“Uma fantasia ridícula”

«Só que os portugueses, quando não conseguem pagar as contas, pensam imediatamente em conquistar um império, de preferência o império que perderam. E, como são modestos, pensaram logo no Brasil. O nosso alto comando congeminou logo uma estratégia irresistível: importar para Portugal a ortografia brasileira. No momento em que os portugueses escrevessem (o pouco e mal que escrevem) sem consoantes mudas, o Brasil não podia deixar de se render, com uma saudade arrependida e desculpas rasteiras. Mas, como a humanidade é má, em particular no hemisfério sul, o Brasil terminantemente recusou o nosso audacioso “acordo ortográfico” e deixou Portugal sem consoantes mudas, pendurado numa fantasia ridícula e sem a menor ideia de como vai sair deste sarilho: um estado, de resto, habitual.» [Vasco Pulido Valente, 11 de Janeiro de 2013]


Ainda sobre a última cimeira da CPLP, em Luanda, uma crónica de João Gonçalves no “Jornal de Notícias” a merecer, pelo menos, dois destaques e uns quantos comentários.

Primeiro. Citação: «a única coisa que me interessaria seria a defesa da língua, matéria em que falha clamorosamente»

Bom, é evidente que a CPLP falha clamorosamente em tudo — a sua própria invenção foi uma inacreditável bambochata — mas, pelo contrário, no que diz respeito à “defesa da língua” brasileira, temos de reconhecer que os seus agentes academicistas e mercenários polivalentes estão a fazer um excelente trabalho. De facto, como aliás seria mais do que expectável, visto que no âmbito da CPLP a língua é mero pretexto para dar cobertura política aos interesses geoestratégicos brasileiros, à estratégia expansionista do “país-continente” convém “promover e difundir a língua” brasileira “no mundo”.

Neste contexto — e para todos os efeitos — a única pretensão da CPLP quanto à Língua Portuguesa, através do AO90, é… extingui-la.

Por conseguinte, caso de facto se interesse pelo assunto, como parece, melhor faria o cronista em preocupar-se com a defesa da sua própria Língua e não com ambições neo-colonialistas, com a preservação da Língua-padrão em Portugal e com a difusão do Português canónico nas ex-colónias portuguesas em África, não com a abolição administrativa do nosso traço identitário mais marcante.

Segundo destaque. Citação: «um pretexto frívolo e inconsequente para o país lavar alguma má consciência “colonialista” que possa ter sobrado dos idos de 70 do século passado»

Formulação curiosa, esta. Espantosa, até, se formos tolerantes (magnânimos seria talvez demasiado) e se tentarmos encaixar a ideia subjacente em algum tipo de premissa inteligível. O que não será tarefa fácil, convenhamos; ou, dito de outra forma, em linguagem um pouco menos formal (digamos), isto é pôr a carroça à frente dos bois — sendo a carroça a CPLP e os animais que fizeram a carroça os bois.

Quererá o cronista significar, com tão “revolucionária” frase, que a “má consciência colonialista” (de quem?, de que portugueses?, ou isso é uma “verdade universal”?) justifica plenamente uma espécie de vingança dos “oprimidos”, dos “colonizados” brasileiros, coitadinhos?

Ora, ora, senhor Gonçalves. Com o devido respeito, é claro, deixe-se disso. Ideias peregrinas, excomunhões, liturgias e rituais são coisas de beatas, falsa fé.

Ou apenas fé, sem adjectivo.

A CPLP irritante

João Gonçalves
“Jornal de Notícias”, 19 Julho 2021

 

Se realizarmos uma sondagem fora do “meio” sobre o significado do acrónimo CPLP, poucos saberão – e não perdem nada com isso – tratar-se da “Comunidade dos Países de Língua Portuguesa“.

 

Esta CPLP reúne em “cimeiras”. Desta vez, coube a Luanda receber mais uma. Lá foram Marcelo e Costa, este devidamente parabenizado num jantar oferecido pelo general Lourenço. Consta que Marcelo “puxou” pelo “parabéns a você nesta data querida” e ambos, Costa e Marcelo, desmentiram existir qualquer “irritante” entre eles. Fizeram juras de acrisolado “amor” institucional que culminaram com Costa, no seu tradicional registo de brutalidade política, a insinuar que a Guiné Equatorial entrara na CPLP, em 2014, pela mão de Passos e de Cavaco. Vamos por partes. Logo à cabeça, a língua. Acerca da qual ninguém, na prosélita CPLP, se entende por causa do “acordo ortográfico” de 1990. No país do sr. Obiang, então, a questão nem se coloca. A Guiné Equatorial ignora por junto a democracia e a língua. Todavia, nada disso impediu que os ex-presidentes de Angola e do Brasil, respectivamente Eduardo dos Santos e Dilma Rousseff, tivessem forçado a mão dos outros a aceitar a presença de Obiang na CPLP. Sem a menor capacidade geoestratégica na Europa, ou seja onde for, a CPLP caiu definitivamente na irrelevância e na inutilidade que a caracteriza desde a sua brilhante “ideia” fundadora. Quanto a interesses e negócios – as determinantes não “irritantes” da exigência angolano-brasileira de incluir a Guiné Equatorial na CPLP e que os outros inalaram e engoliram com receio que se desfizesse tão ilustre agremiação -, Costa nada disse e desfez-se em retórica democrática. Por outro lado, se, em 2018, o Estado concedeu 1,5 milhões em isenções fiscais à filha de Obiang através da Zona Franca da Madeira, por que é que não se exigiu simultaneamente democracia e respeito pelos direitos humanos no “seio” da CPLP? Só agora é que se lembrou? Enfim, desta irritante CPLP, a única coisa que me interessaria seria a defesa da língua, matéria em que falha clamorosamente. E logo a matéria não petrolífera ou bancária, e um dos melhores meios de influência de Portugal, como Vasco Pulido Valente escreveu há sete anos. A CPLP será o que sempre foi. Um pretexto frívolo e inconsequente para o país lavar alguma má consciência “colonialista” que possa ter sobrado dos idos de 70 do século passado. O que representa nada, porque os “parceiros” se estão nas tintas para isso.

João Gonçalves – Jurista

[Autoria: João Gonçalves. Publicação: “Jornal de Notícias”, 19 Julho 2021. Destaques, sublinhados e “links” meus. Imagem/citação de Cícero de: utilizador Facebook.]

Costa, Marcelo, Obiang, João Lourenço [imagem de: “Folha 8“]

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