Falar ″brasileiro″ ou falar ″americano″, eis a questão!
Margarita Correia
www.dn.pt,22.11.21
Até aos 10 anos, vivi num ambiente linguístico peculiar. Os meus pais, portugueses emigrados na Venezuela, falavam um registo de contacto entre português e espanhol; a minha madrinha, brasileira do Nordeste emigrada na Venezuela, falava o seu registo de contacto. Não sei ao certo qual terá sido a primeira língua que falei, ou qual registo, mas sei que, aos 5 anos, fui alfabetizada em espanhol, língua que desde então tenho a certeza de falar. Entre os amigos da família havia falantes de português (portugueses e brasileiros, com vários sotaques) e falantes de castelhano (venezuelanos, espanhóis, cubanos, colombianos…), de galego, catalão, basco, de italiano, eu sei lá! Entre as colegas de escola havia quem falasse alemão, francês, inglês, iídiche. Cresci no meio de uma grande algaraviada! O resultado foi eu hoje falar e até ensinar português europeu e entender outras variedades do português; falar espanhol de variedade venezuelana e entender outras variedades; falar francês por o ter estudado por 12 anos e ter habilitação profissional para o ensinar como língua estrangeira; falar inglês, que aprendi no ensino básico e de que muito preciso para o exercício da profissão; falar italiano, que aprendi quase sem dar por isso, como se sempre tivesse estado dentro de mim.
Quando cheguei a Portugal, fui para a escola de uma aldeia da Beira Litoral, onde frequentei a 4.ª classe. A professora ficou muito aborrecida por eu entrar a meio do ano lectivo e ser tão burra (ela dizia “buuurrra!”) que nem sabia falar português nem percebia o que lhe diziam. Na escola havia umas meninas ainda mais burras [do] que eu, porque, além de terem vindo do estrangeiro, eram muito mais pobres. Era assim em 1971. Que ainda hoje seja assim é inaceitável.
Vem isto a propósito de uma reportagem do DN, de 10 de Novembro p.p., intitulada “Há crianças portuguesas que só falam “brasileiro””, instigadora de alarmismo social e fobias, a avaliar pela reacção nas redes sociais. No texto grassa a ignorância e as asneiras são tantas que nem posso referi-las todas. Logo o título está errado. “Brasileiro” não existe (nem angolano, moçambicano ou africano), apenas português, vivo e de boa saúde, tal como não existe americano, sul-africano, indiano ou australiano, mas apenas inglês.
Ninguém em seu perfeito juízo ficaria aborrecido se o seu filho tivesse um colega, falante de inglês, que falasse português com sotaque; se o filho viesse para casa a dizer umas palavras ou expressões em língua inglesa, os pais até ficariam orgulhosos. Também não imagino pais a preocupar-se por os seus filhos começarem a falar inglês, seja de que país for, por exposição exagerada a produtos audiovisuais nessa língua. Contudo, conheço muitos relatos de crianças discriminadas na escola portuguesa por falar português de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné ou Moçambique; talvez seja por serem morenas, talvez por serem pobres.
Diz uma reportagem de O Globo online, de dia 16, que Luccas Neto “anunciou que passará a dublar os seus vídeos em português … de Portugal”. Alguém imagina a Disney a dobrar os seus filmes em inglês … de Inglaterra? Imaginam as criancinhas inglesas a fazer terapia por falarem “americano”?
Haja bom senso! Aos pais, sugiro que conversem com os filhos e os ajudem entender o mundo que os rodeia, seja em que língua ou variedade for. Aos professores, que se actualizem e leiam umas coisas sobre variação linguística, multilinguismo e multiculturalismo. A sociedade agradece. E as crianças também.
Professora e investigadora, coordenadora do Portal da Língua Portuguesa
[Transcrição integral de artigo de opinião, da autoria de Margarita Correia, publicado no “DN” de 22.11.21. Cacografia brasileira do original corrigida automaticamente. Destaques, sublinhados e “links” meus.]
«É professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigadora do Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), onde coordena o Portal da Língua Portuguesa (www.portaldalinguaportuguesa,org) e foi responsável pelo Vocabulário Ortográfico do Português (VOP). É doutora em Linguística Portuguesa pela Universidade de Lisboa.»
«Especializou-se na área dos estudos do léxico, no âmbito da qual publicou diversas obras, tais como Os Dicionários Portugueses (Lisboa, Caminho, 2009) e, em co-autoria, Inovação Lexical em Português (Lisboa, Colibri, 2005) e Neologia do Português (São Paulo, 2010).» [Wook]
«O nosso VI Simpósio tem como tema “Terminologia, desenvolvimento e identidade nacional”.
Acreditamos que, nestes tempos de globalização, (…) é muito importante que os membros da RITerm reflictam acerca das medidas a tomar para defender as possibilidades das línguas espanhola e portuguesa como instrumentos para a comunicação intra e interlinguística especializada (…).
Acreditamos que, quando defendemos os direitos das nossas línguas espanhola e portuguesa, defendemos também o nosso património cultural comum, a nossa identidade nacional.» [“Terminologia, Desenvolvimento e Identidade Nacional” – VI Simpósio Ibero-Americano de Terminologia – de Margarita Correia, Edições Colibri, 2002]
«Margarita Correia é doutora em Linguística Portuguesa pela Universidade de Lisboa, tendo-se especializado nos estudos do léxico. Atualmente é professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e investigadora integrada no Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), onde coordena o grupo de Léxico e Modelização Computacional. Coordenou a realização do Vocabulário Ortográfico do Português (VOP) e, com José Pedro Ferreira, o Lince – Conversor para a nova ortografia. Garante a coordenação científica do Portal da Língua Portuguesa.» [“Webinars” DGE]
A questão consiste em falar margaritês, ou seja, penetrar num sítio deprimente e caótico e tentar entender alguma coisa que por acaso escape à proverbial desonestidade intelectual desta falante única da sua própria língua. O margaritês consiste em aturar essa tal Margarita a dizer apenas mentiras — das mais escabrosas — e a inventar teorias da treta para vender mais uns livrecos de propaganda ao AO90 e de bajulação ao seu (dela) querido Brasil. Requer um módico de coragem, por conseguinte, levar com o margaritês, e ainda assim, mesmo fazendo salientar os bíceps mentais, torna-se imprescindível munir-se a gente de uma dose cavalar de paciência para “ouvi-la”.
Tachos não lhe faltam, usemos nós a espátula adequada para os rapar e higienicamente atirar ao lixo tão repugnantes cozinhados. Apenas alguns, que para mais não há estômago.
Margarita a Margarita em mais este textículo (ver acima) que:
- a) «grassa a ignorância e as asneiras são tantas que nem posso referi-las todas»
Ui. Refere-se à peça jornalística que uma corajosa profissional publicou no “DN”. Jornalista essa que até sabe escrever e tudo, o que deve de facto fazer imensa confusão a um espírito débil, e daí as ligeiramente trogloditas observações da agente brasileira de origem venezuelana. Sem comentários, portanto, atendendo à vomitiva diatribe margarítica e aos cuidados que devemos ter quanto a problemas de ordem gástrica.
- b) «tal como não existe americano, sul-africano, indiano ou australiano, mas apenas inglês»
Isto é um “clássico”. Os acordistas esgalham qualquer coisa como “argumento” para tentar justificar o injustificável, debitam seja o que for, por mais absurdo que até a um bebé de colo pareça (e, infelizmente, a indiferença de alguns mais parece o sono dos recém-nascidos). Tentar estabelecer um paralelo entre o Português e o brasileiro, por um lado, e o Inglês “cockney” e o de New York, por outro, é um dos casos hiper-imbecis citados pelos super-cretinos acordistas desde os primórdios. É claro, uma coisa (um sotaque ou um “falar” existem em todas as línguas nacionais de qualquer país, por região, profissão ou grupo social) não tem absolutamente nada a ver com a outra (línguas diferentes, com pilares gramaticais estanques), mas para o efeito aos acordistas tanto se lhes dá, é indiferente qualquer “argumento”, a propaganda faz-se com patranhas fáceis de “engolir”.
- c) «talvez seja por serem morenas, talvez por serem pobres»
Bem, este outro “argumento, há que reconhecê-lo, para variar, é uma inovação. Nunca anteriormente ocorreu a algum dos outros patronos da causa brasileira (Carlos Reis, Edite Estrela, Santos Silva etc.) utilizar uma palavra-de-ordem de tipo “esquerdista”, imensamente “solidário” para com a arma de arremesso — ou carne para canhão — a que a oligarquia dominante chama “minorias” ou, mais prosaicamente, “povo”. Nem aos conterrâneos da própria Margarita (o maduro Maduro ou o indigente Chávez) ocorreria puxar a costela do racismo classista na variante de tez morena, por assim dizer. Realmente, a desfaçatez desta gentinha não tem medida nem limites. Alguém alguma vez ouviu sequer falar de “relatos de crianças discriminadas na escola portuguesa por falar português de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné ou Moçambique“?
“O Acordo Ortográfico teve muitos outros objectivos…” Pois teve! Que uma acordista reconheça isso e que nem assim a generalidade das pessoas acorde e perceba as pulhices que estão a ser feitas em seu nome e em nome da Língua que é a sua é que já começa a raiar a imbecilidade patológica!
Sim, ela até vai ao ponto de se referir a questões políticas envolvidas (mas sem mencionar qualquer delas); não tanto neste texto ou nesta gravação mas em outros e outras.
Se acreditássemos na excelsa criatura, na Margaritolândia, as crianças seriam mesmo discriminadas…
Ah, mas muito pelo contrário, ou seja, nem uma coisa nem outra. O margaritês inclui o conceito — hoje em dia muito difundido — de “integração”. O que significa, portanto, integrar todas as crianças na geral sopa dos pobres de espírito. Sopa de nabos, evidentemente, para ser simpático.