O “acordo ortográfico” de 1990, não sendo nem acordo nem ortográfico, de facto e materialmente significa a “adoção” integral da cacografia brasileira e implica a erradicação definitiva do Português-padrão. Trata-se, por conseguinte e por exclusão de partes, de uma manobra política, a curto prazo, e de engenharia social, a médio prazo, com (mais do que) evidentes intuitos de expansão geopolítica e, portanto, financeira, encapsulando uma forma subtil de neo-colonialismo numa espécie de supositório mental com a designação comercial de “CPLP”.
[“Volta ao AO90 por etapas – 1 a 4″]
Peço imensa desculpa pela indecente auto-citação mas, parece-me, a diatribe encaixa como uma luva neste texto de Ana Cristina Leonardo, em especial se atendermos ao conteúdo do primeiro parágrafo, que introduz o tema com uma “perigosa” analogia apenas aparentemente desgarrada e casual, como se o “acidente” individual que refere no início não tivesse nada a ver com o desastre colectivo em que estamos todos — quer queiramos, quer não — afogados. E como remate do artigo a autora utiliza novamente a “táctica”: falar de outra coisa, de algo completamente diferente mas que afinal é… a mesma coisa, uma analogia sob a aparência de auxese. Tiro-lhe, por conseguinte, o meu chapéu, desbarretando-me perante a elegância e a subtileza de uma e, da outra, a alegria da alegoria.
Algumas notas, não abusando, sempre evitando cair na rapsódia do costume, ou seja, discutir questões técnicas ortográficas quanto a um assunto que de ortografia nada tem.
A expressão «valor diacrítico das consoantes não articuladas» é interessante, já que tal formulação denota uma óbvia conotação política: as consoantes não articuladas que refere (o que remete para a etimologia, um pesadelo para a empresa Malaca&Bechara, Lda.) existem no Português-padrão mas não no brasileiro; esta novilíngua socorre-se de uma escrita (isto é, várias, uma por Estado, outra em cada cidade, bairro ou prédio e ainda outra de pessoa para pessoa) que não passa de mera transcrição fonética dos inúmeros “falares” brasileiros; o AO90 tenta desesperadamente pôr alguma ordem naquela imensa cacografia e daí os seus alucinados autores usarem a ridícula expressão “pronúncia culta”; ou seja, cá está, “pronúncia”, logo, transcrição fonética (com o alfabeto comum, não com o fonético, é claro, que naquelas bandas a ignorância é pandémica) e portanto, por exclusão de partes, nada de ortografia. Em resumo: o AO90 brasileiro (passe a redundância) preconiza — numa primeira fase — que “o que não se lê não se escreve”, portanto o brasileiro fica exactamente como era (porque já era isso mesmo) e todas as consoantes a abater (100%) afectam exclusivamente o Português sério e a sério. Numa segunda fase, os prestáveis acordistas portugueses distribuirão entre si os tachos para formar uma CTR (Comissão Técnica de Revisão) que reintroduzirá as consoantes que são “mudas” para nós mas que os brasileiros articulam; por exemplo, “rêcépição” voltará a ser “recepção” para os pândegos tugas; e, dado que no Brasil “corrupto” ou “corrupção” se pronuncia (logo escreve/transcreve) “corruto” ou “corrução”, então em Portugal (e PALOP) a CTR ordenará mais essa patacoada insuportável na “língua universáu“.
Não existe, por conseguinte, pegando-lhe apenas por esta ponta, qualquer espécie de “ortografia pós-Acordo”. Uma das finalidades do AO90, de resto, é abolir administrativamente o próprio conceito de Ortografia — eliminar a Língua Portuguesa substituindo-a pela transcrição fonética do falar dos brasileiros de “pronúncia culta” (Bechara e um primo dele).
Outra afirmação um pouco dúbia no texto: «a Resolução 26/91 que valida o Acordo Ortográfico». Não, não “valida” coisa nenhuma, perdoará a autora a truculência. Essa Resolução da Assembleia da República resultou de uma “Proposta de Resolução” do Governo, como determinam os trâmites previstos no “regulamento” do processo legislativo, não tendo produzido a mais remota das consequências. Prova disso é o facto de toda essa papelada (AO90, PdR, RAR) ter ficado a marinar numa qualquer gaveta durante… 17 anos!
Foi quando o “génio” Cavaco chamou o inefável Santana Lopes e o incumbiu de ir à gaveta buscar aquilo é que o processo de demolição da Língua Portuguesa teve realmente início. E foi, por fim, em 2008 (17 anos depois da RAR 26/91, repito) que a aprovação do II Protocolo Modificativo (via RAR 35/2008) pôs realmente em marcha o camartelo. Sem esta última golpada o AO90 jamais teria saído da abençoada gaveta de onde Santana a repescou e, portanto, a Resolução de 1991 valeria (ou validaria) tanto como um maço de notas do Monopólio.
Por fim, só mais esta: «ortografia pós-Acordo». Bom, ora vejamos. Como direi? Belo oximoro, realmente. Não desmerece.
Parabéns à prima!
Ana Cristina Leonardo
“Público” (suplemento “ípsilon”), 23.07.21
Em verdade vos digo, caros leitores, em Portugal é mais fácil um estúpido passar pelo buraco de uma agulha do que saber-se a velocidade a que segue o carro de um ministro. Tal mistério (ou segredo de Estado), naturalmente decifrável à luz da Relatividade einsteiniana, implicando, todavia, no caso, a compreensão de fenómenos abstrusos para o comum dos mortais — compreendidos os efectivos da GNR — tais como o efeito Doppler, a dilatação do tempo, a invariância da velocidade da luz e variação da massa, as transformações de Lorentz e o diabo a quatro — isto apesar de Jean Piaget ter concluído que, para crianças mais novas, quanto mais depressa andarmos, menos tempo passa — remete-nos para uma frase de Mark Twain, autor inesgotável no que respeita a frases de espírito: “Leitor, suponha que era um idiota. E suponha que era um membro do Congresso. Mas repito-me”.
Como não lhe dar razão quando olhamos para a Resolução 26/91 que valida o Acordo Ortográfico, o qual, desde então, só nos tem dado alegrias, a nós e aos habitantes da Guiné Equatorial?
Aprovada pela esmagadora maioria (cinco deputados ausentaram-se, PCP, PEV e três deputados do CDS-PP abstiveram-se e apenas votaram contra Manuel Alegre (PS), Nuno Melo e António Carlos Monteiro (CDS) e a deputada não inscrita (ex-PCP) Luísa Mesquita), perguntamo-nos, sem querer ofender ninguém em particular, mas não nos importando de ofender toda a gente em geral, quem, dos parlamentares “acordistas” , seria capaz de justificar o seu voto favorável a este articulado: “O c, com valor de oclusiva velar, das sequências interiores cc (segundo c com valor de sibilante), cç e ct, e o p das sequências interiores pc (c com valor de sibilante), pç e pt, ora se conservam, ora se eliminam”?
Escrevem-se coisas extraordinárias nessa Resolução!
“É indiscutível que a supressão deste tipo de consoantes [mudas] vem facilitar a aprendizagem da grafia das palavras em que elas ocorriam. De facto, como é que uma criança de 6-7 anos pode compreender que em palavras como concepção, excepção, recepção, a consoante não articulada é um p, ao passo que em vocábulos como correcção, direcção, objecção, tal consoante é um c? Só à custa de um enorme esforço de memorização que poderá ser vantajosamente canalizado para outras áreas da aprendizagem da língua”.
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