É de facto gratificante verificar, até pela raridade do fenómeno, que existe ainda quem não se limita a “dar aulas”, bem pelo contrário, trata os alunos como seres-humanos e não como retardados incapazes de atar os próprios atacadores.
Não é da responsabilidade dos alunos que alguns adultos (pelo menos em idade acumulada), “pedagogos” e “técnicos” da corda, tenham por profissão inventar inanidades como a «“Leitura Recreativa” ou de “Entretenimento” para o texto literário», salteando esses pratos indigestos com temperos ainda mais intragáveis, como a TLEBS, e, para rematar, o molho de cicuta da marca AO90.
Não sendo de todo necessário ir tão longe na matéria quanto o parnasianismo nem tão perto quanto o nihilismo, a verdade é que nos crescentes escalões etários — ou seja, em cada um dos “ciclos” curriculares do Ensino no nível Básico e no Secundário — existe uma espécie de consciência artística colectiva à qual a população estudantil é sensível, está receptiva e demonstra entusiasmo sem hesitações nem considerandos.
Aproveitar ou dar vazão às capacidades artísticas inatas, no sistema de Ensino português — à semelhança do que sucede com o processo de ensino/aprendizagem da Língua Portuguesa –, tornou-se hoje em dia numa empreitada que, além de ingrata e arriscada, é também profundamente tantálica; dito de outra forma, se a algum professor ocorrer tentar uma abordagem pedagógica escorada pela Arte, seja esta qual for ou um pouco de todas elas (recapitulando, para abreviar: som, imagem, cor, volume, movimento, espaço e palavra), pois então esse infeliz docente irá, ainda que em absoluto inocente, ser crucificado como indecente. O que significa, muito para além do mero jogo de palavras, que vivemos uma era em que ser docente é indecente, logo, indocente,
Veja-se, como ilustração do governamental postulado quanto ao “item”, uma espécie de orientação oficial sobre “A educação através da arte” escarrapachada num blog por certa entidade obscura de que, devo confessar, jamais tinha ouvido falar:
«Também o gabinete responsável pela execução do Programa Rede Bibliotecas Escolares (RBE) em Portugal instituiu a questão da cultura e das artes como uma das prioridades para a acção das bibliotecas escolares em 2020/21 e, como forma de a tornar visível, disponibiliza na sua biblioteca escolar digital uma recolha de museus presentes no mundo virtual que pode ajudar as bibliotecas a desenharem actividades e a impulsionarem experiências educativas inovadoras nas escolas.» [escrita brasileira corrigida para Português]
Mesmo dando de barato o erro de Português no parágrafo transcrito (não aguento mais do que uma bacorada de cada vez, lacuna minha, só li o resto de relance), e mesmo não chamando a atenção para o facto indesmentível de haver erros até em sites oficiais de Ensino e sobre Português, ainda assim será de destacar a total vacuidade do palavreado, a ausência de qualquer conteúdo objectivo ou programático e, em suma, o abjecto “verbo de encher” que aquilo é. Nesse vazio de ideias atafulhadas com expressões idiomáticas do ensinês bacoco (não confundir com barroco) consiste todo o “pugrama” da tal educação através da tal coisa que os tais burocratas debitam por ócio e vício.
A escrita, mesmo, por vezes, a escrita não literária, é Arte. Como a pintura e a escultura, assentando numa arquitectura própria, escrever é uma outra forma de música, obedecendo ambas por igual a tempo e modo, à pauta — que pode evoluir mas que é imutável enquanto código de interpretação — e às notas que são letras, à clave que é o tom, aos silêncios gritantes que fazem todo o sentido, ao som “mudo” que é solene ou de terror ou estupefacção ou reverencial.
Portugal não teria sequer hino nacional sem as oito notas e as vinte e seis letras. Notas e letras, inseparáveis e solidárias, duas gémeas siamesas unidas para sempre pela memória num só carácter colectivo que torna a existência em algo com sentido.
Quando a escola falha na relação do ensino do Português com a Arte
Maria do Carmo Vieira
www.publico.pt, 9 de Setembro de 2021
«A finalidade da arte não é agradar. O prazer é aqui um meio. Não é neste caso um fim. A finalidade da arte é elevar.» [Fernando Pessoa (1888-1935)]
«Fazer arte é querer tornar o mundo mais belo, porque a obra de arte uma vez feita, constitui beleza, beleza acrescentada à que há no mundo.»[Fernando Pessoa (1888-1935)]
Ao longo dos anos, e enquanto professora de Português, presenciei a reacção de alunos que nunca haviam reflectido sobre o conceito de Arte e cuja sensibilidade não fora educada nesse sentido, em casa, falhando muitas vezes a Escola na seriedade desse trabalho imperioso; presenciei também a reacção dos que eram minimamente capazes de atribuir-lhe um significado e testemunhar a sua influência favorável, em vários momentos da sua ainda curta vida, precisamente porque em casa haviam encontrado diálogo propício. E como a experiência já me evidenciara quão vital era essa força que nos alimenta o espírito, toca, consola e enriquece, tornou-se objectivo proeminente da minha função de professora não só colmatar uma lacuna que, a permanecer nos alunos, determinaria o acentuar de diferenças sociais, mas também revigorar o encontro nos que haviam já dado os primeiros passos na assimilação do Belo, daquilo que comove, que ilumina, que faz pensar e que dá prazer ainda que tudo isso possa acontecer, em pleno, mais tarde, como tive oportunidade de verificar com alguns dos meus alunos. Sempre estive segura de que a minha postura interferiria na formação da personalidade dos que me eram confiados, e que em mim confiavam, em cada início de Outono. E não me enganei porque o tempo demonstrou-o nesse passado e tem vindo a somar comoventes testemunhos, escritos e orais, de inúmeros alunos das muitas escolas onde leccionei.
Foi no ensino do Português, com o estudo de autores programáticos, que me empenhei em demonstrar aos meus alunos, do Básico ao Secundário, a importância da Arte, em geral, e da Literatura, em particular. A Literatura, como veículo privilegiado de reflexão sobre a condição humana e arte da palavra que “vive primordialmente dos [seus] sentidos indirectos”, exigindo uma interpretação da simbologia que expressa. Só compreendendo se pode efectivamente amar e é nessa procura de sentido, no silêncio da leitura e em diálogo tranquilo com a palavra, chave de diferentes olhares e vozes, que nos revelamos tantas vezes a nós próprios, indo forçosamente ao encontro do Outro e treinando assim a nossa capacidade de desobedecer a tudo o que colida com a nossa humanidade ou nos imponha o absurdo. Assim aconteceu também com muitos dos meus alunos, num trabalho cúmplice e comprometido.
Vivo em saudade os cerca de quarenta anos em que ajudei a desbravar ou a intensificar o caminho que leva ao estreito diálogo com uma obra de arte, seja ela escrita, plástica ou musical. Nesse percurso, foi relevante a reflexão de Fernando Pessoa sobre o facto de toda a Arte ser “uma forma de literatura, porque toda a arte é dizer qualquer coisa.” A demonstração é um pouco longa, mas imperiosa a necessidade de a registar: “[…] As artes que não são a literatura são as projecções de um silêncio expressivo. Há que procurar em toda a arte que não é a literatura a frase silenciosa que ela contém, ou o poema, ou o romance, ou o drama.” Por isso me envolvi interiormente nesta causa, nesta urgência de desfazer o mito da dificuldade no estudo da obra de um determinado escritor, com realce para a poesia, ou na compreensão da autenticidade das outras artes na vivência humana, com o firme propósito de desmontar a ignorância subjacente a esses tortuosos preconceitos, íntimos aliados de teses absurdas centradas na apologia da facilidade e do funcional, bem como na perspectiva da literatura como mero tipo de texto, a par de um rótulo de garrafa. Absurdos que se haviam manifestado já no indesejado Acordo Ortográfico de 1990 (AO90), que pôs em causa a função normativa da ortografia e desfigurou a sua vertente cultural, em nome da facilidade, danificando a própria pronúncia das palavras e pondo mais uma vez em evidência a sobranceria da ignorância e a leveza mental de quem a impõe, transformada em lei.
Não esqueço o modo vibrante, e tão intensamente visível, das intervenções que, na sala de aula, aqui e ali surgiam, e como uns colegas completavam outros, intervindo eu naturalmente na saudável discussão que se gerava até à decifração da “frase silenciosa” contida nas obras artísticas apresentadas, fosse através da palavra, da cor ou do som. E assim iam ao encontro do “poema”, do “romance” ou do “drama”, tomando gradualmente consciência de que toda a arte expõe uma experiência humana, suscita perguntas e revela problemas inerentes à vida, propiciando o acto de pensar. Nesse sentido, confluem as palavras do filósofo francês, Emmanuel Lévinas (1905-1995), ao expressar que na “literatura vive-se ‘a verdadeira vida que está ausente’, que, precisamente, não é utópica.”; ou as de VanGogh (1853-1890): “São searas sem fim sob um céu turvo, e não receei a tentativa de expressar tristeza e a mais profunda solidão… Quase acredito que estes quadros vos dirão o que não posso dizer em palavras, nomeadamente o que descubro de saudável e revigorante na vida do campo”; ou ainda as de Daniel Barenboim, pianista e maestro argentino, ao definir a música como “expressão da alma humana”, dizendo os sons qualquer coisa porque combinados entre si formam “palavras e frases”. A propósito da Música, impossível não contar a história do Paulo (não recordo o apelido) que, no Secundário, na Escola Marquês de Pombal, ouviu pela primeira vez música clássica, e a impressão foi de tal modo forte que me pediu emprestado o CD de Vivaldi com As Quatro Estações. Umas semanas depois, contou-me o seu professor de Geometria Descritiva que, antes de um teste, o Paulo lhe pedira autorização para estar com fones. Inquirido sobre o porquê, respondeu que aquela música de Vivaldi o acalmava e até inspirava. A autorização foi dada e, por coincidência, ou não, a classificação melhorou razoavelmente.Depois da tenebrosa implementação da Reforma de 2003, tive a sorte, uma imensa sorte, de poder escapar ao contacto forçado com programas elaborados por gente pouco amante da leitura e convertida fanaticamente ao funcional e ao real, em estreita aliança com o poder político que tem retirado toda a dignidade ao Ensino. Ao optar pelo Ensino exclusivamente nocturno, que constituiu uma das mais enriquecedoras experiências escolares, livrei-me por completo das inenarráveis preparações de aulas, trabalhadas exclusivamente em grupo; dos textos literários, em prosa ou em poesia, interpretados com verdadeiros e falsos ou apresentados lado a lado com bulas, rótulos, etiquetas, na pura ignorância de que a literatura é uma arte e não um mero texto entre tantos outros; das matérias apresentadas em powerpoint, na mira de mais uns pontinhos na avaliação; dos “complementos oblíquos” e afins surgidos com o “disparate” da TLEBS ou da designação de “Leitura Recreativa” ou de “Entretenimento” para o texto literário, tudo inovações correspondentes ao diktat da “nova escola”. A propósito do verbo “entreter”, usado para destrinçar o literário do funcional, vale a pena reflectir sobre as palavras de Fernando Pessoa a quem de novo recorro: “entreter não comporta intensidade, porque entreter está ligado a variar, variar a não-durar, e o que não dura nunca pode ser muito intenso.”
Agora, já aposentada, mantenho com os meus netos, alunos do 1.º ciclo, a mesma postura que tive com os meus alunos do Básico e do Secundário, confrontando-me, como é natural, com o mesmo diktat de 2003. E assim, oiço a minha neta ler um poema de António Pina e preencher o que confrangedoramente lhe solicitam, com cruzes à mistura e opções banais, que a minha neta apelida de “tão parvas” pela sua extrema “facilidade”, constando na folha ao lado uma ficha sobre o estudo de um “rótulo” de um protector solar. Não é exemplo único. Outros poemas convivem lado a lado com bilhetes da CP ou programas televisivos e outros textos funcionais, tendo em comum uma aberração de questões que nos deixam perplexos e magoados. A este propósito o lamento será o mesmo: aqui em casa, os meus netos são alertados para estas situações e dispõem de materiais que não só lhes educam a sensibilidade, como os levam a pensar ou como diz a minha neta a “pôr o cérebro a trabalhar”; em contrapartida, crianças há, e muitas são, que dependem da Escola para usufruir não só de alimento físico como espiritual e este último é-lhes contínua e conscientemente negado, em nome de uma Reforma que se mantém e despreza qualquer crítica, estando apostada em destruir as tradicionais disciplinas, com realce para as de Humanidades, mas não só. Estou convicta de que a revolução contra a estupidez, AO90 incluído, dar-se-á. É uma questão de tempo e de persistência!
Nada é tão gratificante para um professor de Português como observar o caminho percorrido pelos seus alunos, transpondo inúmeros obstáculos até se sentirem tocados por um autor (e isso acontece igualmente com os mais novos) descobrindo assim a amizade que entre ambos se criou e que Walt Whitman tão expressivamente descreveu, no seu poema Adeus: “Camarada, isto não é um livro,/ Quem isto toca, toca um homem,/ (É de noite? Estamos aqui sós?)/ É a mim que seguras, sou eu que te seguro a ti,/ Salto das páginas para os teus braços – a morte chama por mim.”
No ano lectivo de 1984/1985, os meus alunos do 11.º ano de Português, da Marquês de Pombal, fortemente motivados pelo estudo de Pessoa e heterónimos, criaram comigo um movimento em defesa do velho Café Martinho da Arcada que recebeu em pleno o apoio empenhado da sociedade civil, jornalistas, artistas, Ordens e Assembleia da República, tendo assim obtido a classificação de “interesse público” que impediu a sua transformação em mais um banco. Desse grupo, imperioso destacar os nomes de António Aires, Artur Anjos, Cristina Barbosa, Licínio Assis e Paulo Malícia, como imperioso será dizer que a primeira filha do Artur recebeu o nome de Lídia, como forma de homenagear Ricardo Reis – “Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio”. A Lídia que vi, no dia 3 de Setembro p.p., representar magnificamente com Eunice Muñoz, sua avó, A Margem do Tempo de Franz XaverKroetz, em cena no Auditório Municipal Eunice Muñoz. Comovente e inadiável!
A finalizar, deixo, com a mesma emoção da primeira leitura, o testemunho de outro ex-aluno, mas da Escola Secundária Afonso Domingues (1980-1981), antiga Escola Industrial, oficialmente extinta em 2010. Aluno que marcou profundamente as minhas aulas, colegas e demais professores e cujo trabalho de historiador da ciência tenho tido o prazer de acompanhar. Chama-se Henrique Leitão e foi Prémio Pessoa, em 2014. A esse propósito escreveu um texto, expressivamente intitulado “Recordar é agradecer”, no Jornal de Letras (24 Dezembro de 2014 a 6 de Janeiro de 2015). Eis um extracto: “Determinou-se então que iria para a Escola Secundária Afonso Domingues. […] Durante esses anos o meu caminho na direcção das Ciências só teve um sobressalto chamado Maria do Carmo Vieira. As aulas da Carmo eram incríveis e acho que nunca mais vi a mesma paixão, a mesma intensidade, a mesma devoção às letras, à literatura – e aos alunos. Havia rigor e exigência, e naqueles poemas, romances e histórias estava tudo vivo.”
Maria do Carmo Vieira
[Transcrição integral de artigo, da autoria de Maria do Carmo Vieira, publicado no jornal “Público” no endereço electrónico
www.publico.pt, em 9 de Setembro de 2021. Destaques, sublinhados e “links” meus. Imagem de topo de: ZAP (copyright 18percentgray / Canva). Imagem de rodapé de: NIT.]
«Depois diante do Martinho, falou em irem tomar neve; mas D. Felicidade receava a frialdade; Luísa tinha vergonha. Pelas portas do café abertas, viam-se sobre as mesas jornais enxovalhados; e algum raro indivíduo, de calça branca, tomava placidamente o seu sorvete de morango.» [Eça de Queirós, “O Primo Basílio”]
Excelente texto!
A professora Maria do Carmo Vieira está sempre do lado certo.