seu número dois teve a mesma atitude. Sobrou um, então, jovem diplomata, marxista conhecido, António Houaiss, que declarou a surpreendente posição do Brasil, sob aplausos dos países da Cortina de Ferro, incluindo Cuba. Houaiss foi afastado do Itamaraty quando da Revolução e dedicou-se à grande obra que foi um dicionário, em associação ao filho do, então, chanceler Afonso Arinos.» [1963 e o voto do Brasil contra Portugal – Jornal “O Diabo” (jornaldiabo.com)]

Hydrolagus colliei (Chimaera), peixe cartilaginoso; nome vulgar em Português: quimera ou tubarão-fantasma.A chamada “lusofonia” não existe. É uma quimera. Ou será, quando muito, wishful thinking (passe o barbarismo). Embora possuindo o mesmo ar sinistro do peixe homónimo e, como este, navegue na total obscuridade das profundidades oceânicas, a “lusofonia” não cumpre qualquer papel na cadeia trófica — ou seja, não serve rigorosamente para nada na cadeia alimentar (e nas outras) — nem executa a mais ínfima das funções no que à Língua Portuguesa diz respeito. “Lusofonia” é pura entropia, portanto, algo que, por completamente inútil e sem o menor significado, apresenta num embrulho palavroso o caos da ideia fixa.

No entanto, como sucede neste caso, ainda há quem se agarre com unhas e dentes a essa espécie de quimera (não o peixe, a esperança vã), argumentando pontualmente com surpreendente coerência sobre essa “piquena maravilha” que será (seria) uma “mundovisão” em que toda a gente, “do Minho a Timor” e arredores (incluindo aquele piqueno enclave a que chamaram Brasil) falasse uma espécie de “português universal”.

Baseando-se em alguns dos falsos pressupostos que Houaïss, esse benemérito “promotor” do AO90, inventou para vender os seus calhamaços (e logo ele, valha-me Deus, um fulano tão desprendido, isto é, nada agarrado ao vil metal, um académico marxista, tão desapegado dos bens, terrenos, propriedades, contas bancárias e tudo, um tipo tão fixe, ganda bacano), os “lusofonistas” insistem nos méritos da causa lusofonista com denodo e dedicação extremas.

Afinal, se virmos bem, isto é, se nos artilharmos com todo o arsenal de condescendência do planeta, a tal “lusofonia” até não é assim tão má ideia. Coisa antiga, aliás, que durou até 1975 e finou-se de vez em 1999; a ex-colónia de Vera Cruz não conta, pelo menos desde 1822, neste âmbito, visto ter-se tornado independente sob a forma de Império, com língua própria e com um tremendo ressaibo para com Portugal, “a terrinha”.

Claro que na demanda de uma hipotética “expansão”, torna-se difícil imaginar uns quantos voluntários daquilo a “promover” e a “difundir” a Língua nas ruas de, por exemplo, New York, Paris, Ouagadou, Calcutá ou Pyongyang. Assim como não será muito fácil imaginar a “lusofonia” fazendo notar aos mercados financeiros internacionais o “valor económico da língua” e as respectivas “oportunidades de negócio”.

Pôr uns vendedores a chatear peões em grandes cidades do mundo, assim como quem impinge “time sharing” a transeuntes, bem, uma coisa dessas correria sérios riscos de se tornar um bocadinho ridícula e ligeiramente estúpida.

Quanto aos negócios, pois tende paciência, senhores lusofonistas, isso já está tudo tomado: o Brasil agradece, está claro, se bem que pela calada e em absoluta surdina, e até parece que nos estão fazendo um grande favor quando passam a ocupar, à conta do AO90 e sob o disfarce da CPLP, as nossas posições económicas (e políticas e culturais) um pouco por todo o mundo, nos países e territórios a que outrora aportaram nossos maiores; “do Minho a Timor”, sim, passando por Macau (China) e em breve por Goa (Índia), o novo império dos negócios brasileiros segue pujante e das migalhas sobrantes vão debicando os vendidos tugas, esses galináceos com muito cócórócó na garganta e imenso cocó na cabeça.

Evidentemente, aos tais lusofonistas — alguns deles anti-acordistas convictos — jamais terá ocorrido que a sua “lusofonia” acaba afinal por fazer o jogo (e, em parte, o trabalho) dos acordistas, contribuindo com o seu entusiasmo “lusofónico” para encobrir as negociatas da nomenklatura becharo-malaquenha, usando a suposta irmandade entre um pigmeu com História e um monstro nascido ontem para “justificar” a “liderança do Brasil” no processo de demolição da Língua Portuguesa.

Não lhes podem ser assacadas culpas, pelo menos aos inocentes bem intencionados, assim como aos próprios brasileiros também não, se já não hoje por hoje, pelo menos quanto à genese e ao lançamento da marabunta cacográfica; esta sucedeu por absoluta e exclusiva responsabilidade dos agentes tugas a mando da oligarquia dominante, o “centrão” político-partidário. Foram estes tipos quem, perante a estupefacção e a incredulidade dos brasileiros, surpreendidos por tanta e tão asquerosa bajulação tuga, delinearam toda a tramóia, montaram a estratégia da mentira matraqueada e venderam, em suma, ao próprio Itamaraty, o esquema para dissimular os futuros negócios da China (e de Angola). Está claro, do ponto de vista da tradição  brasileira, “tá tudo légau”, valeu, primeiro riram-se dos tugazinhos graxistas (os “puxa-saco”, em brasileiro) mas depois começaram a abrir a pestana e hoje em dia é o que se vê, estão por todo o lado e em tudo fazem comércio, traficam influências e trocam “favores” (via CPLP, por exemplo), vão paulatinamente empochando o “bolo” lusófono — sucessivas camadas de História que nasceram do rasto das caravelas.

A Lusofonia não precisa de ser salva, apenas de ser desadiada (II)

Renato Epifânio
jornal “O Diabo”, 17.06.21

 

 

Espremido o texto, porém, a grande questão que ressalta é, de novo, a questão do Acordo Ortográfico e da relutância portuguesa em segui-lo, o que merece do jornalista e escritor brasileiro a seguinte sentença: “está claro que o português não deseja se tornar uma língua sem centro, com 270 milhões de falantes e algumas variedades nacionais. Chega de perder tempo!”.

É verdade que no Brasil essa relutância portuguesa em seguir o Acordo Ortográfico não é de todo compreendida, como eu próprio já pude testemunhar. Em Maio de 2018 – há precisamente três anos –, coordenei, como Presidente do MIL (Movimento Internacional Lusófono), um debate sobre as “as visões da Lusofonia no Brasil”, integrado num Encontro Científico promovido pelo Instituto de Filosofia Luso-Brasileira na cidade brasileira de Mariana, em Minas Gerais. Pois bem: perante um público particularmente culto e qualificado, a grande questão que emergiu ao longo do demorado debate foi precisamente essa: por que razão em Portugal havia tanta relutância em seguir o Acordo Ortográfico? E se essa relutância não deveria ser interpretada como uma atitude anti-lusófona da parte de Portugal, desde logo em relação ao Brasil?

Esse sentimento é pois real, ainda que, como procurei então aduzir, a conclusão seja, também aqui, “manifestamente exagerada”. Sim, é verdade que há em Portugal uma manifesta relutância em seguir o Acordo Ortográfico. Mas não é de todo verdade que isso deva ser interpretado como uma atitude anti-lusófona da parte de Portugal, desde logo em relação ao Brasil. Como sempre defendi, a Lusofonia não depende de nenhum Acordo Ortográfico como condição necessária – por mais que este pudesse ser útil, em teoria, assim ele tivesse cumprido a sua promessa de uma real “uniformização ortográfica” (o que ficou muito longe de acontecer, como é sabido). E há em Portugal muitos exemplos de pessoas que, sendo contra o Acordo Ortográfico, não são por isso contra a Lusofonia. Bem pelo contrário.

Extravasando este “irritante diplomático”, há de facto muito a fazer, como refere Rui Tavares, a começar pela dinamização da própria CPLP, que nem sequer face à tragédia em curso no norte de Moçambique tem dado uma resposta à altura (ainda que aí as responsabilidades maiores estejam a montante). Quanto ao mais, as ideias que lança são em geral boas, ainda que nem todas originais. Apenas um exemplo – precisamente a propósito do artigo de Rui Tavares, António Braz Teixeira, Presidente do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira e ex-Vice-Presidente da RTP (entre muitos outros cargos relevantes que ocupou), recordou-me que, em 1987, ele próprio teve a iniciativa de promover uma TV Cultura da CPLP, tendo sido até fundada, em 1991, em Cabo Verde, a Organização das Televisões de Língua Portuguesa, com Estatutos aprovados e Órgãos eleitos. Trinta anos depois, o projecto está ainda por concretizar. Caso para dizer: a Lusofonia não precisa de ser salva – apenas de ser desadiada… ■

[Transcrição integral. Destaques, sublinhados e “links” meus. Foto de Pyongyang, imagem de: Wikipedia.]
[Agradecimentos a Luís Mendes pela ajuda (sobre peixes).]

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