«O português que falamos/escrevemos no Brasil é bem diferente daquele falado/escrito em Portugal.» [Luiz Fernando Casanova, tradutor brasileiro]
Pois sim, pois é. O brasileiro é tão diferente do Português quanto o Português é diferente do Galego. Qualquer texto, de qualquer tipo, escrito em Galego é imediatamente e sem qualquer esforço inteligível para um leitor português — e o mesmo sucede se invertermos os factores. Isto é naturalíssimo, claro, dado que ambas as Línguas partilham um tronco comum e, historicamente, foram na Idade Média o idioma comum aos diversos povos estabelecidos a Norte e a Sul do rio Minho. A Língua galaico-portuguesa, ancestral elo de ligação de cariz (também) político, foi partilhada ao longo de séculos, portanto, mas nem um facto nem o outro influíram minimamente na autonomização das duas “variantes”, primeiramente, e na separação, por fim, transformando-se uma e outra em Línguas nacionais independentes.
Seria possível copiar e colar todo o parágrafo antecedente, para ilustrar a situação actual das línguas portuguesa e brasileira, com a errata da ordem: onde se lê «Galego» leia-se «brasileiro» e «onde se lê rio Minho leia-se oceano Atlântico». Não se trata de mera similitude, o que sucede hoje — e desde 1822 — é rigorosamente a mesma coisa que sucedeu na Península Ibérica no século XIV, com um período de carência que se prolongou por cerca de duzentos anos. Grosso modo, o mesmo hiato temporal entre o “grito do Ipiranga” e a invenção do AO90, esse absurdo manual de colonização linguística invertida.
A consistência, a regularidade e a inevitabilidade do processo de separação verifica-se em concomitância, não apenas no plano linguístico mas também no político, com a excepção do malaquenho aleijão — um “acordo” inédito, sem qualquer precedente (ou alguma coisa vagamente parecida) em todo o mundo.
Tanto o brasileiro como o Galego apresentam notórias divergências em relação ao Português, a todos os níveis, a começar pela ortoépia (ou prosódia, não confundir com pronúncia ou sotaque e muito menos com “o falar”) e incluindo, por natural inerência, o léxico, a semântica, a ortografia e, evidentemente, a morfologia. Não entra nesta analogia, por acréscimo a contrario, que na língua brasileira a sintaxe (a construção frásica, o “modo de escrever”) não tem nada a ver com a da Língua Portuguesa — mas essa discrepância fundamental e estruturante não sucede com o Galego.
É uma questão de tempo, realmente. Apesar de alguns galegos pretenderem também, nisso concorrendo com engraxadores profissionais da tugalândia, abichar umas sinecuras à conta do AO90 puxando o lustro aos chanatos dos brasileiros, a questão na Galiza é respeitavelmente vetusta e evidentemente pacífica: Galego é Galego, Português é Português. Aliás, um “acordo ortográfico” com a Galiza não apenas jamais lembraria ao diabo como também não iria permitir bajular qualquer “país-continente” nem concorrer aos tachos sobrantes (e menores) à conta de uma putativa “língua ibérica” ou outra coisa qualquer parecida com a “língua universáu” de Malaca, Bechara, Cavaco, Lula e Sócrates.
E quem diz Galego, diz o próprio Castelhano, esse verdadeiro gigante, ou diz Catalão ou, já agora, se a questão é de “parecenças”, então porque não um acordo ortográfico luso-transalpino, pois então, o Italiano é parecidíssimo com o Português, nós por cá até temos boa pizza, em não havendo carrascão marcha o belo Chianti, ou assim, e isto já dando de barato que o Mourinho agora é treinador do AS Roma, há lá coisa mais universal do que a língua futebolística, não brinquemos.
Portugal em peso deveria começar já a treinar o seu Espanhol, a alinhavar El Acuerdo Ortográfico, salvo seja, ou em alternativa seria de tentar os nossos “irmãos” italianos (em especial no Vaticano há disso aos pontapés), fazer um verdadeiro acordo ortográfico com eles, algo mais pingue e sumarento do que o péssimo negócio (para nós) com o Brasil, para quem a fantochada ortográfica é um belo troço.
Se o que se pretende é rebolar a rir, distraindo assim o povão de golpadas e camuflando mafiosos, então ao menos que se tente a via italiana — apinhada de especialistas em omertá. Capisce?
Esqueçam de vez o elefante e habituem-se às diferenças
Nuno Pacheco
publico.pt, 22.07.21
Hoje, como há dez, trinta ou cinquenta anos, o português continua a ter duas variantes claras: a portuguesa e a brasileira. O acordo não alterou isso, só alterou cada uma das variantes.
O elefante estava muito sossegadinho a um canto, na sua perene inutilidade, até que alguém o chamou. E ele lá veio, arrastando o seu peso, sem saber a que propósito se lembraram da sua existência. Sim, porque na festa ninguém reparou. Ao chegar aos 25 anos, idade para ter juízo, o quarteto de consoantes que lemos como cêpêélepê mantém muitos devaneios (como a crença de que Obiang virá algum dia a ser democrata), mas já se entretém com coisas mais adultas como a livre circulação ou até os negócios, sejam eles promitentes ou duvidosos. Agora a língua, que na declaração de Luanda se reveste das pomposidades habituais (a palavra “língua” é repetida 25 vezes, seja para recomendar vacuidades como a “ampliação da [sua] difusão internacional” , ou reiterar o sonho de a ver como “oficial” na ONU), já se desembaraçara — na retórica, mais ainda não nos nefastos efeitos — do elefante. Para quê, então, trazê-lo à baila?
Por isto: entre as reacções de desconfiança que acompanharam a cimeira dos 25 anos, e não foram poucas, a Voz da América (VOA) publicou dia 17 um artigo intitulado “CPLP: Analistas moçambicanos consideram que organização não tem impacto na sociedade” , no qual um dos dois citados, BorgeNhamirre, apresentado como “invesfigador e activista social” , dizia textualmente: “Falta uma liderança clara, objectivos claros e estratégicos e de acção, que apontem que nós queremos chegar àquele ponto. Olhe só uma coisa que a CPLP não conseguiu fazer até agora: é garantir o acordo ortográfico a nível dos seus membros. Continuamos a ter determinados países que escrevem a língua portuguesa de uma forma e outros de outra, com todos os impactos que parecem pequenos, mas que não são. Se um estudante moçambicano vai, por exemplo, fazer doutoramento no Brasil ou Portugal, não sabe se escreve a sua tese com o português de Moçambique ou do país onde estiver.” E assim chegamos, de novo, ao elefante.BorgeNhamirre levanta um problema prático, com reflexos no ensino, mas engana-se quanto ao modo de resolvê-lo. Hoje, como há dez, 30 ou 50 anos, o português continua a ter duas variantes claras: a portuguesa e a brasileira. O acordo não alterou isso, só alterou cada uma das variantes, nuns casos fazendo-as coincidir (“direção”, “atual”), noutros, e são tantos, fazendo-as divergir (“recepção” ou infecção” no Brasil; “receção” ou “infeção” em Portugal). Foi como se duas pessoas, ao aperceberem-se de que vestiam camisolas diferentes, resolvessem ir buscar e vestir uma igual à do parceiro, continuando a ficar diferentes, mas ao contrário.
É muito instrutivo lembrar o texto publicado há tempos por Luiz Fernando Casanova, tradutor brasileiro, intitulado “Diferenças lexicais (não ortográficas) entre as variantes do Português de Portugal e o Português do Brasil” (o texto foi também reproduzido no Facebook dos Tradutores contra o Acordo Ortográfico). Problema dele? “Muitos dos nossos clientes, especialmente os estrangeiros, perguntam se realmente é necessário traduzir um determinado projeto multilíngue para o português ‘do Brasil’ e para o português ibérico. Na verdade, o questionamento básico é: será que não dá para traduzir somente para um dos idiomas (português brasileiro ou europeu) e depois simplesmente adaptar o texto traduzido para o outro? Minha resposta: Não! O português que falamos/escrevemos no Brasil é bem diferente daquele falado/escrito em Portugal. Para se fazer uma tradução decente, é necessário traduzir o texto para o português brasileiro e para o português ibérico, utilizando tradutores nativos dos respectivos idiomas. Uma adaptação definitivamente não é uma boa opção.” E, para quem acha os idiomas “tão parecidos” , dava “uma pequena lista exfraída do ‘Webster’s Online Dictionary’ que demonstra o confrário” (aqui abreviada, omitindo o significado em inglês; a sequência é BR/PT): abridor de latas/ abre-latas; aeromoça/ hospedeira; água-viva/ alforreca; AIDS/ SIDA; aquarela/ aguarela; aterrissagem/ aterragem; banheiro, toalete, lavabo, sanitário/ casa de banho, lavabos, sanitários; bonde/ eléctrico; freio, breque/ travão; brócolis/ brócolos; café da manhã/ pequeno almoço; câncer/ cancro; caminhonete/ camioneta; carona/ boleia; celular/ telemóvel; canadense/ canadiano; caqui/ dióspiro; dublagem/ dobragem; Band-Aid/ penso rápido; time, equipe/ equipa; maiô/ fato de banho; mamadeira/ biberão; metrô/ metro, metropolitano; ônibus/ autocarro; trem/ comboio.
O ensino pode ter um problema, mas deve resolvê-lo com bom senso. Esquecendo de vez o elefante e habituando-se às diferenças, que nos enriquecem. O resto é o caos a que chegámos.
[Transcrição integral (a partir da edição em papel). Autor: Nuno Pacheco. Publicação:
publico.pt, 22.07.21. Imagens de: “Pizzaria Transalpina” e “CPI – Clube Português de Imprensa“.]