Período de nojo

Por vezes surge na imprensa escrita algo tão surpreendente que ficamos mudos e quedos, como se tivéssemos mergulhado de repente numa espécie de suspensão viscosa, quase afogando no imenso vazio de um caldeirão cheio de nada; incapazes de articular palavra ou de sequer pensar seja o que for, a sensação será algo parecida — se bem que não se recomende experimentar o lance para tirar dúvidas — com levar uma paulada em plena testa, um taco de baseball em cheio e com toda a força.

É o caso deste artigo publicado há dias no jornal online “Observador”.

I-na-cre-di-tá-vel.

Ainda que felizmente raro, o estranhíssimo fenómeno afecta (episodicamente, é certo, mas alucinadamente, decerto) alguns “colunistas” tugas, de entre um colectivo de artistas circenses que não desmerecem da parelha Batatinha e Companhia. Desta vez, daí a tacada, o assunto é… bem… enfim… confesso que nem sei bem como qualificar aquilo; a gente lê uma vez e outra e outra, volta atrás e lê de novo, depois experimenta ler na diagonal, de baixo para cima, respingos, parágrafo por parágrafo, linha a linha — e nada: não se entende patavina. O que diabo quererá o fulano dizer?

Entende-se vagamente que repisa a telenovela brasileira por episódios (1 a 6) já aqui relatada, mas agora com novas e absolutamente delirantes elucubrações — praticamente ininteligíveis, de tão dementes — que apenas encontram algum paralelo no discurso esfarrapado e no instinto de rasteira bajulação de um tal Nuno Artur Silva, outro que tal.

Do que me foi possível entrever, por entre a névoa resultante da supra referida paulada, resultante de agressiva palhaçada, este brasileirista militante (tradução para língua brasileira: tuga puxa-saco) advoga, augura e deseja que se assuma de uma vez por todas que Portugal não passa de uma (minúscula) província brasileira, o 28.º Estado daquela que, depois de anexados os territórios europeu e africanos, será a Confederação Brasileira.

Fundamenta-se o notável cromo, para sustentar a sua mirabolante tesão (grau aumentativo de “tese”, é claro), numa putativa “supremacia” de génese quantitativa: como no Brasil «são mais de 210 milhões de falantes, caramba!», então acha o tipo que «a nossa língua é e será maioritariamente a língua dos brasileiros». O “argumento” do costume, portanto, mas desta vez com todos os éfes e érres, de caras, demonstrando assim o brasituga, com indisfarçável orgulho, que é absoluta e incondicional a sua naturalidade “adotiva”.

É a partir desta massa retorcida que se fabricam os seguidores da Santa Madre Igreja da Lusofonia (SMIL), fiéis beatos que seguem na procissão em forma de lombriga que vai percorrendo as calçadas do “Portugal profundo” que existe entre Belém e São Bento. Da récua crente e penitente sobressaem alguns presbíteros cujas funções consistem em brandir varapaus, soqueiras e mocas sortidas por sobre as cabeças alheadas de infiéis e indiferentes, reconduzi-los ao redil da fé no Império (brasileiro, claro) e ainda, quanto aos mais renitentes, aquelas ovelhinhas tresmalhadas que se estão blasfemamente nas tintas para o Brasil dos “córóné”, sujeitá-los, aos amaldiçoados hereges, à novel Mesa Censória, a tratos de polé, crucificação e excomunhão pelos cumpridores esbirros da Santa Inquisição.

Abjecto, enfim. Reformulemos o adjectivo, que é fraco o primeiro. Isto não é inacreditável, é simplesmente abjecto — em todas as suas cambiantes e em qualquer dos seus sinónimos e correlatos: desprezível, miserável, ignóbil, infame.

Será talvez de boa política não desperdiçar com aquele reles textículo — ou com o seu autor — todo um arsenal de impropérios que, se bem que plenamente merecido cada um dos adjectivos, com toda a certeza não perfuraria tão maciça quanto repugnante casca-grossa.

Como maltratar brasileiros

observador.pt, 26.12.21
Tiago de Oliveira Cavaco

 

O brasileiro não sabe que, se tivesse chegado cá nos anos 80, era rei e senhor. Era o tempo de Portugal fechado em casa ao serão, derretido diante das telenovelas da Globo. Quando alguém do Brasil se dignava a pôr pés aqui, a aclamação era total. Desbravavam o nosso futuro na televisão, na publicidade e a tratar-nos dos dentes. Nas Igrejas Evangélicas, os brasileiros eram missionários e pastores que flutuavam um palmo acima dos restantes mortais, santificados numa religião que não tem santos. Portugal era todo deles. O início dos anos 90 mudou tudo. E geralmente atribui-se essa mudança à Igreja Universal do Reino de Deus.

O brasileiro não sabe que a IURD (como dizemos com desdém) mudou o jogo quando se atreveu a julgar que a liberdade religiosa em Portugal era mesmo liberdade religiosa. As pessoas cultas, que obviamente nunca maltratam ninguém, acorrentaram-se ao Coliseu do Porto para impedir a queda de um símbolo nacional no culto da ignorância sul-americana. Como junto com os pastores da seita vinham prostitutas, mulheres-a-dias e empregados de restaurantes, conseguimos com sucesso desprezar todos os brasileiros sob a aparência de defendermos a cultura portuguesa.

O brasileiro não sabe que os anos 90 (e o início do milénio) foram a glória do mau-trato que lhe demos. O Herman José em prime time misturava no mesmo sotaque pregadores e pegas e o país ria, certíssimo da nossa superioridade. Claro que aqui e ali condescendíamos em continuar a esgotar o Coliseu ao Caetano, em passar luas-de-mel no Nordeste e, até permitir que alguns dos nossos (classe média a atirar para a baixa, claro) casassem com uns quantos deles (sei do que falo porque me recordo de dizer à minha irmã Rute que ela podia casar com quem quisesse, excepto brasileiros). A chegada do Alessandro à Família Cavaco demonstrou a besta que eu era e, nesse sentido, trouxe um tempo novo.

O brasileiro não chega preparado para um mundo que suspeita daquilo que ele idolatra: a alegria. As razões para isto são muitas mas religiosas também. Uma vez escrevi um texto chamado “Os Evangélicos são os Pretos do Cristianismo” (googlem) em que trato do assunto, que agora faz parte de um livro que só está editado no Brasil mas que em breve cá chegará pela FlorCaveira, intitulado “Arame Farpado no Paraíso — o Brasil visto de fora e um Pastor visto de dentro”. Por exemplo, quanto mais um brasileiro elogia Portugal à sua chegada, menos Portugal o receberá. Como a história da nossa desconfiança lhes é desconhecida, a exuberância que os brasileiros usam naturalmente para se quererem aproximar torna-se o que os manterá para sempre longe, mesmo que entre nós.

O brasileiro não sabe que, mesmo quando não tem religião, a fé que tem no futuro é-nos blasfema. Em 2010 gravei uma canção chamada “Doutor Soares”, dedicada à tragédia que foi termos Mário Soares como Presidente da Comissão de Liberdade Religiosa. As vetustas e vigilantes palavras do patrão da nossa democracia diziam que “os protestantes evangélicos são muito fanatizados”, que são senso comum ainda em 2021 para sabermos que esta é a religião que só com muito custo toleraremos, especialmente aos pobres do Sul Global. Portugal tem pouco Deus porque tem pouca gente. O Catolicismo consegue ainda no Século XXI o feito de deter o monopólio da seriedade e todos os outros credos são corridos a banha da cobra. A ironia é que a Esquerda, pouco inclinada a elogiar a Igreja Romana, é hoje o capanga que mais eficazmente expulsa quem queira quebrar a homogeneidade espiritual do nosso santo povo. O Brasil, que é grande para xuxu, muda com facilidade (até de religião) porque o futuro exige, ao passo que nós ainda adoramos o passado.

Mas o que o português não sabe é que o futuro não é, definitivamente, português. Amo o Padre António Vieira mas houve um erro no que ele profetizou: o futuro não é Portugal para o mundo mas o mundo para Portugal. E o mundo futuro que nos dá vida nova é, nesta época, essencialmente o Brasil. Não é preciso alinhar no último acordo ortográfico para entender que a nossa língua é e será maioritariamente a língua dos brasileiros (só lá dentro são mais de 210 milhões de falantes, caramba!). Os evangélicos portugueses não sabem que estão mais à frente do que todos os outros portugueses pelo facto de as nossas comunidades se abrasileirarem há décadas (isto não significa que qualquer abrasileirização é boa mas que é, de facto, inevitável). Os portugueses, notáveis na arte da pedinchice, vão abrindo muito resignadamente os olhos porque descobrem muito surpreendidos os novos brasileiros ricos que escolhem viver cá. Diante do imigrante, o português acredita muito em Portugal até que ele tenha mais money do que nós.

O que eu sei é que maltratar brasileiros só rende enquanto a nossa adoração do passado tiver mais crentes. Eu, que apenas creio na pátria eterna, invisto em qualquer outra que conjugue a nossa língua no futuro.

[Transcrição integral, mantendo a cacografia brasileira do original, de artigo da autoria de Tiago de Oliveira Cavaco publicado no jornal onlineObservador” de 26.12.21. Destaques, sublinhados e “links” meus; 2 imagens adicionadas ao texto: logótipo da IURD, sem autoria; fotografia do Presidente Mário Soares de “Holofote“. Fotografia de “swing” (baseball) em diversos “sites”. Fotografia de Batatinha e Companhia de: “TV7dias“]

Nasci a 17 de Outubro de 1977. Licenciei-me em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa e estudei teologia no Seminário Baptista de Queluz. Fundei a editora musical FlorCaveira em 1999, trabalhei em televisão durante uma década, fiz crítica literária para as revistas Atlântico e Ler, abri uma Igreja Baptista em 2007, e publiquei o meu primeiro livro em 2013, chamado “Felizes Para Sempre e Outros Equívocos Acerca do Casamento”. De lá para cá, continuo obcecado pela palavra, pregando-a, escrevendo-a e musicando-a.

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5 Comments

  1. É um pregador batista…

  2. Paulo Martins

    O AO90 é uma heresia. E este pastor é um carneiro que não aplica escrupulosamente a ortografia (cacografia) brasileira, vulgo AO90.
    https://www.florcaveira.net/

    Mas quem é que lhe encomendou o sermão? E será que o “punk rock” também é missa?!

    1. Bem, a sua informação é para mim novidade absoluta. Não fazia a mínima ideia de que este “articulista” do “Observador” faz parte dos “FlorCaveira”, sob o “nome artístico” de Tiago Guillul. Também desconhecia que aquele grupo se insere numa corrente musical (auto-)intitulada como “panque roque”; aliás, até esta designação genérica era (e continua a ser, mesmo assim) totalmente desconhecida. Suponho que, num plano musical mais abrangente, seja um sub-produto do “roque ande role” em geral. Santa ignorância a minha. E é coisa de igreja, aquilo???
      Bálhamedeus.
      Obrigado pela info. Saúde.

      1. Paulo Martins

        Boa tarde, prezado JPG.
        Que o ano vindouro seja o último em que vigore o nefasto AO90.
        Saúde e bom Ano Novo.

        1. Muito agradecido e igualmente retribuído.

          Aliás, acabo de publicar novo “post” sobre a passagem para 22, tornando assim extensível a todos os verdadeiros resistentes votos renovados de esperança em que após as 12 badaladas toquem todos os sinos e carrilhões, soem trombetas e salvas de canhões que por fim acordem da anestesia geral a esmagadora minoria de 10 milhões de potenciais indígenas colonizados.

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