Tratado de cacografia

Tanto na escrita como na fala existe um infindável anedotário no qual até altos dignitários e diplomatas, governantes, altos quadros e ministros em geral participam. O que, por conseguinte e por contraponto, em pura antítese e a título de ilustração a contrario, poderá remeter-nos de novo até ao ponto de partida, ou seja, poderá suceder que afinal escrever com os pés tenha também a ver com a língua brasileira impingida pelo AO90: o erro que resultava de ignorância passa a ser obrigatório por lei e é o próprio Estado (português) que nos impõe esse inimaginável horror.

Porém, reiteremos também, não é essa a questão ou, pelo menos, não o busílis dela. Sempre se escreveu em Portugal com os pés e sempre se falou abaixo de cão. Por excepção absoluta, a única vantagem do AO90 foi — acrescendo à galopante falência do Ensino do Português, dos bancos da escola aos anfiteatros das faculdades — pôr algumas pessoas (que nunca antes ou muito raramente se tinham metido em tais assados) a estudar, a escrever, a falar sobre o erro “de” Português. [“post” ‘Será então o cAOs‘]

Ambos os fenómenos foram activados pelo AO90, é certo, mas convém distinguir cacografia (escrita caótica, sem Ortografia) de cacofonia (sons repetitivos ou desagradáveis na fala). Ao contrário do que afirmam alguns académicos ligeiramente rançosos, nem a ortografia (escrita correcta) é um mero “código arbitrário” de representação da Língua, nem a ortoépia (modo de falar considerado como padrão) está imune à escrita; simplificando em extremo um conceito demasiadamente complexificado, a fala “referencial” determina decisivamente a escrita canónica mas a escrita também é influenciada e condicionada pelos diversos falares. Esta relação bi-unívoca e recíproca basta para demonstrar o total absurdo do AO90, evidenciando em simultâneo, por exclusão de partes, o seu carácter exclusivamente político-económico.

Ditames neo-imperialistas obscenamente inventados (a “difusão e expansão da língua” brasileira) e “regras” abstrusas como, por exemplo, “o que não se pronuncia não se escreve”, continuam a servir como álibis ou salvo-condutos para enganar analfabetos e para tentar liquidar ab ovo quaisquer objecções ao plano de anexação delineado inicialmente em 1986. Esse plano sinistro foi aqui detalhado (e retalhado) em etapas (9 a 11; 5 a 8; 1 a 4). Apenas por tópicos, podemos resumir ainda mais o que de facto sucedeu:

  1. Primeiro, inventar um problema para depois o “resolver”: nunca tinha ocorrido fosse a quem fosse qualquer “dificuldade” ou (muito menos) “erro” na escrita em Português, mas os “linguistas” e académicos a soldo encarregaram-se de apontar palavrinhas “incómodas” (nenhuma delas brasileira, claro). A isto somava-se outra invenção integral: Portugal e Brasil tinham “ortografias diferentes”, portanto havia que “unificá-las” (ou seja, substituir a norma portuguesa pela língua brasileira, mas esta parte tinha de ser ocultada a todo o custo).
  2. Segundo, ainda em 1986, ameaçar com absurdos “escandalosos” (como o “cagado de fato”) para depois fingir abolir os “escândalos” no AO90, dando assim a entender que tinham “cedido” a “protestos” e que, portanto, não apenas são muito “democratas” como a nova versão “do mal o menos” serviria perfeitamente para que os portugueses (e PALOP) engolissem a colossal patranha.
  3. Os “objectores” ficaram muito contentinhos com a sua “vitória” (de Pirro) no primeiro “round” e a opinião pública em geral — por regra, indiferentes ou indignados com “as causas supremas do futebol”) — começou a ser bombardeada com mentiras e industriada para aceitar passivamente a limpeza étnico-cultural.
  4. Na versão definitiva do AO90 (ainda não “revisto”, isso virá mais tarde), todas as alterações são imposições brasileiras; no Brasil, NENHUMA alteração, NENHUMA palavra escrita “à portuguesa” foi na escrita deles alterada; os brasileiros limitam-se a cumprir parte do acordado em 1945.
  5. O Brasil simula alterar a escrita da sua língua para fingir que “cedeu” em alguma coisa no “acordo” (por definição, tipicamente, num acordo ambas ou todas as partes cedem em algo e reivindicam outro tanto), mas todas essas “concessões” dizem respeito ao acordado 45 anos antes, num outro “acordo” que o Brasil assinou, jamais cumpriu, e denunciou unilateralmente dez anos depois, em 1955. As alterações de 1945 que fingem ser de 1990 resumem-se ao trema, a um acento nisto ou naquilo, à hifenização e pouco mais.
  6. As “contas” de Malaca&Bechara, SARI, tão aldrabadas como o próprio AO90, apontam para alterações de 1,4% e de 0,5%, respectivamente, na Língua Portuguesa e no brasileiro. Incrível ficção, claro: 100% das alterações ocorrem no Português-padrão e resultam exclusivamente, todas elas, do modo de falar dos brasileiros (os de “pronúncia culta”, dizem os vigaristas). O passo “técnico” seguinte seria, portanto, inventar justificações “técnicas” e “gramaticais” para cada uma das brasileiradas impostas.
  7. No plano estritamente político, a prioridade era tornar “legal” e obrigatório o “acordo” onde mais interessava (em Portugal, evidentemente). Muito simples: para que valesse em todos os oito países de língua oficial portuguesa, passavam a bastar três assinaturas (menos de metade dos países-membros!) e assim o AO90 entrava em vigor nos oito Estados “soberanos” (que mais tarde passaram a ser 9, com a entrada de uma ditadura de língua oficial espanhola).
  8. De Cavaco, a quem ocorreu de repente a “genial” ideia, até Sócrates, cuja “transparência” — política e até estudantil — é um dado adquirido, e passando pelo extremamente dialogante e ilustrado presidente brasileiro Lula, o processo de financiamento da golpada foi posto em marcha (as despesas correm por conta da República Portuguesa, os negócios com a CPLB para os novos bwana) e rapidamente surgiram diversas excrescências daquela “comunidade” com a missão de higienizar as mentiras, intoxicar a opinião pública e tornar irreversível a táctica do facto consumado..
  9. Extinta a organização informal mas efectiva que reunia os PALOP e “certificando” ao mesmo tempo a CPLB, o Parlamento português — mecanismo de legalização ao serviço do chamado “centrão” — seguiu quanto à “língua univérsáu” a lógica de conivência habitual: sem que a população tenha sido consultada e sem atender a quaisquer pareceres de organizações especializadas na matéria, foi imposta a disciplina de voto entre os deputados e assim entrou em vigor em Portugal o estropício.
  10. Para aprovar a RAR 35/2008 — espécie de catana do golpe –, foi utilizado um truque só aparentemente hilariante: difundiram a ideia de que o que os deputados estavam a votar era apenas e só a admissão de Timor-Leste naquilo a que chamaram CPLP (com B no fim, língua oficial brasileira, não P de portuguesa). Despachado este expediente, mera formalidade para a “adoção” da língua brasileira em Portugal (e ex-PALOP, agora PALOB), faltaria apenas acertar uns pormenores sobre a futura divisão dos lucros, isto é, a quanto virão a montar as comissões (e/ou benesses e/ou prebendas e/ou sinecuras) que tocam aos envolvidos.
  11. A abolição administrativa da Língua Portuguesa implicou no imediato a sua extinção em todos os sistemas e programas informáticos (CHCP 860) e em todas as plataformas e serviços online (Facebook, Twitter, YouTube, etc.). A substituição de Português por brasileiro sucedeu também em programas e ferramentas de trabalho (MS-Office, correctores ortográficos, dicionários), nos motores de busca (como a Google), em browsers (por exemplo, o Firefox ou o Chrome) e chegou-se mesmo ao extremo verdadeiramente criminoso de…
  12. … serem substituídos conteúdos não apenas em motores de busca (aparecem sempre resultados brasileiros à cabeça e grafar em Português é “erro”) como também, principalmente, abjectamente, conteúdos portugueses, imagens, dados, referências, tudo o que vagamente cheire a “tuga” é eliminado e em seu lugar passa a constar apenas o que for brasileiro.

A revisão do AO90, agora mais propagandeada do que nunca e colhendo o apoio de cada vez mais idiotas úteis, representa o corolário lógico daquilo que na verdade representa a stupidentsia nacional: produzem umas listinhas, adiantando serviço à em breve activa Comissão Técnica de Revisão (CTR), nas quais vão já apontando aquilo que, no seu douto parecer, consideram ser “aberrações” e “casos flagrantes”, só umas palavrinhas “a corrigir”, coisa pouca, mas tudo numa boa, hem, estamos entre gente de bem, todos amigos, do lado de cá e do lado de lá isto ele é tudo uma irmandade santa.

E então, desde que se recupere o “p” na recepção e outros “casos” de tal jaez, está tudo “anistiado”, problema nenhum, o resto do AO90 não é aberração alguma, é lá agora, sai mais uma rodada de caipirinhas.

[Imagem de topo de: Alexandre Beck, autor (brasileiro). Fotografia de ponte (Zamora, Espanha) de: Rocío Ramos.]

 

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