“Só o acaso pode ser interpretado como uma mensagem. Aquilo que acontece por necessidade, aquilo que é esperado e que se repete todos os dias, não é senão uma coisa muda. Somente o acaso tem voz. Tentamos interpretar o acaso como as ciganas lêem no fundo de uma chávena o desenho deixado pelas borras do café.”
[“A Insustentável Leveza do Ser”, Milan Kundera]
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Eis mais um caso flagrante de confusionismo profundo, o tipo de patologia que afecta, por definição, os chamados “distraídos”, ou seja, aquelas pessoas que se ralam apenas quando e se algo lhes não aparece na (ou desaparece da) carteira; por norma e hábito, a questão assoma de raspão a suas atarefadíssimas meninges — geralmente assoberbadas por torrentes de ideias geniais e listas de compras complicadas — se envolver publicações, edições e editoras. Tal espécie de “insustentável leveza do ser” é mais um dos estranhos mistérios que desde sempre assombraram a luta contra o AO90: não se pode contar com aquela gente para coisa alguma, exceptuando a sua atávica (e dispensável) maestria na arte de mandar umas bocas.
De resto, mergulhados como estão numa sopa de inconsequência temperada com verborreia inútil, nada há a esperar dali. E no entanto os NIM “confusos” (passe a redundância) representam um nada despiciendo montante de “boquistas militantes”, como diria Odorico Paraguaçu, na sua variante particular (e pitoresca) da língua brasileira.
O asco provocado pelo já indisfarçável desprezo que o Brasil sistematicamente — politicamente, historicamente, popularmente — dedica a Portugal, consubstanciado na “implementação” forçada da novilíngua brasileira e no consequente extermínio da Língua Portuguesa, apenas encontra paralelo na ainda mais nojenta subserviência dos políticos portugueses e dos seus acólitos pseudo-intelectuais que por iniciativa própria inventaram, planearam e executaram tão inédita quanto abjecta operação de neo-colonização inversa.
De alguns exemplos ilustrativos do golpe de Estado em curso dá notícia — presumo que não fazendo o autor a mais pequena ideia da gravidade do que diz — o textículo abaixo (parcialmente) citado.
António Araújo
DN (“Diário de Notícias”), 30 Outubro 2021
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No passado século XX e no XXI actual, Portugal tem grandes escritores e poetas, dignos homens e mulheres de letras. Poucos se aproximam, contudo, da grandeza de Vinicius. E se enfileirarmos mais alguns nomes da literatura do Brasil – Euclides da Cunha, Guimarães Rosa, Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Jorge Amado, Mário de Andrade, RaduanNassar, Nelson Rodrigues, Rubem Fonseca, ‘just to name a few’ -, facilmente concluiremos que a vantagem vai nítida e claramente para o lado de lá do Atlântico. Questão de escala, decerto, mas também ou primordialmente questão de língua, da maior plasticidade e elasticidade da língua na sua versão dos trópicos, o que é mérito de quem a fala e escreve assim, de forma solta e gaiata, tão diferente da nossa, que é austera e sisuda, com menos fantasia e graça. A diferença será também, naturalmente, da matéria-prima com que se escrevem as novelas, e que o Brasil tem de sobra, na dimensão e no colorido do território, na diversidade das suas gentes e, sobretudo, na amplitude dos seus dramas humanos, exemplarmente expressa num livro recente de Isabel Lucas, Viagem ao País do Futuro – O Brasil pelos Livros.
“Brasil, país futuro”, foi aliás o nome que Stefan Zweig lhe deu, ao que os críticos logo replicaram, com acidez irónica, que o Brasil era e sempre seria um país de futuro… De facto, olhando a sua confrangedora actualidade, surpreende que uma terra tão pujante em riquezas da natureza e capital humano continue sempre adiada, na eterna espera de um futuro melhor e mais justo para o seu povo. Como as famílias de Tolstoi, cada país será infeliz à sua maneira, mas a infelicidade do Brasil dói-nos fundo e custa-nos mais, dói-nos mais do que a de outros, pois a tristeza é sempre mais notória num povo de seu natural alegre e de bem com a vida. Onde está hoje o país de Vinicius, de Jobim e Gilberto, da bossa, do samba e da bola? Causa aflição a angústia, a cruel desesperança em que o Brasil está hoje mergulhado, culpa primeira de Bolsonaro e seus desastres, sem dúvida, mas também da atmosfera insalubre, irrespirável, de uma vida pública em constante guerrilha, com uma violência verbal sem precedente nem tino. Há dias, o relator da comissão parlamentar de inquérito que investiga as responsabilidades do governo na catastrófica gestão da covid-19, o senador Renan Calheiros, classificou o presidente como um serial killer, que tem “compulsão de morte e continua a repetir tudo o que fez anteriormente”. Por muito que Bolsonaro o mereça, esta não é a forma de um senador, ademais líder de uma comissão de inquérito, se dirigir a um presidente eleito e apreciar os seus actos. Sabemos que o Brasil é o país lusófono mais afectado pela pandemia, e um dos piores do mundo nas letais estatísticas, com mais de 600 mil vítimas mortais, mas insultar Bolsonaro daquela forma e usar o mesmo tipo de linguagem que ele é fazer-lhe o jogo, é dar-lhe argumentos para continuar a atacar tudo e todos e a desrespeitar as instituições da nação. O Brasil é um caso de estudo sobre onde pode levar a radicalização do discurso, a crispação dos gestos e das atitudes, de parte a parte, a destruição da moderação política, cívica e intelectual.
Mas se insultar é mau, calar e nada dizer é pior. No passado 8 de Outubro, Jair Messias Bolsonaro, 38.º Presidente da República Federativa do Brasil, afirmou que Portugal vivia “a quinta pior crise em 150 anos”, enfrentando uma “situação crítica” nos “supermercados e nos postos de gasolina”. Para fundar a apreciação, bolçou: “Tem uma menina de Juiz de Fora, que está em Portugal, que tem mandado uns vídeos para mim (…) em supermercados, em postos de gasolina, mostrando como está a situação crítica lá em Portugal também.”
É grave, muito grave, que um chefe de Estado estrangeiro se pronuncie assim sobre a situação interna de outro Estado soberano, dizendo para mais inverdades, clamorosas mentiras, com base nuns vídeos enviados por uma amiga imigrante, seja lá ela quem for. Sabíamos que, com Jair Bolsonaro, as relações diplomáticas entre Portugal-Brasil nunca estiveram tão baixas, próximas do zero ou menos. Ficamos agora a saber que um presidente de um país da CPLP é capaz de proferir uma enormidade sobre outro irmão lusófono, manchando a sua imagem perante o mundo. Ignora-se se houve alguma reacção por parte do MNE e se, no segredo das chancelarias, o embaixador brasileiro foi chamado às Necessidades, que explicações deu ou não deu, que mensagens se mandaram a Brasília, o que se fez ou não fez. Em termos públicos, parece que não se fez nada, numa opção pelo silêncio que talvez seja explicável pelos altos interesses da diplomacia, mas que ao cidadão comum se afigura estranha, pouco condizente com a defesa da honra e do bom nome de um país inteiro.
A terminar, e já que falámos de literatura e política, talvez fosse bom repensar de vez o calamitoso Acordo Ortográfico de 1990. Sobretudo, termos presente que, num balanço global, o AO90 não contribuiu em nada, absolutamente em nada, para melhorar as relações culturais entre Portugal e Brasil, as quais, por razões de vária ordem, foram muito mais pujantes em tempos idos – nos anos 1940, 1950, 1960 – do que no presente democrático. Entre outros exemplos, o que se passa no domínio do livro é inconcebível, com os editores portugueses a terem de enfrentar mil e um proteccionismos para, em raros casos, conseguirem colocar os seus livros nas terras de Vera Cruz. De lá para cá sucede o mesmo e, pasme-se, chega a ser mais fácil importar uma obra inglesa ou americana através da Amazon do que mandar vir um livro de uma editora do Rio ou de São Paulo. De que nos serve um acordo ortográfico se depois não podemos comunicar? Faz isto sentido? Que palermice pegada.
António Araújo
[Transcrição parcial de artigo de opinião, da autoria de António Araújo, publicado no “Diário de Notícias” de 30 Outubro de 2021. Destaques, sublinhados e “links” meus.]