Gente que não tem noção [por Rui Valente]

 

Gente que não tem noção

 

No já longo percurso da ILC-AO [Iniciativa Legislativa de Cidadãos contra o Acordo Ortográfico] temos falado do AO90 como um “corpo estranho” no seio da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Se o objectivo da CPLP é aproximar os diversos povos que, de algum modo, foram tocados pela Língua portuguesa, faz todo o sentido que cada povo preserve, nesse encontro, a variante da Língua com que se identifica e que sente como sua.

Acontece que, em rigor, o “Português universal” do Acordo Ortográfico não só não é universal como não é mesmo de ninguém. Como é possível promover-se a troca de experiências ou o verdadeiro conhecimento do “outro” se a própria Língua utilizada, pretexto e mote desta ligação, é adulterada pelos participantes? Imagine-se um encontro internacional de gastronomia em que todos os intervenientes, independentemente da sua origem, apresentam aos congéneres a “sua” receita de pizza.

A frase lapidar de Sérgio Rodrigues — “o Acordo Ortográfico é gasolina no fogo do anti-brasileirismo em Portugal” — é apenas mais um reflexo deste trágico equívoco em que chafurda o Acordo Ortográfico.

Através das lentes embaciadas do AO90 não é possível conhecermos este “outro” que temos diante de nós — torna-se difícil, desde logo, percebermos o que representa para esse “outro” o próprio Acordo Ortográfico.

Neste campeonato da “falta de noção”, os brasileiros dão cartas. É lendária a intervenção de Amini Hauy, doutora em Filologia e Língua Portuguesa no debate sobre o Acordo Ortográfico promovido pela Câmara dos Deputados do Brasil: a propósito das “cedências” do Brasil no Acordo Ortográfico a emérita professora da Universidade de São Paulo ia enumerando(minuto 53): perda do acento nos ditongos (como “européia”), 1-0 para Portugal; perda do acento em “pára”, 2-0 para Portugal…

É claro que nada disto faz sentido. As “cedências” do Brasil no Acordo Ortográfico são acentos de que o país já tinha abdicado em 1945 e correspondem, na prática, a uma acentuação “que já ninguém usa”, para citar outro linguista brasileiro. Aliás, apresentar a perda do acento em “pára” como uma cedência do Brasil é particularmente caricato, tendo em conta que é em Portugal que a falta desta diferenciação se faz sentir.

Mas o que importa destacar no discurso de Amini Hauy é a retórica de confronto. É certo que a professora abomina o Acordo Ortográfico. Mas consegue, no meio de muitas críticas certeiras, introduzir a espantosa pirueta de apresentar o AO90 como prova do neo-colonialismo português.

De facto, é possível que alguém, no lado português, tenha cometido o absurdo de pensar o AO90 como forma de mantermos “algum controlo” da Língua. Mas é preciso muita falta de noção, no lado brasileiro, para percepcionar a aplicação do Acordo Ortográfico como uma imposição portuguesa e, como tal, neo-colonialista.

De forma mais moderada, o próprio Sérgio Rodrigues incorre nesta falta de noção, quando diz que, resistindo ao AO90, os portugueses recusaram a ideia de um “Português sem centro”. Só um brasileiro muito centrado em si próprio poderia acreditar que o AO90 iria ser visto como “coisa neutra” em Portugal. Além do Brasil, Portugal é o único país onde a Língua portuguesa é Língua materna. Qualquer português minimamente ciente das suas raízes sabe que o AO90 implicaria sempre um rude golpe na nossa identidade. Mas, na prática, a sua aplicação está a resultar num cenário ainda mais desastroso: à boleia da ortografia, intensificou-se a pressão sobre outras características identitárias do Português Europeu, como o nosso vocabulário e a nossa sintaxe. Na prática, a aplicação do AO90 em Portugal tem resultado na terraplanagem pura e simples, do Português Europeu, seguido da sua substituição pelo Português do Brasil.

Do ponto de vista da ortografia e do vocabulário, a meia dúzia de “peculiaridades” que se quis preservar (“facto” em vez de “fato” ou “aplicação” em vez de “aplicativo”) é de tal modo irrisória que não resiste à enxurrada.

Na reportagem que motiva o texto original de Sérgio Rodrigues dá-se conta de uma realidade em que brasileiros altamente qualificados vêem o seu trabalho reconhecido noutros países europeus, mas descartado em Portugal. “Para que serviu o Acordo Ortográfico, afinal”? Boa pergunta.

O facto é que nenhum brasileiro pensaria chegar a França ou à Alemanha, por exemplo, e singrar no mercado de trabalho escrevendo e falando em Português do Brasil.

Mas, em Portugal, graças à ilusão de unidade promovida pelo Acordo Ortográfico, esse desiderato parece ser possível. E as tais “peculiaridades”? Valerá a pena a diáspora brasileira em Portugal aprender, pelo menos, essa meia dúzia de excepções? Bem… para quê? Quando nós próprios enchemos o Diário da República de “fatos”, quando permitimos que empresas de “streaming” legendem o seu catálogo num “Português” que é afinal Português do Brasil, porque há-de um brasileiro preocupar-se com essas miudezas? Foi assim que, quando há dias consultei uma empresa que promove visitas guiadas ao Pico, nos Açores, tive de preencher um formulário de “registro”.

Estarei a ser picuinhas? Para o colunista Rui Tavares, sem dúvida. Não foi por ler “registro”, “usuário” ou “setembro” que deixei de perceber o que me foi pedido. O que importa é que a gente se entenda, não é verdade?

Mas… quem é o colunista Rui Tavares para decidir o que é e não é importante?

ILC-AO

Diz-nos a experiência que, hoje em dia, sempre que há contacto entre Portugal e o Brasil, o esforço de comunicação e de inteligibilidade é quase todo nosso — porque vemos novelas, porque os nossos filmes não são dobrados, porque a nossa escolaridade não será assim tão má, os portugueses têm geralmente mais “ouvido” e estão quase sempre mais capacitados para fazer as despesas do entendimento.

Do nosso ponto de vista, o Acordo Ortográfico não tem outra utilidade que não seja facilitar ainda mais a vida dos brasileiros em Portugal. Não admira, portanto, que, volta e meia, alguém diga “assim, não”. E daí a “acusação” de anti-brasileirismo ou xenofobia.

Mas não tenhamos ilusões. Num mundo feito de acções e reacções, este recém-descoberto anti-brasileirismo não é mais do que a resposta possível ao gigantesco acto de anti-portuguesismo que constituiu o Acordo Ortográfico. E, disso, os brasileiros não têm culpa.

Pela parte que me toca, sempre me senti próximo da cultura brasileira. Na infância, lia “O pato Donald” da Editora Abril. Em adulto li todo o teatro de Nelson Rodrigues, todas as biografias de Ruy Castro. De Manoel de Barros a Ruben Fonseca, de Caetano Veloso a Chico Science, do MASP à terça-feira aos teatros da Praça Roosevelt, a cultura do Brasil resiste a tudo e é incontornável. Sempre gostei da ideia de falarmos duas variantes da mesma Língua, bebendo do “outro” aquilo que mais nos encanta. Mas há uma diferença abissal entre uma proximidade que é querida pelas duas partes e a situação actual, em que o “outro” nos é imposto em doses cavalares, sem hipótese de escolha e em detrimento da nossa própria identidade.

Se a única hipótese de retomarmos o controlo da nossa variante da Língua — e o nosso amor-próprio enquanto portugueses — for a separação oficial das duas variantes, então, obviamente, prefiro a separação. Eis aqui, finalmente, um resultado concreto do Acordo Ortográfico!

Chegados a este ponto, para os movimentos independentistas brasileiros a minha mensagem só pode ser esta: andem lá com isso! E se os rótulos de “neo-colonialistas” ou de geradores de “preconceito linguístico” ajudarem, venham eles.

Mas depressa! — não vá algum iluminado do Acordo Ortográfico lembrar-se de manter em Portugal a ortografia do AO90, mesmo quando já não houver (oficialmente) acordo algum.

Rui Valente

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2 Comments

  1. António Pascoal

    Belíssimo texto. Eficaz e sem floreados.
    Sem espinhas. Por favor, escreva para jornais. Isto é imprescindível.
    Grande abraço.

    1. António Pascoal, muito obrigado pelo comentário e pelas suas palavras, que não mereço. Limitei-me a dizer o que me vai na alma sobre este infeliz Acordo Ortográfico.
      Abraço,

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