«Uma parte importante da Nação perdeu totalmente a fé (com razão ou sem razão) no parlamentarismo, e nas classes governamentais ou burocráticas que o encarnam; e tende, por um impulso que irresistivelmente a trabalha, a substituí-las por outra coisa, que ela ainda não definiu bem a si própria.» [Eça de Queirós, “Revista de Portugal”, 1890]
Não deixa de ser uma curiosa coincidência que, após a Cimeira de Luanda — outra coincidência –, de repente e em força, saltem para a liça alguns comentadores angolanos imensamente conhecedores de umas coisas sobre a “lusofonia”, a CPLP e a língua brasileira (vulgo, AO90). O Estado de Angola sempre manteve uma muito saudável indiferença pelo aleijão cacográfico mas, ao que parece, pelo menos a alguns naturais daquele país lembrou agora alinhar na mentira de Estado.
Porquê agora?
É certo que foi na capital angolana que decorreu o último banquete dos alegres e cimeiros convivas, mas ainda assim trata-se de um inusitado acesso de “lusofonia” — essa terrível patologia que ataca as meninges — e de um bizarro apego (tanto mais bizarro quanto mais lauto o repasto) a questões “linguísticas” e quejandos quebra-cabeças. Porém, é no mínimo estranho que em Angola — ainda que no condicional — alguém fale agora (sem se rir) de patacoadas como, por exemplo, que a língua brasileira (designada como “português”, por estrita conveniência política) passe a “língua de trabalho da ONU” ou que o AO90 “tem uns problemazitos” coisa de somenos, e portanto há que “revê-lo” periodicamente (até à transcrição fonética integral do brasileiro) e assim “corrigir” umas quantas “aberrações” e “casos flagrantes”.
Em suma, simplificando, não existe nesta etapa angolana nada de especial, já que o método é sempre o mesmo, martelar propaganda e intoxicação. Tão evidente é a martelada quanto, infelizmente, a jogada cheira a “negociação”, tresanda a golpadas à sorrelfa, acordos apalavrados e sabe-se lá bem o quê mais.
Por conseguinte, depois de arrumada a questão da porta dos fundos em Portugal, os brasileiristas vão já desbravando terreno para que se cumpra o segundo desígnio estratégico: “facilitar” os negócios brasileiros em Angola.
Tendo o AO90 sido integralmente inventado para dar cobertura política à CPLP, o conceito de “lusofonia” — escorado numa colecção de patranhas — consistiria em tornar compulsivamente obrigatória a língua brasileira em Portugal e nas suas ex-colónias africanas… especialmente em Angola.
A cujas riquezas naturais acresce agora a recente descoberta de gás natural em Moçambique. Mas também para esbulhar isso haverá com certeza tempo e meios, de mais a mais dada a situação de emergência social em que se encontra este outro país. Novo filão, portanto, do estrito ponto de vista dos interesses económicos brasileiros e das migalhas que alguns tugas pretendem abichar à comissão.
Algumas das golpadas estão devidamente plasmadas, explicadas e adjectivadas numa entrevista de Abel Chivukuvuku, um político angolano (ver abaixo a transcrição parcial) que diz também coisas acertadas — e outras certeiras, por entre algumas asneirolas — sobre a corrupção política em geral e sobre a respectiva badalhoquice à moda dos políticos portugueses. “Roubalheira generalizada”, como cirurgicamente designa a trupe governamental tuga que se reveza no poder… de destruir o nosso património material e de aniquilar o legado imaterial que nos identifica.
Diz Chivukuvuku sobre Portugal que surgiu como a lavandaria da roubalheira. Que um estrangeiro profira “afirmações” destas, mesmo — ou principalmente — que tenha razão no que diz (sobre o AO90 sim, acertou em cheio), parece que para os governantes portugueses a coisa não tem a mínima importância, é para o lado em que dormem melhor, até porque já estão habituados a ser insultados e que tais enxovalhos sejam dirigidos a todo um povo também tanto se lhes dá, cognac é cognac, negócio é negócio.
Faz aliás parte das governamentais funções levar para casa quaisquer insultos, por mais intoleráveis que sejam, desde que isso não interfira nas “relações” comerciais e empresariais. Desde que não falte a verve para entreter distraídos e embalar tolos cá na terrinha, patacoadas a granel e papagaios amestrados para as repetir, nada mal, vai por aí um esfregar as mãos que até ferve.
E assim, com enredos de rapsódia e abomináveis pantominas, alguns torcionários da memória tentam varrer para debaixo do tapete da História o que ainda resta da nossa identidade. Limpam os sapatos a esse tapete, os miseráveis, enquanto vão tentando abrir uma porta que para eles estará eternamente fechada.
Excertos de entrevista a Abel Chivukuvuku (FPA, Angola)
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Abel Chivukuvuku: “O MPLA não tem agenda de sociedade. Tem projecto de poder”
Quer defrontar João Lourenço nas eleições de 2022, que, alerta já, “estão a fazer tudo para manipular. De Portugal, veria como “positivo” um pedido de desculpa pela colonização.
«Acabar com a roubalheira» é o propósito de Abel Chivukuvuku que se aliou à UNITA na Frente Patriótica Unida (FPU) para disputar as eleições de 2022. Para Chivukuvuku Portugal só teria a ganhar com uma “governação séria” em Angola e “seria positivo” um pedido de desculpa pelo colonialismo e a escravatura.
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Uma revisão constitucional está em agenda?
Se obtivermos uma maioria parlamentar vamos promover uma reforma constitucional. Temos um estado unitário altamente centralizado. Num país vasto este modelo não funciona.
Há, ainda, a heterogeneidade da população. Nós somos um estado-de-nações, somos um estado multi-étnico, multi-racial, com muita diversidade. A centralização amachuca as identidades. Precisamos de um modelo mais descentralizado. Pode ser federal, pode ser regionalizado, pode ser um outro modelo qualquer que promova a identidade dos vários povos e, também, uma articulação governativa com transparência, com ambição, com seriedade. Certas reivindicações e tendências secessionistas são no fundo reivindicações sociais tanto em Cabinda como da parte dos que querem fazer o Protectorado das Lundas.Temos um sistema político presidencial hiperbólico. Tudo concentrado numa só pessoa. Em certa medida o governo quase deixou de existir porque todos são auxiliares do titular do poder executivo. Não têm prerrogativas de iniciativa, competências para lançar políticas, etc. Para além disso esse titular do poder executivo tem uma certa diminuição de legitimidade porque não é eleito como pessoa. Quem é eleito é o partido não é o indivíduo. E no caso presente ainda mais porque a indicação do actual presidente foi quase imposta ao partido pelo antigo presidente.
Para escaparmos à concentração excessiva de poderes numa pessoa temos de encontrar um modelo semi-presidencialista ou parlamentarista. Defendo a eleição directa do presidente da república.Manteria o cargo de vice-presidente?
Podemos votar ao modelo de presidente e primeiro-ministro, por exemplo, que existia antes da revisão de 2010. Em certa medida o vice-presidente actualmente é como se fosse um palhaço. Não tem autoridade, não tem poderes, não tem nada.
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O combate à corrupção anunciado por João Lourenço vai um sentido positivo?
É preciso acabar com vícios, manhas e processos judiciais selectivos. O que nós tivemos não é corrupção. Não se trata de um cidadão que corrompe alguém numa instituição pública para obter determinado serviço. Isso é corrupção. O que nós tivemos é roubalheira directa aos vários níveis. Era sistémico. Era roubalheira generalizada. Era cultural quase. Institucional.
Não é por acaso que o antigo presidente estabeleceu o princípio de que a acumulação primitiva de capital fazia-se a expensas do estado e a favor de familiares e amigos. Esse estado de coisas foi, em certa medida, sustentado por Portugal que surgiu como a lavandaria da roubalheira.
Portugal tem mais a ganhar com uma Angola a crescer do que com um país em crise permanente e recessão.
A luta contra a impunidade não pode ser selectiva e tem de responsabilizar totalmente os escalões mais altos que dão o pior exemplo e definir outros graus de responsabilização para níveis mais baixos.
Temos de encontrar um modelo como os sul-africanos fizeram com a Comissão de Verdade e Reconciliação. Apurar fatos e, em certos casos, não responsabilizar totalmente, só parcialmente.
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