Portsoc

Pretendia-se que quando a Novilíngua fosse adoptada de uma vez por todas e a Velhalíngua esquecida, um pensamento herético  fosse literalmente impensável, pelo menos na medida em que o pensamento depende das palavras. [George Orwell, “1984”]


Como anteriormente aqui disse, e repito, e que me perdoe pelo calão algum mais comichoso dos três leitores deste manual de diatribes contra o AO90 (e outros detritos), estou-me altamente nas tintas para a cagança dos idiotas profissionais que abusam da Língua Inglesa. Por regra e definição, essa pandilha é constituída por tecnocratas que pouco ou nada sabem dizer (e muito menos escrever) em Inglês (e muito menos em Português), além de jargão técnico, tipinhos com uma pronúncia desgraçada (sotaque das Amoreiras, digamos), yuppies do século XXI cuja “pinta” de lorpas se topa a léguas. Enfim, que se danem os inguelishes e que se inglixe a jactância.

Esse estranhíssimo fenómeno (tipos que tentam impressionar a pategada com “buéda” tecnicismos no original) poderia interessar alguma coisinha caso tivesse a ver com assuntos sérios em geral, como a Ortografia, a Gramática portuguesa, a História de Portugal, o nosso património cultural, a independência nacional ou a soberania que estrangeiros nos sonegaram; ou seja, com o “acordo ortográfico”.

O AO90 contém igualmente algo de soluços de vaidosos e muito de tiques de autoritaristas, além de outro tanto de radical imbecilidade, porém é caso único, uma hecatombe que ameaça não deixar pedra sobre pedra dos nossos castelos no ar e apagar para todo o sempre o mais ínfimo vestígio de tudo o que prezamos, valorizamos e, em suma, somos; aquele horrendo crime de lesa-inteligência pretende derrubar todos os que, durante novecentos anos, construíram o que a última geração de estrangeirados ameaça abrasileirar.

No processo de aniquilação em curso, pretendem eles substituir a Língua portuguesa pelo brasileiro utilizando a táctica da novilíngua, isto é, a invenção literal de uma nova língua para eliminar a existente; isto não implica apenas chamar os bois por outros nomes, trata-se de reescrever a História e de “reformar” o próprio pensamento: conceitos, idiossincrasias, ideias simples ou raciocínios complexos, anseios individuais ou colectivos, devaneios ou desejos e mesmo os erros, as falhas, as faltas, os equívocos, as coisas hilariantes e as tristes, até a língua em que sonhamos; tudo, rigorosamente tudo será alterado, adulterado, “corrigido” segundo os sacros mandamentos dos oficiais do Partido, os donos da língua e, portanto, da vontade dos proletas — cujas funções consistirão exclusivamente em gerar outros escravos do Grande “país-Irmão”.

Proibir a língua “velha” (a velhice é já um demónio ao serviço da Nova Igreja) faz parte, obviamente, deste hediondo plano de terraplanagem linguística e cultural através da massificação da catatonia e contando já com o geral estado comatoso que caracteriza a indígena chusma de “pensadores”. As patranhas colossais, as mentiras descabeladas propaladas por alguns traidores e vendidos portugueses, contando com a nacional apatia (uma patologia ancestral), tentam impingir a todo um povo de descendentes de colonizadores a cacografia e, em última análise, a língua dos ex-colonizados. Caso único no mundo, evidentemente, “fundamentado” nesta coisa extraordinária: eles são 210 milhões e nós somos 10 milhões. Ou seja, a língua é só uma questão de contar cabeças; mesmo que os novos colonos provenham de um país a 7.500 km de distância, com o oceano Atlântico de permeio, mesmo que o Brasil seja uma ex-colónia portuguesa independente desde 1822 (e Portugal desde 1143), mesmo que do lado “dji” lá a pronúncia (não confundir com “sotaque”) seja para nós alienígena, a sintaxe abstrusa e a cacografia completamente anárquica, pois ainda assim uma mão-cheia de alucinados — isto é, de gulosos vigaristas — insiste na “adoção” por Portugal do brasileiro como Língua nacional, extinguindo em simultâneo o Português.

George Orwell era um inglês que escrevia, evidentemente, em Língua Inglesa. A sua obra mais genial é, sem dúvida, Nineteen Eighty-Four (1984). Isto sim, é Inglês que se pode (e deve) citar até à exaustão.

Nem sempre utilizar expressões inglesas serve só para impressionar (pategos). Há coisas que fazem parte da Língua em que foram criadas mas que acabam por se tornar património do universo inteiro.

Como a austera, apagada e vil tristeza de Camões, Hamlet (Shakespeare) reflectindo sobre to be or not to be ou, pela inversa, contrariando a sentença lapidar de “1984”,

Victory is possible

Os malefícios de um provincianismo mental acrítico e fascinado pelo novo

Nem a TLEBS, com as suas fastidiosas e aberrantes descrições, nem o AO 90, com os “seus erros, imprecisões e incoerências”, propiciam uma reflexão sobre a Língua.

Maria do Carmo Vieira
“Público”, 11 de Junho de 2021

 

O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.
Fernando Pessoa

 

Regresso a um tema que me é caro e sobre o qual me tenho repetido porquanto, a meu ver, permanece o absurdo que o caracteriza, bem como a doença de que padece e à qual se refere a epígrafe escolhida. Refiro-me à Reforma curricular de 2003, cujo espírito e metodologias se mantêm porquanto “o princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro”, o que ainda não aconteceu.

Não posso deixar de confessar que o presente texto nasceu do livro do Professor Jorge Calado (IST),Limites da Ciência (2.ª edição, 2021), da Fundação Francisco Manuel dos Santos, “redigido com o Acordo Ortográfico de 1945”, conforme se lê em nota. Será imprescindível transcrever as palavras do autor, a propósito de “A Língua e a linguagem”, para evidenciar a relação com a Reforma de 2003 acima referida e entusiasticamente anunciada. Eis a transcrição, longa, mas imperiosa: “Alguns cientistas, isolados nas suas torres de marfim, pensam que, se ninguém os entende, fazem figura de seres supremamente inteligentes. A verdade é que a construção de uma linguagem hermética, entendida por poucos e benéfica para nenhum, não passa, muitas vezes, de mais um sintoma de impreparação. A nudez da ignorância disfarçada com o manto espesso do artifício. […] A snobeira do falar difícil e pseudocientífico encontrou terreno fértil nas humanidades. […] que dizer da relativamente recente (2004) substituição da velha Nomenclatura Gramatical Portuguesa dos artigos, substantivos, adjectivos, verbos, pronomes, advérbios, preposições, etc., pela pretensiosamente científica Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário (TLEBS), entretanto suspensa? Uma salgalhada de variáveis, determinantes, auxiliares aspectuais e modais e preciosidades como ‘Um Nome tem um funcionamento não contável quando necessita de um suporte (discretizador ou enumerador) que o discretize ou enumere.’ Ciência, isto?”

Haverá que esclarecer o Professor Jorge Calado que a TLEBS não foi suspensa, apenas “corrigida” (imagine-se o desconforto do vocábulo para os “cientistas” que a trabalharam) continuando activa nos seus “disparates”, em programas e exames de Português. Na tentativa de apagar a polémica e o desastre intelectual que representou, a TLEBS transfigurou-se em Dicionário Terminológico, sendo seu obstinado mentor o Professor João Costa, de há longa data Secretário de Estado da Educação, e obviamente um fervoroso impulsionador da Reforma de 2003 da qual se salienta, no que à disciplina de Português diz respeito, a apologia de textos funcionais, o menosprezo pela Literatura, mormente pela Poesia, o amaldiçoamento de aulas expositivas, bem como do uso da memória e a pseudo-novidade da “Reflexão sobre a Língua” que a TLEBS proporcionaria, segundo “explicaram”, em acções de formação. E acções de formação porquê? Pela constatação da impossibilidade de os professores compreenderem as “inovadoras” descrições terminológicas. Eu própria assisti apenas a uma sessão, não estando inscrita, e foi o suficiente. Perante uma dúvida, a formadora repetiu vezes sem conta a mesma explicação, com o mesmo vocabulário, aberrante e impenetrável, apontando no final, e ostensivamente, a minha “impreparação”.

Realce-se o facto de a Reforma de 2003, afogada em teorias de educação já ultrapassadas e de nefastos efeitos,[1] querer impor-se como o que de melhor já existia na Europa comunitária, sobretudo em grandes países, de que o Reino Unido foi destacado como exemplo. Sim, o mesmo país em que os professores de Inglês já lamentavam que Shakespeare fosse ultrapassado por biografias de jogadores de futebol, “mais em conformidade com os interesses dos alunos”, a mesma justificação inovadora que ouvimos em 2002 em relação a Vieira, e muitos outros escritores, e que se perpetua. Um vocabulário específico, oscilando repetidamente entre “novo”, “inovação”, “inovador”, “moderno”, “modernizar”, “progresso”, “funcional” e “recreativo”, ostracizando o “velho” e o “antigo”, preenchia relatórios e programas.

Em sinal de abertura, convidou-se à crítica, mas a porta fechou-se a tudo o que se opunha ao previamente estabelecido, não sem uma ou outra perseguição intelectual, pondo-se em causa “a modernidade” que significa toda a abertura à discussão. Aliás, este comportamento “opaco” não se evidenciou apenas com a Reforma de 2003 e a TLEBS (2004), ele manifesta-se em inúmeras situações porque caracteriza um tipo de política arrogante e indiferente à discussão e ao Saber. Nesse sentido, realço o novo aeroporto, situação que recentemente pôs em destaque o comportamento grosseiro do presidente da ANA, José Luís Arnaut, face à defesa da localização do aeroporto em Alcochete pelo Eng. Carlos Matias Ramos (IST); a destruição da serra de Carnaxide, organizada com a cumplicidade de imobiliárias e câmaras (Amadora, Oeiras e Sintra) e que se intensifica perante a passividade de quem deveria intervir, nomeadamente o Ministério do Ambiente; a exploração de lítio, contrariada por movimentos cívicos e autarcas e em que mais uma vez o Ministro do Ambiente vem garantir “todo o rigor ambiental”, o mesmo rigor que temos vindo a conhecer de há muito e que, por vezes, até abdica de estudos de impacte ambiental ou os entrega a pessoas da sua confiança, apontadas como “independentes”; a imposição abusiva do Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), contra a qual se insurgiu o professor João Costa, enquanto membro da Associação Portuguesa de Linguística (2005), mas eram outros tempos, e já sabemos que o charme do poder facilita o esquecimento e a palavra dada. Nestas situações “opacas” sobressaem decisões marcadas pela “admiração por si próprios” e por ideias de “grandeza”, escondendo, quantas vezes, interesses perversamente sublinhados em nome do “bem público”, do “desenvolvimento da economia” e outras ideias afins.

No que diz respeito ao AO90, continua a salientar-se o argumento da globalização, da internacionalização da língua portuguesa, como um resultado a vir do referido acordo, esquecidos que estão da História. No entanto, é epidémica a mania do inglês ou a recusa de, no estrangeiro, falar em português. Ouve-se um Primeiro-Ministro discursar em espanhol (aconteceu com António Costa e José Sócrates, e certamente outros), a maioria das imobiliárias publicita em inglês, sendo no turismo essa prática exaustiva e lembrar-se-ão do “Allgarve”; a Câmara de Oeiras também se modernizou e inchou de prazer com a brilhante designação de “Oeiras Valley”, pomposamente gravada em todo o município e em Idanha surge o programa “Idanha Green Valley”; a Universidade Nova de Lisboa, constituída por faculdades, institutos e escolas, preza igualmente o inglês, e não é a única, observando-se que a Faculdade de Ciências Médicas traja agora com Nova Medical School, a de Economia, Nova School of Business and Economics, a de Direito, Nova School of Law, a de Ciências e Tecnologia, Nova School of Science and Technology, o Instituto Superior de Estatística e Gestão de Informação, Nova Information Management School. Na Comunicação Social proliferam “mídia”, “briefing”, “stakeholders” e tantos outros exemplos que cada um recordará; a Task Force aí está também e até o programa da Câmara Municipal de Lisboa, de apoio às pessoas em situação de sem-abrigo, se intitula “Housing First”, conforme ouvi na Rádio pública. Os exemplos são infinitos e todos marcados pelo caricato e por esse espírito provinciano que Pessoa tão pormenorizadamente analisou e descreveu.

As contradições entre o que se diz e o que se faz, no âmbito do delineado no AO90, traduzem-se ainda naqueles que o aplicam, orgulhosa ou resignadamente, imunes à convivência com o absurdo. Na verdade, há situações a raiar o ridículo e daí compreender-se o mal-estar de alguns em pensar escrever, por exemplo, “espetador”, optando por “espectador”, mas sem qualquer problema depois em juntar, no mesmo texto, “espetáculo” e “espectador”. A editora Relógio D’Água introduziu uma adenda com palavras que não respeitariam o AO 90, seguramente movida pelo ridículo que a nova roupagem traduz, e aí se encontra o exemplo de “espetador” que será grafado “espectador”; num manual de Matemática do 2.º ano, encontrei “Se um espectador chegar às 15:40, que atuações é que não conseguirá ver?” e na alínea seguinte, “A que horas termina o espetáculo?”, um flagrante exemplo de como se convida as crianças do 1.º ciclo a reflectir sobre a língua, conforme desejava a TLEBS. E ainda a propósito do novo “espetador”, surpreendeu-me também que Rui Tavares, cronista do jornal Público, sendo tão avidamente favorável ao AO90, e não defendendo qualquer correcção às suas incongruências e aos seus erros, tenha optado por “espectadores”, e por duas vezes, na sua crónica “Quem tem medo de Destemidas?” (26.06.2020): (“[…] a série de animação que foi suspensa da RTP após queixas de espectadores […] e “[…] entre muitos dos espectadores que se queixaram […]”.

Qualquer professor sabe que os alunos se interrogam sobre algumas situações do AO que propiciam equívocos, o que toda a ortografia tende a dispensar. E eles existem neste acordo, nomeadamente com a supressão dos acentos em “pára” e em “pêlo”, mantendo-se, no entanto, em “pôr” para não se confundir com “por.” Como professora recusei-me a cumprir este AO e agora como avó não fui capaz de confundir a minha neta (2.º ano) em duas dúvidas que me apresentou, estando a escrever uma história sobre a sua gata Mia. A dado momento, perguntou: “Pêlo leva acento, não é?” E eu respondi-lhe afirmativamente, justificando que assim não se confundia com “pelo”. Mais adiante: “Pára, também?” E eu de novo respondi que sim. E de imediato, a minha neta, numa breve reflexão sobre a língua e a sua lógica: “pois, porque senão era para!”

Nem a TLEBS, com as suas fastidiosas e aberrantes descrições, nem o AO 90, com os “seus erros, imprecisões e incoerências”, propiciam uma reflexão sobre a Língua. Duas aventuras idênticas no seu provincianismo mental, obviamente acrítico e fascinado pelo novo!

Maria do Carmo Vieira


[1]Hannah Arendt,La crise de la culture.Gallimard, folio-essais, 1989.

[Transcrição integral. Autoria: Maria do Carmo Vieira. Publicação: “Público”, 11 de Junho de 2021. Destaques e “links” (a verde) meus. Imagem de Ingsoc de: Nirwrath, CC BY-SA 3.0, via Wikimedia Commons]

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